UM PASSADO PERSISTENTE


 
Vivemos em um mundo incerto, no qual a rotina é freqüentemente assaltada pelo inesperado. Temos de aprender a conviver e a lidar com o imprevisto. Bem diferente do tempo de nossos avós, quando se contava com um mundo estável, de hábitos consolidados. Não havia então o imperativo de uma avaliação ininterrupta do impacto dos acontecimentos sobre a subjetividade de cada um, nem a necessidade de se olhar para além do manifesto e explícito. As estruturas em vigor absorviam as insatisfações e conflitos existentes.
Tomemos como exemplo a circulação de dinheiro em uma família tradicional para confrontá-la com uma família pós-moderna. Na primeira o homem detinha o poder econômico, pois trabalhava e sustentava a todos, enquanto a esposa cuidava da casa e dos filhos. Disponibilizar para ela maior ou menor numerário teria mais a ver com a satisfação do marido em relação ao comportamento da esposa do que com a realidade econômica do casal. A mulher, por seu lado, tentava compensar sua frustração com o casamento realizando gastos excessivos. Os conflitos e as insatisfações, porém, não ameaçavam a estabilidade do casamento, que era “para sempre”; podiam permanecer ocultos, negados, pois a hipótese da separação era impensável. Os hábitos e as convenções da época seguravam o casamento, os afetos se equilibravam nas ações e reações.

Pensemos agora em uma família pós-moderna composta de marido e mulher em segundas núpcias, uma ex-esposa e um filho do primeiro casamento. O homem terá de se relacionar com a primeira mulher, tendo em vista sua função de pai, incluindo-se aí  os gastos com a criança. A circulação de dinheiro, que na família patriarcal fluía no interior da instituição do casamento, agora obedece a uma determinação externa, a da pensão. Nesse caso, a posição de ex-esposa a deixa mais livre e motivada para reivindicar aportes extras. Estes nem sempre são por exclusiva necessidade econômica: ocorre com freqüência haver raiva e ciúme da nova relação. Ela busca então se vingar, sobrecarregando o ex com pedidos extemporâneos; ao mesmo tempo poderão persistir nela resquícios de apego, e a contribuição extra poderá ter para ela o significado de ele sentir os mesmos resquícios. E mais: se ele cede às suas demandas, ela encontra conforto na idéia de que ainda o controla.

A esposa vigente percebe inconscientemente esses significados e exacerba sua rivalidade e competição com a ex. Sua sensação é a de não ser mais a única mulher com a qual o marido se importa. Existe outra a receber agrados; o dinheiro que poderia ser utilizado por ela e pela família atual escoa-se para a antiga esposa por fraqueza e por um elo afetivo indevido do marido. O que a ex-esposa pede para o filho é percebido como um pedido pessoal. A criança, aqui, perde a sua singularidade, confundida que está com a mãe.

Como não existe uma contenção institucional para essa constelação familiar, a situação pode não se equilibrar com as ações dos implicados, vindo a atingir a região do insuportável quando sucede algo radical: ou a separação do novo casal, ou o rompimento do marido/pai com a família anterior. A fratura, no entanto, poderá ser mais facilmente evitada se cada membro da família se der conta da própria dinâmica psíquica.

A nova esposa precisa conscientizar-se de sua rivalidade e competição com a ex; esta deverá perceber o mesmo em relação à atual e, ainda, o ódio e amor residual pelo ex-marido. Já o marido terá a tarefa de compreender o que move as duas mulheres nas discussões com ele. Só assim será possível atenuar os efeitos de tão fortes emoções, protegendo a continuidade dos relacionamentos.

 

                                       Nahman Armony
        Primeira publicação na revista CARAS

O ENIGMA CÉREBROMENTE


 

Repercussões especulativas psicofisiológicas a partir de LIBET


 

Experiência de Libet – o potencial de prontidão precede de 550 milisegundos a realização do gesto. “A interpretação clássica desse experimento diz que o livre arbítrio, ou seja, a ideia de que nós somos os arquitetos de nossas ações, é uma ilusão e que a consciência é uma espécie de efeito colateral de um processo inconsciente.” Crítica de Schurger: “ Libet argumentava que o nosso cérebro já decide mover-se ante de haver uma intenção consciente. Nos argumentamos que o que parece ser um processo de decisão pré-consciente não é reflexo de uma decisão. Parece ser, mas apenas porque essa é a natureza da atividade cerebral espontânea. Se estivermos certos, o experimento de Libet não fornece nenhuma evidência em desacordo com o livre-arbítrio.”

Minha tentativa de explicação. Um pouco de neurociência especulativa.  Premissa 1: necessidade de aumento da percepção do ambiente. Quanto mais ampla a percepção mais o ser vivo poderá se defender, atacar e sobreviver (Darwin). Poder-se-ia aqui falar de vontade de potência (Nietzche) como uma pulsão ou instinto primário. Imagino então o seguinte. Numa primeira etapa os animais só percebiam o ambiente através do toque, fosse com objetos vivos ou inanimados. O ambiente externo ao corpo reagia ou com irritação e então se afastava do fragmento do ambiente no qual por acaso tinha tocado, ou então o introduzia no seu próprio organismo para se alimentar, fosse um fragmento mineral fosse um outro ser vivo que era então decomposto em suas partes (proteína, gordura, glicose, etc.) Tanto um quanto outro processo só ocorriam quando o acaso colocava a substância viva com um objeto inanimado ou com um ser vivo que então lutava para não ser destruído.  Interessava então à sobrevivência poder perceber o outro, antes de tocá-lo. Essa é a função da visão. Desenvolveram-se partes do cérebro que permitiram essa percepção.  Na revista ‘Mente e Cérebro’ de novembro de 2016 aparece a figura de um verme primitivo ao qual foi dado o nome de CAENORHABDITIS ELEGANS. Esse verme se alimenta de bactérias do solo, não tem olho, não tem cérebro nem consciência. Algumas espécies de vermes têm um olho primitivo, mas seu principal instrumento de percepção do mundo à sua volta é difuso e se dá através do seu corpo. Se examinarmos o corpo de um jacaré facilmente veremos seu olho, fazendo um enorme contraste com o corpo de vermes que ou não apresenta aparelho visual ou o tem, porém muito primitivo. O jacaré atrelou parte de suas defesas ao olho. Para isso promoveu o crescimento e reestruturações do cérebro aumentando a capacidade de enxergar. Ou pode-se dizer o contrario. A necessidade de enxergar fez com que o cérebro se desenvolvesse no sentido da sobrevivência. A capacidade de ver o mundo é concomitante às transformações funcionais. Segundo Espinoza Uma única substância com inúmeros atributos dos quais só percebemos o atributo extensão e o atributo incorporal (mental). Voltando aos olhos do jacaré: ele enxerga o que externo a ele mas não desenvolveu o cérebro para enxergar os seus processos mentais e psíquicos internos. Esta proeza foi realizada pelo homem que desenvolveu uma parte do seu cérebro no sentido de ver o que se passa dentro da mente e da psique. Estou falando principalmente de autoconsciência. Não se pode separar o desenvolvimento neuronal da conquista mental. Ambas são concomitantes, ocorrem ao mesmo tempo. Voltando ao que eu já disse são dois aspectos de um mesmo fenômeno. No dizer de Spinoza, são atributos da Natureza. Há um crescimento e arranjo cerebral que permite ver não só o externo, o que está fora do ser, como também permite ver o que está acontecendo dentro do próprio mente-cérebro. Isto através de dois modos: por introspecção e por aparelhos de imagens dinâmicas.   Parto da seguinte premissa: a todo movimento da mente (portanto a todo pensamento) corresponde um movimento dos elementos cerebrais. É necessário que existam certas estruturas, funções e dinâmicas cerebrais para que o animal perceba com os seus órgãos de sentido aquilo que está acontecendo no mundo e dentro de seu cérebromente. A palavra ‘perceber’ pode ser substituída por ‘consciência’. O primeiro patamar da consciência eu a chamo de ‘consciência da pura ação.’ Num segundo patamar encontramos a consciência reflexiva que é a capacidade mental/cerebral de agir inteligentemente ao resolver algum problema externo sem porém ter consciência de que está resolvendo problemas pois esta última encontra-se no patamar da autoconsciência, privilégio dos humanos que observam seus pensamentos e ações. Darei um exemplo da consciência reflexiva que os animais reflexivos partilham com o ser humano. Um cão foi deixado para trás numa encruzilhada. Ele cheira uma primeira via buscando o cheiro do dono. Não há cheiro. Entra então resolutamente na 2ª via. Estamos diante de uma inteligência ou consciência reflexiva. À sua maneira canina o cão pensou: “se só há dois caminhos e meu dono não passou por este caminho só pode ter seguido pelo outro caminho”. Seu aparato cérebromental permitiu esta percepção/ação sem que percebesse que estava fazendo um raciocínio lógico. Já o homem desenvolveu um cérebromente que lhe permite ter autoconsciência. São modificações cerebrais que ampliam o campo de conhecimento dos seres vivos. Seria possível encontrarmos modificações cerebrais para os chamados fenômenos paranormais? Dentro da premissa colocada por mim a resposta só pode ser positiva. A meditação não é um fenômeno paranormal. Mas está mais próximo desta fronteira. Foram detectadas alterações na dinâmica cerebral nos monges que realizam meditação. Esta última afirmação tira a força do que venho dizendo, mas vale a pena colocá-la para nos afastarmos de acontecimentos milagrosos ou excepcionais. Não nos esqueçamos que os bons motoristas de taxi londrinos têm o córtex temporal ou parietal aumentado em comparação com a população não taxista. Preservamos assim a ideia de uma evolução cerebral/mental rizomática.
                                  Nahman Armony 

SOBRE ALGUNS MEDOS ATÁVICOS


CONFLITOS DA CULTURA DISFARÇADOS DE CONFLITOS PESSOAIS

 

Os seres humanos carregam consigo um medo atávico de serem influenciados, dominados, abusados, e procuram defender e preservar sua força, individualidade e independência de pensamento e ação. Num casal, o medo de ser dominado e o desejo de dominar se revela até mesmo em pequenas disputas como, por exemplo, a ridícula luta quanto ao modo de colocar a pasta de dentes na escova. As pessoas têm um medo inconsciente de serem influenciadas e dominadas e então perder sua autonomia e identidade. Tal sentimento pode ser percebido nos vários níveis das relações humanas, desde as que envolvem povos até as que se dão entre funcionários de uma empresa e relações de casal. Porém, não é fácil reconhecê-lo. Embora sua incidência seja ampla não nos apercebemos dela o que nos dificulta fazer um trabalho psicanalítico. Este medo está incrustado em nossos neurônios/psique, pois desde o inicio de nossa vida dependemos de uma outra pessoa de uma forma indispensável, necessária e prazerosa. Porém em algum momento da vida será preciso tornar-se autoafirmativo, contrariando os interlocutores. Instala-se um conflito aberto ou larvado: interesses grupais versus interesses pessoais, sentimentos de culpa por estar contrariando uma pessoa amada, desejo de paz versus afirmação da individualidade, desejos inconsciente de se fundir com a Grande Mãe versus desejo de individuação, etc.      

As conquistas territoriais, os massacres de populações, a imposição de culturas podem ser considerados, em parte, uma defesa contra a invasão/imposição de um grupo sobre a individualidade/subjetividade de outro. Do mesmo modo, quando um casal discute sobre o modo de usar o tubo da pasta de dentes, cada um querendo provar que a sua maneira é a melhor, trata-se, no fundo, de uma luta de culturas e mentalidades. Qual cultura/mentalidade vai prevalecer? Quem vai desaparecer e virar uma sombra para que o outro possa tranquilamente ocupar um lugar protegido da ameaça de ser invadido colonizado, controlado?

Na economia das relações entre os seres vivos, o grupo funciona com mais eficiência quando se estabelecem relações de liderança. Se cada um saísse atirando para lados diferentes, se não houvesse uma sinergia de ações, o grupo tenderia a desaparecer, destruído por outros. Essa é uma herança que os humanos carregam consigo para todos os lados, em todas as situações. Inclusive nas relações amorosas. 
Aqui faço um parêntesis para tratar da espinhosa questão da liderança. O perigo da liderança é o perigo que ela se transforme em relações ditatoriais. Eu penso em uma liderança funcional onde cada membro do grupo é levado a fazer o necessário para manter a estabilidade dinâmica do grupo. O exemplo que tenho na cabeça é o da organização das formigas e de outros insetos onde a alocação política é uma questão pontual, a ser resolvida nos contextos locais que se articulam com contextos locais mais amplos sem haver disputas pelo poder. Cada um faz o que deve fazer para a equilibração do grupo. Trata-se de uma liderança rizomática (Deleuze). 
É preciso fazer um esforço para identificar o receio atávico de ser influenciado pois aquilo que parece pequeno e burlesco pode ou não estar vinculado ao mais primitivo desejo de dominar e anular.

Os casais precisam encontrar um equilíbrio. Como as culturas e os hábitos são diferentes o confronto é inevitável. E ambos devem permanecer fortes em suas vestes de autoafirmação. Dessa forma estabelecem-se os limites e espaços de cada um e o entendimento em áreas comuns de pensamento/sentimento/sensibilidade. Quando um tenta convencer o outro de que seu modo de pensar é o verdadeiro, entra-se no terreno da disputa, da conquista, do desejo de ocupar com sua personalidade o máximo de espaço, movido pelo medo de ver sua individualidade anulada pela do outro.

Quanto maior for a autoestima de cada um, quanto maior for a certeza de se ter um centro autônomo e criativo, menos esse tipo de disputa aparecerá, pois a força individual se definirá por uma potência intrínseca e não pela dominação sobre o outro.

É bom lembrar, porém, que a dominação traz lucros não só para o dominador como também para o dominado, que aceitando sua submissão goza de tranquilidade até ter seu conforto ameaçado pela voracidade e medo do dominador. Para evitar essas situações, é importante que o casal perceba que a tentativa de imposição dos pequenos gostos pessoais de cada um pode ser a materialização do medo primitivo de desaparecer como individualidade, um sentimento que, para ser administrado, precisa, antes, ser reconhecido.
                                                       Nahman Armony

 

 
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