UMA INTRODUÇÃO
EPISTEMOLÓGICA AO MEU LIVRO
“BORDERLINE:
UMA OUTRA NORMALIDADE”
1ª
edição – 1998
2ª
edição – 2010
EDITORA
REVINTER
“De
familiares e conhecidos, se tornam estranhos e desconhecidos o caminho, o
caminhar, os próprios caminhantes. Na caminhada do questionamento, vai surgindo
a cada passo o caminho essencial. E, ao surgir, vai-nos revelando que, nas
caminhadas diárias pelos atalhos, nenhum de nós havia realmente caminhado.
Todos tínhamos ficado presos às malhas de um esquema pré-estabelecido”.[1]
Este
livro surgiu do entrelaçamento de dois cuidados, duas preocupações, duas
aflições: um referido à minha profissão de psicanalista e outro ao meu ser
enquanto inserido em uma cultura, em uma sociedade e em um meio ambiente.
Esta
é uma formulação narcisista mas que acredito pertinente. Por isto mesmo
gostaria de apresentá-la, não como idiossincrásica, mas como fundo originário
das produções do pensamento. Em palavras simples: pensa-se, constroem-se
teorias, luta-se denodadamente por alguma coisa que está além da pessoa, mas
que expressa, representa os anseios, temores, desejos mais recônditos de cada
um.
Gostaria
mesmo de dar um nome a este modo de encarar as produções culturais. Seria um
modo “presente-referente”. Algo muito fundamental, e que tem a ver com minha
vida presente, me inquieta, me atormenta, me preocupa, me provoca cuidados
levando-me a uma pesquisa e produção que aparentemente nada tem a ver comigo
mas que, na verdade, tenta lidar com a inquietude pessoal. Inquietude pessoal
que é também inquietude social, pois cada sujeito está atravessado pela
subjetividade de sua época. Aquilo que se chama de subjetividade individual
nada mais é que uma condensação pessoal de uma subjetividade que circula pelo
social.
Poderei
portanto fazer história, filosofia, psicanálise, apelar para as várias
disciplinas, poderei parecer inteiramente objetivo, voltado para fora, para o
mundo, poderei parecer altruísta, preocupado com os outros, poderei ter ideais
nobres. Tudo provém de uma fonte interna de inquietude e preocupação. São
formas de lidar com os problemas, as perplexidades, as angústias de um sujeito
pára-raios de seu entorno. Reconheço, pois, que minhas concepções são
presente-referentes por mais altruístas que pareçam, por mais que falem do
externo, e por mais bem elaboradas, coerentes e objetivas que possam ser. Mesmo
que eu fale do passado ou do futuro, ainda assim será um passado e futuro
referido ao agora, e se estou deles falando é porque eles se rebatem sobre o
presente que está sendo vivido. Estou sempre tentando compreender e lidar com o
aqui e agora e uso de todos os recursos para isso, inclusive o de negar o aqui
e agora quando seu potencial ansiante ameaça desorganizar o pensamento.
Fui
analisado dentro de uma técnica clássica, o que produziu seus efeitos mas
deixou um fundo de insatisfação. Pude assim melhor compreender os pacientes
borderline que se ressentiam da técnica clássica.
Neste
ponto começava minha saga. Ao me entregar à relação com o borderline, aceitando
e deixando que se desenvolvessem novas formas de relação, comunicação e
conhecimento, eu desafiava a comunidade psicanalítica que me rodeava e, o que
era mais problemático, o fundamento sujeito/verdade que vigorava em minha
subjetividade.
Por
algum tempo esta diferença entre pensamento/ação e fundamentos provocou em mim
culpa e ansiedade. A este mal-estar agregavam-se as críticas e desconfianças de
meus pares diante de minhas idéias e de minha atuação clínica.
A
existência de outros psicanalistas, especialmente estrangeiros, que se dirigiam
aos analisandos de uma forma similar à minha, serviam-me de lenitivo mas não
desfaziam o mal-estar de que eu me via possuído ao transgredir aquilo que era
considerado pelo superego oficial psicanalítico local como o verdadeiro
procedimento psicanalítico. Não só porque eles não estavam presentes para dar
suporte quando dos ataques de meus pares, mas principalmente por não se tratar apenas de uma questão de apoio,
cumplicidade e identificação. O maior problema estava na relação entre aquilo
que eram meus fundamentos inconscientes e minha ação e pensamento.
Foi
neste ponto que senti necessidade de um conhecimento extra-psicanalítico e me
enfronhei no estudo da filosofia, da epistemologia, da sociologia, buscando
alcançar o motor produtor de meu mal-estar na confluência e entrecruzamento
destas disciplinas. Foi assim que acabei atracando na ECO, lugar da
transdisciplinaridade, lugar onde o fundamento sujeito/verdade é
sistematicamente questionado produzindo brechas para a penetração do devir no
pensamento.
O
fundamento sujeito/verdade que era um de meus marcos orientadores, produzindo
conflito, culpa e mal-estar sempre que era contrariado, pôde vir à tona,
passando a ocupar um outro lugar na minha dinâmica psíquica. Acompanhando o
processo de neutralização deste parâmetro, a culpa foi-se diluindo. Surgiu em
seu lugar uma inquietude decorrente do vácuo deixado pela desmobilização do
fundamento sujeito/verdade, uma inquietude que desconfiava de modelos e de
fundamentos em geral. Mas, como viver sem fundamentos? O que colocar em seu
lugar? No capítulo assumidamente poético desta tese, o capítulo 2, em seu item
três, tento lidar com esta questão. E, posso dizer que o pensar/viver a
inquietude a reduz de sombra indesejada para companheira estimulante e amena.
Passei
a entender meu comportamento terapêutico por paradigmas outros que não o
secular fundamento sujeito/verdade.
Esta
mudança de paradigma influiu e continua influindo em todas as áreas de minha
atividade e também, como não poderia deixar de ser, no modo pelo qual estou
conduzindo a feitura da tese.
Alguns
autores ajudam-me a me situar diante de meu trabalho clínico e de minha maneira
de realizar a tese.
A
lebre do fundamento sujeito/verdade foi levantada por Márcio Távares d’Amaral em
um de seus cursos. Mas a transformação paradigmática já vinha se operando e
continuou a se operar. A maneira dos professores abordarem a realidade -
trazendo o devir para a Academia -, o clima de abertura e multiplicidade da ECO
propiciava, facilitava, robustecia esta transformação. As leituras também
contribuíam para me deixar mais familiarizado, mais à vontade com este novo
paradigma, fazendo dele, cada vez mais,
um ambiente em liquefação no qual eu passava a me mover com crescente
desenvoltura.
Emmanuel
Carneiro Leão nos mostra como a divisão sujeito/objeto, a serviço de uma
funcionalidade, de um objetivo que, em última análise, é a manutenção do status quo social, impede uma visão
originária da realidade, fazendo com que o homem opere repetições estéreis. Diz
ele:
“A
funcionalidade da correlação sujeito-objeto se impõe, então, como o objetivo de
todas as funções de crer, saber, fazer e sentir, vigentes no mundo moderno.
Constitui mesmo o maior escolho na caminhada do pensamento para pensar
radicalmente uma realidade”.[2]
É
preciso, pois, pensar fora da dicotomia sujeito/objeto, e pensar radicalmente,
para realizar transformações. A arte é uma das formas de ultrapassagem desta
dicotomia:
“Já
nem se sente provocação alguma para pensar nas frases de Nietzsche: ‘a arte tem
mais valor de essência do que a verdade’; nós temos a arte para não vir a
soçobrar na verdade’! E não sentimos a provocação destas frases porque
obsecados pela funcionalidade de tudo e de todos, só temos olhos para o espaço
físico-geométrico de sujeito e objeto. Pois este, podemos medi-lo com uma
escala exatamente definida. Podemos operá-lo com resultados precisos. Mas, com
uma arte, que não está nem dentro nem fora, ou, o que dá no mesmo, que está tão
dentro quão fora da obra de arte e do artista, não podemos empreender nada”.[3]
A poesia será o meio que usarei para
introduzir as questões pertinentes à tese. Penso que a poesia, com sua força de
penetração, tem o poder de ultrapassar as defesas caracterológicas, produzindo
um conhecimento não representacional, um conhecimento co-mocional, afetivo.
Isto não significa que não usarei recursos da ordem da representação. Eu os
usarei sim, não só por ser a forma socialmente mais difundida e mais aceita de
comunicação, mas também como um recurso para, por acumulação, fazer surgir no
espírito do outro a mesma intuição vivida por mim.
Para
Bergson[4] as idéias progridem por uma série de
intuições fundamentais totalizadoras que exigem um esforço semântico e teórico
para serem transmitidas. Mas, as idéias não são construídas racionalmente.
Anteriores a qualquer raciocínio, são intuídas. Não se trata porém de uma
intuição ingênua, um milagre caído do céu; ela exige um tempo de concentração,
um tempo de pensamento, um tempo de contemplação, um tempo de recolhimento, um
tempo de elaboração inconsciente. Aí sim, ela dará os seus sinais, pedindo para
ser trazida à luz do dia, finalmente revelando-se ao próprio pensador e à
sociedade que o rodeia.
Acredito
que uma intuição se forma pela apreensão de indícios vagos, mínimos, da coisa a
ser intuída. Esta apreensão se passa a nível de sensorialidade, de cinestesia,
de cenestesia, passando ao largo do crivo do pensamento racional/abstrato e
chegando em estado puro à mente inconsciente. De lá, após um tempo de maturação
propiciador de uma reunião globalizadora,
a intuição forçará - já como unidade - sua passagem ao mundo. Poderá
receber então várias vestimentas: imagens, metáforas, alegorias, religião,
história, ciência, antropologia, poesia, psicanálise, etc. O objetivo (ideal)
destas vestes é proporcionar ao interlocutor o máximo de condições, o máximo de
clima, o máximo de associações para que a intuição possa aparecer; é cercar e
atravessar a intuição de tantas maneiras - criando um sem-número de conexões -
que ela por fim venha a surgir, num repente, da mente do interlocutor.
A
intuição, ao surgir da/na mente do pensador, é apenas um pequeno glóbulo
enroscado em si mesmo como uma flor em botão. Ela deverá florescer em imagens,
teorias, proposições conceitos, noções, metáforas, para adquirir a plenitude de
seu vigor. Seu florescimento será sempre uma promessa e uma surpresa. Embora
saibamos que lá está uma flor, pouco sabemos das formas que adquirirá no
decorrer de sua vida. Uma melhor metáfora para a intuição é a música. O
compositor consegue um tema musical. Seu desenvolvimento é porém um mistério só
revelado no correr da composição. Aí então saberemos algo da substância da
música, mas será sempre uma substância a nos enviar ao mistério dos sons.
A
intuição está além da dicotomia sujeito/objeto, já que ela opera pelo processo
de identificação. Ela escapa da funcionalidade e da objetividade. Ela se
aproxima do olhar trans-lúcido de que fala Carneiro Leão, um olhar “tão livre, que, mesmo através da correlação
de sujeito e objeto, veja sempre no real uma espetáculo de originalidade”.[5] A primordialidade da intuição advém de
suas fontes: proto-sensações, cinestesias, sinestesias, cenestesias. São
categorias pré-representacionais, pré-dicotomia sujeito-objeto. Só na seqüência
de seu alumbramento é que poder-se-á falar de correlação sujeito-objeto. É no
ponto de natividade que encontramos a maior translucidez do olhar apontando
para a origem e originalidade das coisas. Diz Carneiro Leão:
“Ora,
o dizer de um discurso se nutre de um contato pré-discursivo com uma verdade
que, frente à reflexão temática, é tão originário que se torna uma fonte de
inteligibilidade e compreensão”.[6]
A
intuição não está desligada de seu tempo. Pelo contrário, na medida em que ela
habita um ser temporal, um ser atingido pelas questões, angústias,
dificuldades, problemas de seu momento de vida, um ser que participa da
subjetividade de sua época, ela, a intuição, porta, em sua inteireza, em sua
unidade de apresentação, o conjunto de questões que atingem o ser humano. A
compreensão e o apontamento de rumos encontram-se assim contextualizados. A
remissão à origem, o perene renascer, filia-se à capacidade que tem a intuição
de rearrumar os elementos existentes desde sempre em um novo arranjo que inclui
novos elementos em surgimento.
Para
que o espírito possa se livrar das cadeias do já estabelecido, é preciso que
ele esteja atento às suas intuições, que as respeite, que lhes dê crédito, que
nelas busque uma fonte de conhecimento, pois a intuição é um modo de
conhecimento em escape do representacional, do convencional, do instituído como
saber.
A
escritura de uma tese exige uma pletora de leituras. Como evitar que as
palavras acabem provocando uma doença congestiva? como ir para além das palavras
do texto? como partilhar da intuição do autor? como transformar a teoria em
experiência viva?
Carneiro
Leão fala-nos de um retraimento da linguagem que, ao se encontrar, no seu
limite, com o silêncio, possibilita o surgimento da verdade do ser no tempo:
“É que
a compreensão só se instala no instante em que começa a brilhar em nós o que o
texto não diz, mas quer dizer em tudo quanto diz. Pois o problema central do
sistema nos remete a uma experiência de retraimento que, de há muito, nos vinha
atraindo em todos os empenhos de perguntar e desempenhos de responder. A partir
daí tudo se transforma. Já não temos de carregar o peso de um sistema de signos
e funções. Na gravidade do pensamento sentimos nosso próprio peso. Provocados a
pensar por um pensamento, que também é nosso, que tem algo a dizer de nós
mesmos, somos enviados à viagem de retraimento de um limite, que, longe de nos
repelir, nos atrai e arrasta. De texto de uma língua, o pensamento se faz
viagem da Linguagem de ser e não ser no tempo”.[7]
Ir
para além da teoria procurando a experiência que a produziu, despir a intuição
do autor de suas vestes vocabulares para dela poder compartilhar, obter
discriminações finas através do confronto de práticas e teorias, conseguir
estímulos para novas especulações, buscar os entrecruzamentos que se
estabelecem a partir de diferentes ângulos de mirada, misturar mesmo os vários
pontos de vista para deixar decantar uma resultante, tais são algumas das
formas pelas quais digeri os textos lidos.
Winnicott é um autor com o qual também me
identifico. Ele escreve:
“Não
começarei por fazer um levantamento histórico e por mostrar o desenvolvimento
de minhas idéias a partir de teorias de outras pessoas porque minha mente não
trabalha deste modo. O que faço é juntar isto e aquilo, aqui e acolá,
concentrando-me na experiência clínica, formando minhas próprias teorias e,
então, depois de tudo, me interesso em descobrir de onde roubei o quê. Talvez
este seja um método tão bom quanto qualquer outro”.[8]
Este juntar isto e aquilo, aqui e
acolá, significa que Winnicott não adota uma única teoria como modelo. Os
variados eventos clínicos, nos quais ele se concentra, remetem-no a vários
fragmentos teóricos. Ele não parte de uma teoria que, passando pela clínica,
leva-o à modificação desta teoria ou à formação de outra. A clínica é seu ponto
de partida e sua referência mais importante. O paciente está ali diante dele, e
é a dinâmica que se estabelece entre ambos que evoca algum fragmento de teoria.
A teoria fala diretamente dos eventos. O fragmento teórico amalgamado ao evento
clínico é uma quase-experiência. A teoria tirada de sua morada celestial e
trazida para a terra deixa de ser um pinóquio de pau para adquirir carne,
artérias, sangue, sensibilidade.
Em
qualquer momento de nossa vida corpomental possuímos um patrimônio experiencial
e uma reserva de conhecimentos através
dos quais podemos olhar para o mundo ou diretamente ou passando pelo filtro das
teorias que o representam. Na melhor das hipóteses olharemos o mundo sem sua terceirização
pela teoria.
Munidos
de nosso acervo de experiência, conhecimento e teorias, mastigados e digeridos,
olhamos para os eventos e procuramos
entendê-los, organizá-los, administrá-los. Parte de nossa experiência é
expressa em linguagem, uma linguagem que já traz em suas palavras e sentenças
um modo de aproximação ao mundo. Na medida em que usamos termos para falar e
pensar a experiência, e estes termos já foram falados, escritos, significados,
podemos dizer que o intertexto fará parte do conhecimento do mundo. Este
intertexto sofrerá uma atenuação desde que, a cada vez, remetamos as palavras
diretamente à experiência.
Podemos
assim manter a distinção entre olhar o mundo diretamente, ingenuamente, com o
cabedal de conhecimentos-experiências que já temos, ou através de conceitos que
deverão enquadrar o mundo para que ele possa ser conhecido. No primeiro caso
estaremos mais livres para sermos atingidos pelo novo e mais livres para
aceitá-lo, enquanto que no segundo nossa mente selecionará os aspectos da
realidade que combinem com os conceitos prévios ou distorcerá aspectos da
realidade para que possam caber na teoria.
Voltando
à relação linguagem/experiência. Foi dito acima que apreendemos o mundo através
de um conhecimento prévio acumulado ontogeneticamente (e filogeneticamente?),
conhecimento que inclui a linguagem recebida dos antecessores. Podemos pôr em
questão esta relação linguagem/experiência que nos é dada para encontrar uma
outra relação linguagem/experiência que exprima melhor e mais produtivamente o
vigente. Mas esta relação linguagem/experiência só será colocada em questão, e
ela o será inevitavelmente, se nos dirigirmos à vida de uma forma direta.
Quando nos dirigimos à vida, dirigimo-nos ao fluido, ao mutável, e para
acompanhar a vida em movimento é preciso fazer as palavras se movimentarem no
seu mesmo compasso.[9]
Também
Edgar Morin faz parte daqueles autores sobre os quais repousa meu pensamento.
Ele fala de um paradigma da simplificação, formulado por Descartes, que opera
por disjunções, da qual a mais básica é a disjunção sujeito pensante-coisa
extensa. Diz ele:
“Vivemos
sob o império dos princípios de disjunção,
de redução e de abstração, cujo conjunto constitui o
que eu chamo o ‘paradigma da simplificação’. Descartes formulou este paradigma
mestre do Ocidente, ao separar o sujeito pensante (ego cogitans) e a coisa extensa(res extensa), quer
dizer, filosofia e ciência, e ao colocar como princípio de verdade as idéias
‘claras e distintas’, ou seja o próprio pensamento disjuntivo. Este paradigma,
que controla a aventura do pensamento ocidental desde o século XVII, permitiu
sem dúvida os grandes progressos do conhecimento científico e da reflexão
filosófica; as suas conseqüências nocivas últimas só começam a revelar-se no
séc.XX”.[10]
Morin
propõe um novo paradigma: o da complexidade. Nela o número de variáveis é
inapreensível o que introduz um fator de indeterminação, de incerteza, de
acaso. Mas trata-se de uma incerteza
“no seio de sistemas ricamente organizados.
Ela [a complexidade] relaciona sistemas semialeatórios cuja ordem é inseparável dos acasos
que lhes dizem respeito. A complexidade está portanto ligada a uma mistura de
ordem e de desordem, mistura íntima...”.[11]
Para pensar a complexidade é preciso
substituir a operação de disjunção/redução/unidimensionalização por um
procedimento que comporte a distinção e a conjunção
(distinção/conjunção/conjunção) e que “permita
distinguir sem separar, associar sem identificar ou reduzir”.[12]
É preciso “também aceitar uma certa
imprecisão e uma imprecisão certa, não apenas nos fenômenos, mas também nos
conceitos...”.[13]
Esta formulação é revolucionária em relação ao paradigma da simplicidade,
que exige do universo uma ordem consubstanciada na unidade dos princípios e das
leis, não admitindo nem a multiplicidade, nem a desordem, nem a contradição.[14]
Aquilo que é contradição no paradigma da simplicidade transforma-se em paradoxo
na ordem da complexidade. Os elementos que logicamente se excluem (na
referência à lógica clássica) não remetem ao erro, e portanto não exigem ser
corrigidos, mas aproximam-nos “de uma
camada mais profunda da realidade que, justamente porque é profunda, não pode
ser traduzida para a nossa lógica”.[15]
André
Green advoga a existência e o uso de uma outra lógica que não a clássica:
“O
processo primário, mesmo em seus aspectos aparentemente mais primitivos,
permanece governado pela lógica, não, naturalmente, a lógica do processo
secundário ou da razão, mas, não obstante, uma forma de lógica simbólica. De
fato, um analista não raciocina quando interpreta, as melhores interpretações
são aquelas que aparecem espontaneamente. Porém isso apenas significa que um
trabalho raciocinado e lógico (primariamente lógico) se realizou fora do campo
da lógica secundária da razão. É notável, a este respeito, que - enquanto a
lógica secundária se utiliza de processos de linguagem (apresentações de
palavras na teoria freudiana) somente - a lógica primária emprega outros meios:
primeiro apresentação de coisa e também afetos, sem mencionar os atos e estados
corporais. A teoria freudiana do pensamento é conseqüentemente mais rica e mais
abrangente do que as teorias não-freudianas, uma vez que nos oferece diversos tipos de pensamento que são
conflitantes mas ocasionalmente auxiliares. Sugere-se que o fenômeno da
associação entre processos primários e secundários seja chamado processo
terciário”.[16]
Minha
escrita usa amplamente o paradoxo, assim como usa uma mistura de ordem e
desordem. Na medida em que minhas intuições, trazidas à luz do dia, foram
tomando forma, produziram um desenho que, visto a posteriori, apresentava características arborescentes e
rizomáticas.[17]
A seqüência ordenada, arborescente de um tema era muitas vezes interrompida por
um curto-circuito que me levava a uma outra área de eventos, a uma outra região
de pensamento, a um outro domínio de idéias; a ocorrência desta dinâmica
associativa rizomática quase impositiva dava vida, iluminava experiências e
relações mais ou menos distantes do tema tratado, promovendo insólitas e
esclarecedoras aproximações.
Dentro
do processo disjunção/conjunção/distinção permito-me realizar várias
combinações, ora dissolvendo unidades complexas em unidades mais simples, ora o
contrário. Poderei, por exemplo, trabalhar com a unidade múltipla mãe-filho, ou
com a unidade múltipla pai-mãe-filho. Se trabalho com a unidade mãe/filho, a
disjunção/distinção ficará referida ao aspecto pai da totalidade perceptível. A
escolha da extensão da unidade múltipla é estratégica; depende daquilo que
estou querendo comunicar no momento.
Uso
de todos os recursos possíveis - história, antropologia, psicanálise,
filosofia, etc. - para transmitir aquilo que é minha experiência e meu
pensamento. Uso também os mais variados recursos estilísticos com a mesma
finalidade. Meu escopo não é estabelecer alicerces indestrutíveis, nem
justificar o que penso, mas sim, multiplicar os pontos de referência para
facilitar o partilhamento das intuições e para enraizar meu pensamento na
cultura à qual pertenço, tornando minhas idéias e experiências, o mais
possível, acessíveis, aceitáveis e convincentes, sem lhes apor um caráter
impositivo e dogmático que uma escrita tipo árvore-raíz poderia lhe emprestar.
Outras
referências ao método aparecem no decurso da texto, aproveitando o momento
mesmo em que ela se vê perturbada por questões metodológicas que se impõem na
medida em que o discurso se defronta com problemas não alcançados pela lógica
habitual. Trata-se de um recurso metodológico que se apoia na valorização do
devir e do tempo da oportunidade como poderosamente comunicativos.
Espero
ter conseguido transmitir o espírito do texto, o que não é coisa fácil.
Nahman
Armony
[1]CARNEIRO
LEÃO, E., 1991, p. 184.
[2]Ibidem
p. 169.
[3]Ibidem,
p. 172.
[5]
CARNEIRO LEÃO, E., 1991, p. 172.
[6]Ibidem,
p. 189.
[7]Ibidem, p. 191.
[10]MORIN,
E. 1991, p. 15.
[11]Ibidem,
p.43.
[12]Ibidem,
p.19.
[13]Ibidem,
p.44.
[14]Ibidem,
p.71
[15]Ibidem,
p.82.
[17]Cf.
DELEUZE, G. E GUATTARI, F., 1995, capítulo 1 “Introdução: Rizoma” de Mil
Platôs vol. 1. Seguindo as recomendações e ações do mestre Deleuze,
violento sua concepção de rizoma, adequando-a ao meu pensamento. Assim o faço
por considerar sua metáfora esclarecedora e por achar que a curra conceitual é amplamente compensada pela possibilidade de
melhor exprimir meu pensamento.
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