WINNICOTT
E A POSITIVAÇÃO DO BORDERLINE
De imediato farei uma citação de
Winnicott que acabou por se transformar em meu bordão: “Os psicanalistas experientes concordariam em que há uma gradação da
normalidade não somente no sentido da neurose, mas também da psicose (...) Pode
ser verdade que há um elo mais íntimo entre normalidade e psicose do que entre
normalidade e neurose; isto é, em certos aspectos. Por exemplo, o artista tem a
habilidade e a coragem de estar em contato com os processos primitivos aos
quais o neurótico não tolera chegar, e que as pessoas sadias podem deixar
passar para o seu próprio empobrecimento”[1].
Eu
me permito, considerando esta citação e também outros escritos de Winnicott,
propor dois tipos de normalidade e portanto dois tipos de saúde: uma
normalidade/saúde neurótica e uma normalidade/saúde borderline.
Meu
próximo passo será estudar a gradação que vai do transtorno neurótico ao
neurótico próximo da normalidade. Em seguida estudarei a gradação do transtorno
borderline a borderline próximo do normal.
SAÚDE PSÍQUICA E NEUROSE
Imperava
no período moderno/vitoriano a repressão e o recalque. Freud retratou as
conseqüências da repressão/recalque através das figuras do “mal-estar da
civilização”, do Édipo e do superego. O recalque dos afetos produz uma tensão
interna que se traduz em mal-estar. A castração edípica produz uma
identificação do menino com o superego do pai e um recalque dos afetos sexuais
pela mãe.
Numa
perspectiva histórico/sociológica o campo abarcado pela expressão “castração
edípica” se amplia até a repressão/recalque do feminino no homem. O menino, fusionado
e identificado com a mãe em seus primeiros anos, era forçado a, posteriormente,
abrir mão de seus aspectos femininos, (empatia, identificação, “concern”,
compaixão, mutualidade, identificações cruzadas). Esses aspectos, benevolentemente
aceitos como fraquezas femininas, e chamadas pejorativamente de
sentimentalóides, eram depreciados e até desdenhados, ficando confinados ao
gueto do lar do qual o menino deveria se desvencilhar.
Ao
homem cabia ser macho, patriarca, chefe de família, esteio da sociedade. Isso o
obrigava a recalcar seus aspectos femininos para poder ser duro, forte, implacável
na luta pela ascensão social e econômica e impiedoso na defesa do maior bem-estar
possível de sua família. “Homem não chora” era o lema que sintetizava o
recalque de suas sensibilidades. Homem não brinca com bonecas, “não brinca em
serviço”, não permite que sua subjetividade perturbe o raciocínio objetivo e
tem uma única e objetiva meta a alcançar e a persegue com afinco. Homem tem um
superego forte e punitivo e um ideal de ego com valores fixos, pouco
influenciáveis pelos semelhantes, enquanto a mulher mais frágil, já castrada
por natureza, teria um superego frouxo sendo portanto mais infantil e menos
confiável. Como veremos, estes valores, na pós-modernidade, ocuparão no homem o
espaço antes pertencente ao superego imutável. O homem virá a ter valores e
processos femininos.
Outros
valores da modernidade que também têm a ver com o processo de
repressão/recalque são a disciplina, a ordem, o respeito, a organização, o
controle, a objetificação, a reverência hierárquica, a distância afetiva, o
convencionalismo; encontramos também as várias dicotomias inclusive a dicotomia
sujeito/objeto. Podemos ainda listar a probidade, o pundonor, a honra, o brio.
No que diz respeito à sua trajetória
de vida ela é retilínea e acumulativa.
O
neurótico está aprisionado por convenções, regras e leis ficando com a
sua espontaneidade e criatividade coartadas. A barreira do recalque dificulta a
percepção de seu inconsciente, do inconsciente do outro e da subjetividade
circulante.
A comunicação do neurótico é mais superficial que a do borderline pois
está barrada pelo convencionalismo das
palavras e dos valores especialmente os da hierarquia que impedem o diálogo
verdadeiro.
A vida do neurótico está normatizada e segue os trilhos consagrados pela tradição
e pelos preconceitos. A saúde psíquica do neurótico “normal” está resguardada
pelo recalque das grandes inquietações existenciais mas tende a ser tensa e descolorida,
pontilhada de irrelevantes sintomas e pequenas obsessões.
Temos
aí a normalidade neurótica conseguida a custa do recalque de afetos e desejos.
Como, na verdade, a vida sempre foi e será um devir, os aspectos recalcados ou
apareciam na forma de sintomas mais suaves ou mais graves, incapacitantes ou
não, ou sob forma de dupla moral. Usando de um reducionismo drástico, com
finalidade puramente didática, poderíamos dizer que enquanto o homem vitoriano tinha
na dupla moral sua mais eficiente válvula de escape, a mulher tinha de se
conformar com sintomas histéricos.
SAÚDE PSÍQUICA E BORDERLINE
Ao
contrário do neurótico que constituiu um forte superego e um consistente ideal
de ego, o borderline tem um superego maleável e um ideal de ego múltiplo. Partindo
da teoria da insuficiência de identificações como um dos principais fundamentos
do borderline eu propus e proponho o seguinte: substituir a expressão
“insuficiência de identificação” que tem uma conotação negativa por “valências
identificatórias abertas”. A incorporação do interjogo lúdico e amoroso da
criança com a mãe mantém as valências identificatórias abertas desde que não obturadas
por um pai edípico rigoroso e castrador. Neste caso, como já vimos, haverá uma
repressão/recalque do feminino e a modelagem de um macho patriarcal
autoritário.
Se
estivermos diante de uma mãe que não consiga acompanhar as oscilações do bebê e
da criança entre simbiose e individuação/separação, nos depararemos com
valências identificatórias abertas de outro coturno.
No
primeiro caso --- mãe suficientemente boa --- estas valências buscam
preferencialmente o devir do mundo enquanto que no segundo caso --- mãe
insuficientemente boa --- as valências buscam, em primeira instância, uma
personificação de mãe que supra as deficiências de origem. Quando ocorrer a
combinação “mãe insuficientemente boa” e “pai patriarcal castrador” tenderemos
a ter um borderline falso self. (Na combinação “mãe suficientemente boa” e “pai
patriarcal castrador” a tendência é no sentido da neurose).
Em
não havendo a intervenção súbita e brutal de um pai edípico estaremos diante do
homem pós-moderno: o primeiro mais próximo da normalidade (mãe suficientemente
boa) e o segundo pendendo para o pólo do transtorno de personalidade (mãe
insuficiente).
O
tratamento não mais consiste em levantar as repressões indesejáveis
redistribuindo-as de maneira mais conveniente através do juízo de realidade
atual, mas sim de manter ou ressuscitar a capacidade de empatia e identificação da
criança preenchendo na medida do possível os ocos existenciais, liberando as
valências identificatórias para o devir do mundo.
São,
portanto, duas diferentes direções de cura: uma referida à saúde/normalidade do
neurótico e outra à do borderline.
Mas
o que esta teorização tem a ver com Winnicott?
SAÚDE PSÍQUICA, WINNICOTT E BORDERLINE
No
capítulo “O lugar em que vivemos” do livro “Brincar e a realidade”, Winnicott nos
diz que vivemos a maior parte do tempo no espaço intermediário, aquele que
amalgama o subjetivamente concebido com o objetivamente percebido.
O
neurótico reprime/recalca o subjetivo para tentar viver em um espaço objetivo.
O
borderline, guardião do momento de ilusão e do objeto transicional reúne em um
mesmo espaço potencial o subjetivamente concebido e o objetivamente percebido.
O lugar em que vivemos, em que o homem da atualidade vive é esse espaço
intermediário. Um exemplo didático: um viúvo de poucas posses casa-se de novo.
Ele não tem condições de comprar uma nova cama. Existem 3 diferentes maneiras possíveis
de sua nova esposa vivenciar o uso de uma cama já desfrutada pela ex-esposa: 1-
ser absolutamente objetiva e não se incomodar em usá-la; nesse caso estará
reprimindo seus sentimentos. Estamos no terreno da neurose 2- ser absolutamente
subjetiva a ponto de não poder usá-la em circunstância nenhuma. Aqui o terreno
é da psicose 3- sentir-se acossada pelas
fantasias despertadas pela cama, mas podendo negociar com o marido, sendo-lhe
possível até usá-la, acreditando em sua capacidade de lidar com os seus
sentimentos e fantasias. É aqui que nos deparamos com o espaço intermediário no
qual, brincando e se engalfinhando, mesclam-se o subjetivamente concebido e o
objetivamente percebido. É onde encontramos o borderline próximo da
normalidade.
Saúde
psíquica para Winnicott não é ordem, disciplina, dever mas sim holding,
criatividade, concern. Uma pessoa com valências identificatórias abertas
dirigidas para si mesmo, para o outro e para o mundo será capaz de holding,
criatividade e concern exercidos em um espaço transicional. Saúde psíquica para
Winnicott é viver criativamente encarando os enigmas primordiais do ser humano
e do universo. O borderline --- ou homem pós-moderno --- por ser poroso a si
mesmo, ao outro e ao mundo está apto a ocupar este lugar.
O
borderline é fruto de processos de cisão, do exercício de uma onipotência
mitigada e de uma relação parental em que os limites, não são colocados em
termos draconianos como costumava ocorrer no período vitoriano. O que se tornou
problemático foi o excesso de indulgência que muitas vezes inverte a situação.
Se antes eram os pais os donos do poder esta prerrogativa passou a ser dos
filhos. Esta inversão é hoje encontrada com bastante freqüência.
Vamos
acompanhar melhor o processo histórico e as mudanças paradigmáticas acima aludidas:
em um primeiro momento temos uma sociedade repressiva de dupla moral. Surge
Freud e com ele a desconstrução das repressões/recalques com liberação dos
afetos, fantasias e desejos (é claro que Freud, embora importante, é uma das várias
peças de transformação paradigmática, onde operam a física quântica, o
capitalismo de consumo e outras figuras sociológicas). Temos então um primeiro
momento em que predomina o paradigma da repressão e um segundo momento em que prevalece
o paradigma da permissividade.
É
quando surge Winnicott com uma obra da qual se pode extrair um terceiro
paradigma que seria uma síntese dialética do movimento de tese (repressão) e
antítese (permissividade). Este paradigma, como já falei, compõe-se de vários
elementos: holding, criatividade, concern, espaço transicional; mas o elemento
mais forte deste conjunto parece-me ser o holding que permite o aparecimento
das outras características. Este holding significa acolhimento, sustentação e
--- aqui temos algo a ser grifado --- limite. Sua diferença do limite edípico
está no cuidado com que ele é posto e na sua maleabilidade. Ao invés da criança
(e do ser humano) se chocar contra o duro muro edípico machucando e
rebentando a cabeça, o limite é uma
cortina de veludo macio que pode se amalgamar mantendo uma demarcação (ou
delimitação) flexível.
Uma
citação tornará mais vivo o pensamento de Winnicott: “...a criança provoca as reações totais do
ambiente, como se buscasse uma moldura cada vez mais ampla, um círculo que
teria como seu primeiro exemplo os braços ou o corpo da mãe. É possível
perceber aqui uma série – o corpo da mãe, seus braços, o relacionamento dos
pais, o lar, a família, incluindo os parentes próximos, a escola, o bairro com
a sua delegacia, o país e suas leis”.
(p.411 do artigo “Tendência anti-social).
Pois
bem, esta criança que encontra um ambiente suficientemente bom e que não será reprimida
por uma função pai drasticamente severa poderá manter suas valências
identificatórias abertas para o mundo. Teremos então o que podemos chamar de
borderline próximo da normalidade/saúde da pós-modernidade: tenderá então a
fazer relações horizontais, aceitará a multiplicidade de seus desejos e de seus
quase-eus, valorizará mais o auto-aperfeiçamento e a auto-realização do que a
conquista de posições sociais e sucessos financeiros, dará mais importância ao
prazer que ao dever, terá uma trajetória pessoal e profissional não retilínea
mas em zigue-zague, viverá polaridades (onipotência/impotência; maldade/bondade
e outras), descarregará por completo seus afetos, terá a capacidade de realizar
identificações cruzadas (identificação dual-porosa), será múltiplo e
imprevisível, sua organização psíquica o pressionará no sentido de expressar as
emoções na ação, terá problemas pontuais de relação com a realidade, estará
sujeito a se aproximar de agonias impensáveis, estará menos sujeito à culpa
interna que à aflição da desaprovação externa, estará mais ocupado com sua
autenticidade/honestidade do que com a preservação da honra, terá a tendência a pensar através da ação,
estará mais voltado para sentimentos imanentes do que para ideais
transcendentes.
Nahman Armony
set/2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário