As nuvens do tempo desfazem traços do rosto
Tão conhecido e amado.
Carnes amolentadas pendem perfil.
Meu olhar de memória reencontra indícios
Rastros de antigo esplendor
Linhas firmes
Marcas d'água resistindo às liquescência.
Gengivas mastigam boca
Ruminam morte e vida.
De tudo resta uma memória depurada
Uma tristeza
Uma beleza perdida, lembrada
Renovada por outros rosto de mesmo destino.
Nahman Armony
BORDERLINE - PERSPECTIVAS (anotações preliminares)
O BORDERLINE VISTO DE
VÁRIAS PERSPECTIVAS
Perspectiva
psiquiátrica- Eu me basearei do DSM-IV.
Critérios diagnósticos
Esforços frenéticos no
sentido de evitar um abandono real ou imaginário. Critério
sintomático-comportamental. Desenvolvimento: são sensíveis às circunstâncias
ambientais: abandono, rejeição, perda da estrutura externa. Raiva inadequada.
[Exp.: raiva intensa de um grupo de turistas que por décimos de segundos chegou
antes de minha analisando e tomou conta do restaurante ficando ela sem lugar.]
(1) Um
padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos, caracterizado
pela alternância de extremos de idealização e desvalorização. Critério
sintomático-comportamental-objetivo, isto é, que pode ser observado
diretamente. Desenvolvimento: sentem empatia e carinho pela outra pessoa com a
expectativa de que o outro corresponda aos seus desejos; quando isto não
acontece o borderline se frustra e passa a odiar o parceiro. [ do ponto de
vista psicanalítica fala-se de uma falta de amadurecimento tendo a pessoa se
mantido em um estado infantil incapaz de lidar com perdas e frustrações,
necessitando de viver em permanente simbiose, não suportando ficar sozinha
consigo mesma,, não tendo autonomia, não conseguindo elaborar perdas e
frustrações.].
(2) Perturbação
da identidade: instabilidade acentuada e persistente da auto-imagem ou do
sentimento de self. Critério sintomático por narração; podemos chamar de
critério subjetivo pois não é observado diretamente, mas depende da informação
do borderline sobre sua subjetividade. Desenvolvimento: mudanças súbitas acerca
de carreira, de opiniões, identidade sexual, valores, tipos de amigos. De
suplicante a vingador implacável. Sentimento de não-existência. Aqui o DSM
introduz um critério dinâmico ao dizer que o sentimento de não-existência está
ligado à falta de um relacionamento significativo, à falta de carinho e apoio.
(3) Impulsividade
em pelo menos duas áreas potencialmente prejudiciais a si próprio: gastos
irresponsáveis, sexo inseguro, direção imprudente, reações explosivas.
(4) Ameaça
de comportamento suicida ou automutilante.
(5) Instabilidade
afetiva reativa às situações que se dissipa em horas ou dias.
(6) Sentimentos
crônicos de vazio.
(7) Raiva
inadequada e dificuldade em controlar a raiva.
(8) Ideação
paranóide transitória relacionada ao stress. Graves sintomas dissociativos
(despersonalização como exp.) transitórios relacionados ao stress.
TRATAMENTO
1- O
mais importante é a psicoterapia e a minha preferência é a terapia de base
psicanalítica. Pelo que pude entender de minhas leituras, todas as
psicoterapias utilizam processos psicanalíticos.
2- A medicação poderá e deverá ser usada como um
coadjuvante do tratamento para situações de muito sofrimento, muita
resistência, ou de perigo de vida. O principal grupo de medicamentos é o dos
estabilizadores do humor. A resposta ao medicamento é muito pessoal. Podemos,
porém, de uma maneira geral dizer (com base nos estudos experimentais) que a
Carbamazepina tem uma ação sobre o descontrole dos impulsos e sobre a
agressividade. Com isto se alcançam as reações intensas às frustrações que o
borderline apresenta. Também as oficinas protegidas em alguns casos podem ser
de grande ajuda, pois lá, com boa orientação, aprendem a lidar com os sentimentos
que pessoas diferentes delas, nela despertam. Tive uma cliente muito exigente
consigo mesmo que não admitia errar. Se alguém lhe apontasse um “erro” reagia
com grande intensidade, ou sofrendo, ou agredindo. Por esta razão, embora bem
preparada, não conseguia permanecer em nenhum emprego. Com a ajuda dos
cuidadores de uma oficina protegida aprendeu a lidar com os seus sentimentos de
menos-valia e melhorou sua capacidade de enfrentar o mundo tal como ele é.
Sobre a psicoterapia
psicanalítica da atualidade falaremos mais adiante depois de entendermos a
relação do borderline com a subjetividade de nosso tempo atual.
PERSPECTIVA
PSICANALÍTICA
Inúmeros autores
estudaram o borderline sob a perspectiva psicanalítica. Quando falo em
perspectiva psicanalítica penso em ir além do fenomênico, da simples descrição
dos acontecimentos. Os psicanalistas em geral e de forma geral, concordariam
com a fenomenologia apresentada pelo DSM IV: medo de abandono, intolerância à
frustração, relacionamentos intensos e instáveis, perturbações de identidade,
impulsividade, grande reatividade aos acontecimentos, pensar com a ação mais
que com o raciocínio, sentimentos
crônicos de vazio, raiva inadequada, dificuldade em controlar a raiva, ideação
paranóide transitória relacionada ao stress. Na perspectiva psicanalítica
procura-se encontrar motivações inconscientes para o modo de ser borderline.
Aqui, porém, não posso deixar de evocar a famosa metáfora do elefante a ser
descrito por um grupo de cegos. A descrição variava de acordo com a parte do
corpo do elefante que o cego tocava. Repasso esta anedota para lembrar que as
motivações inconscientes serão vistas de maneiras diferentes por diferentes
autores. Ou porque se apresentam motivações e dinâmicas diferentes ou porque a
ordem de importância das motivações varia. Vamos visitar a perspectiva de
alguns autores:
WINNICOTT: a questão
do borderline remete-nos a dinâmicas primitivas ocorridas na época da absoluta
predominância da relação mãe-bebê, portanto de uma dinâmica dual. A questão
sexual perde importância diante de problemas mais primitivos de existência,
sobrevivência e identidade.
LUIZ CLÁUDIO
FIGUEIREDO: em algum momento da infância a percepção da existência de um não-eu
torna-se consistente. O bebê agora diferencia a si mesmo do outro e do mundo
externo. Ele estabelece fronteiras. Para o autor em foco o bebê que pode vir a
se tornar borderline construiu precariamente, inadequadamente estas
fronteiras.. Não teria havido um investimento suficiente; a mãe não teria
facilitado a formação de um eu (o senso de realidade do eu depende da realidade
do não-eu); não teria estimulado o narcisismo da criança. Usando a teoria de
Mahler ele se refere à fase de separação/individuação na sub-fase da
reaproximação. Em algum momento a criança tenta explorar o ambiente,
contatando-se com ele. Mas tem medo de perder a mãe e então volta a procurá-la.
É preciso que a mãe perceba e acolha estes movimentos para a criança poder
sentir-se compreendida. Um incitamento à liberdade nos momentos de
reaproximação do bebê, ou um incitamento a permanecer grudado na mãe nos
momentos de afastamento fará com que, na liberdade tenha medo de perder-se da
mãe, e na proteção, medo de perder-se nela. Estes desencontros são chamados por
Figueiredo de “ataques às fronteiras”. A precariedade das fronteiras facilita o
alargamento e o retraimento do eu. Quando alargadas ficam sob o domínio do
fantasmático perdendo sua objetividade e sua capacidade traumática. Quando retraídas
evita manter contacto com os objetos. Figueiredo, da mesma maneira de Federn,
fala da necessidade de haver um investimento narcísico nas fronteiras.
GREEN: angústia de
separação e angústia de intrusão.
ARMONY: carência de
identificações saudáveis, fome de identificações, valências identificatórias
abertas em busca de uma personificação para dela depender.
Carência de
identificações: uma identificação plena, isto é, não carente, tem a ver com a
capacidade da mãe suficientemente boa – na maioria das vezes - empatizar e
atender às necessidades momentâneas de proteção ou de liberdade, aceitando-as e
validando-as. Caso contrário o borderline eternamente procurará uma relação do
tipo maternal para tentar viver uma identificação empática. Um outro caminho
possível de equilibração é desviar vicariamente as valências identificatórias
abertas da figura materna (ou função paterna) para uma relação mais direta com
a sociedade e a natureza.
KERNBERG: difusão de
personalidade, clivagem, teste de realidade conservado. A clivagem é
secundária; é uma clivagem defensiva.
BERGERET: Prioriza a
busca de relações anaclíticas. A perda do objeto anaclítico provoca depressão
neurótica.
ANDRÉ GREEN- medo de
invasão e de abandono.
ARMONY- função materna
mal exercida. Em que época? Aqui uma hipótese: na fase de
individuação-separação postulado por Margaret Mahler a pessoa materna não teria
podido responder adequadamente às demandas do bebê que ora necessitava de
dependência-proteção ora de liberdade-separação. Este bebê que preferirei a
partir de agora chamar de ser humano não ganha uma tranqüilidade quanto a ser
compreendido e amado. Um núcleo de intranqüilidade se instala nele. Ele
continua necessitando preencher a lacuna que ficou, procurando para isso uma
figura maternal, mas desconfia que esta figura maternal não o compreenderá e o
atenderá. Fica então muito susceptível a qualquer sinal de não ser
compreendido. O que pode ainda tornar o quadro mais complicado é ele ter medo
ao mesmo tempo de intimidade e de distância. Paradoxalmente necessita dos dois
ao mesmo tempo. É preciso muita disponibilidade e sensibilidade da figura
materna para poder aos poucos dissipar em parte as dúvidas de que ele atendido
em suas necessidades. A inquietude pode se manifestar por uma excitação
hipomaníaca, por ansiedade e por agressividade. Há fases também de
recolhimento. Como ele não sabe a quem dirigir sua insatisfação e seu ódio eles
se manifestam nas mais diversas situações. O borderline fica porosamente ligado
à figura materna. É possível redirecionar essa porosidade para objetos da
cultura e/ou para a natureza e a beleza. Sua porosidade quando bem direcionada
permite acompanhar o movimento das pessoas e da cultura. Surfar nas ondas da
vida.
A POROSIDADE é
uma das proposições teóricas relativas ao borderline. Ela pode se manifestar
como identificação projetiva quando em estado bruto, ou, quando trabalhada,
como capacidade de identificação homóloga e complementar. Quanto mais forte
forem a repressão e o recalque, quanto mais sólida for a identificação com a
figura ou função paterna menos porosidade existirá. As identificações poderosas
e as repressões e recalques associados ao temor do “chefe da horda” entopem os
canais da sensibilidade, tornando a pessoa muito objetiva por um lado, mas por
outro dificultando a empatia, a capacidade de identificação transicional
(dual-porosa), a experiência de compaixão, etc.
Outra proposição
teórica é a ONIPOTÊNCIA MITIGADA. Dar a explicação que está no meu
artigo “Do Borderline ao Homem Transicional”.
Outra proposição
teórica é o uso aumentado do PROCESSO DE DIVISÃO e, portanto um uso
diminuído do recalque. Quando não estão em estado de recalque os vários desejos
e projetos ficam ao alcance da consciência. Como sempre existe
incompatibilidade entre eles é preciso realizar uma compartimentação para
evitar a instalação de uma confusão mental. Numa mesma conversa o borderline
dirá que fará três coisas diferentes e incompatíveis e não ligará para a
contradição. A contradição passa a ser um paradoxo.
PERSPECTIVA
SÓCIO-PSICANALÍTICA
Freud não tem em sua
obra a categoria de caso-limite. Não há nenhuma menção ao borderline em sua
obra, embora, segundo André Green, o “Homem dos Lobos” seja considerado por
muitos psicanalistas como borderline. O universo patológico de Freud se divide
entre Neurose, Psicose e Perversão. Lacan retomou com força esta classificação
e afirmou que estas três diferentes estruturas não são modificáveis. Uma vez
neurótico, psicótico ou perverso, para sempre o será. O recalque (verdrängung)
seria o processo psíquico básico do neurótico; a rejeição (verwergung) do
psicótico; e a recusa do perverso.
A PALAVRA NEUROSE
apareceu na literatura por volta de 1790 trazida por William Culen para
designar quadros sintomáticos sem base orgânica. Freud a retomou em 1893 e a
desenvolveu. A sintomatologia da neurose dependia do “retorno do
reprimido(“recalque”), e esta repressão/recalque tinha a ver com proibições em
relação a objetos e acontecimentos desejados. Estas seriam as neuroses de
defesa de origem psíquica. Freud admitia um outro tipo de neurose que chamou de
“neuroses atuais”, esta de origem fisiológica.
O TERMO PSICOSE
apareceu na literatura em 1845, trazido por Ernst Von Feuchtersliben. Em 1894
Freud fala de uma psicose em referência a “confusão alucinatória”; neste caso o
afeto seria juntamente com a representação tratados como se nunca tivessem
existido. Lacan chama a esse processo de defesa de forclusão. Mais tarde, em
1911, Freud analisou através do livro “Memórias de um doente dos nervos”,
publicado em 1903, a psicose paranóide de
Schreber, o autor do livro. Para essa análise usou de conceitos
psicanalíticos, incluindo definitivamente a psicose na Teoria psicanalítica.
PERVERSÃO, um termo de
uso comum é empregado por Freud como conceito para dar conta de relações
parciais de objeto e de todos os comportamentos sexuais que não tenham como
objetivo a penetração do pênis do homem na vagina da mulher com a intenção de
chegar ao orgasmo, obedecendo ao mandato genético da conservação da espécie.
Freud nomeia a criança com perversa polimorfa, pois ela ainda não teria
canalizado a sexualidade para o pênis que deverá vir a ser o principal órgão
sexual. Em janeiro de 1897 Freud já usa a palavra perversão em uma carta para
Fliess. Nos Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud discorre
minuciosamente sobre os muitos atos perversos possíveis. Lá já está colocada a
idéia de que a criança é uma “perversa polimorfa” o que virá a ser explicitado
por volta de 1916 na 13ª conferência da “Introdução à Psicanálise”. Pretendo
estabelecer um elo (frágil) entre borderline e perversão e por essa razão quero
acentuar que toda perversão está ligada a alguma atividade sexual, enquanto que
borderline é mais inclusivo abrangendo o psiquismo total. Também será preciso
estudar o artigo “A cisão do ego no processo de defesa” pois lá Freud apresenta
uma dinâmica que também compõe o modo de ser borderline.
Nos primeiros tempos
da psicanálise os psicanalistas que seguiam estritamente os conceitos
freudianos trabalhavam teoricamente com essas três estruturas. Com a releitura
de Lacan da obra de Freud reforçou-se esta tendência entre os mais ortodoxos.
Mas sempre houve pessoas que se permitiam um pensamento mais livre. Através
dessas pessoas uma nova categoria foi-se insinuando na teoria psicanalítica: o
borderline que acabou por ser aceito como parte da psicanálise. Pode-se dizer
que até mesmo algumas escolas lacanianas passaram a tolerar a menção a
borderline especialmente pela releitura que Jacques Alan Miller fez do que é
chamado O Último Lacan, questionando o absolutismo das estruturas neurótica e
psicótica e afirmando uma continuidade entre estas duas estruturas, o que
permite a introdução da modalidade borderline e casos-limite. Vejamos um pouco
da história do borderline.
BORDERLINE:
aparentemente este termo foi introduzido na literatura médica por C.Hugues em
1884 na forma de borderland e se referia a pessoas “passavam quase toda sua vida próximos àquela linha, às vezes de um
lado, às vezes do outro”.
Em 1925 Wilhelm Reich
usa a palavra borderline para pessoas que apresentam ambivalência, predomínio
da agressividade sobre a amorosidade, prejuízo do ego e do superego, narcisimo
acentuado.
Já próximo à década de
1940 aumenta o cerco que o borderline
faz à psicanálise até então fechada para ele.
Stern em 1938 fala da imprecisão e incerteza que o chamado por ele
“neurótico borderline” desperta, pois ele aponta ao mesmo tempo em duas
direções: para a psicose e a neurose. Esta é uma formulação que pode ser
chamada de psiquiátrica. Em outro momento ele pensa como psicanalista ao dizer
que o borderline resulta da deficiente afeição materna sofrendo um severo dano
narcísico, etc. (p.11).
Deutsh em 1942 fala de
“personalidade como se” que é uma modalidade de borderline.
Quem enuncia
firmemente o termo borderline de uma maneira clara é Knight em 1954. Ele o faz
dizendo da “difícil decisão” quanto a sua classificação, pois é e não é ao
mesmo tempo neurótico e psicótico, que o leva a classificá-lo como borderline.
Outros analistas da
década de 1950 já distinguem o borderline do psicótico e do neurótico. Foi
uma década muito fértil no estudo do
borderline e lançou as bases deste modo de ser, fenomenologicamente e
dinamicamente. E é justamente em meados do século XX que ganha força um novo
paradigma, o paradigma da permissividade. Não é coincidência que o borderline
tanto na sua modalidade “normal” quanto patológica tenha avultado nesse
período. Logo falarei dos 3 paradigmas que, neste 3º tópico sócio-psicanalítico
iremos percorrer e que são: paradigma
repressivo, paradigma permissivo e paradigma em formação. Mas sinto que, antes,
é necessário fazer algumas discriminações.
NEURÓTICO,
PSICÓTICO, BORDERLINE
O neurótico tem como
principal defesa o recalque. Esta defesa que é, ao mesmo tempo, estruturante de
sua personalidade permite-lhe uma visão mais objetiva da realidade, pois impede
que seu julgamento e suas ações/reações sejam perturbados por suas fantasias e
fragilidades psíquicas, evitando o uso de projeções e introjeções que
distorceriam a realidade objetiva. Exemplificando: se imaginarmos o neurótico
numa platéia assistindo a uma conferência, ele a ouvirá sem permitir que suas
fragilidades e suas associações pré-conscientes e inconscientes desviem a sua
atenção ou façam-no agir intempestiva e inadequadamente. Ele percebe o que é um
conferencista, uma conferência, uma platéia, um indivíduo na platéia. Ele
percebe o contexto, pois tem a atividade simbólica bem desenvolvida e evita
contaminar seu conhecimento com seus problemas. Suas intervenções serão
adequadas ao contexto.
O psicótico vive em um
mundo de fantasia criado por ele próprio. Pode se isolar do mundo, não sendo
então atingido pelos acontecimentos externos ou pode se conectar com o mundo.
Mas isso ele fará através de identificações projetivas e introjetivas, o que
significa que estará vivendo o seu mundo interno delirantemente exteriorizado.
Talvez fosse melhor dizer que não há uma separação entre mundo interno e mundo
externo. O mundo está impregnado por suas fantasias, é visto através da ótica
de suas fantasias. Numa conferência ele reagiria de acordo com as fantasias
suscitadas pela fala do conferencista, sem perceber sua inadequação podendo
então reagir de forma dramática e extemporânea. Certamente será retirado do
recinto com grandes probabilidades de vir a ser internado numa instituição
psiquiátrica.
O borderline diante de
um forte estímulo do conferencista sabe que, naquele contexto hierárquico
(simbólico) não é adequado interferir, mas a necessidade de descarregar ou
participar é tão forte que ele acaba intervindo. Ele sabe que é inadequado
intervir, mas não se contém. Ele está ligado à objetividade consensual, mas não
consegue deixar de transgredi-la. Porém, se o fizer com charme e inteligência –
o que é freqüente entre os borderlines inteligentes conseguirá conquistar o
público para aquilo que poderia ser fora de propósito, não fosse sua capacidade
de sedução. Ele junta duas realidades: a de seus desejos idiossincrásicos e a
realidade simbólica compartilhada pelo social.
Outra situação: na
terapia analítica a objetividade ( ou sua tentativa) do neurótico dificulta ou
impede o aparecimento e a percepção dos sentimentos transferenciais. Para ele o
analista é um especialista, um expert, um detetive da alma que diante dos
sintomas procurará suas origens fazendo uma aliança terapêutica, uma aliança
investigativa com o analisando. Os dois, em conjunto, têm a tarefa detetivesca
de achar as causas dos sintomas. Trata-se de uma relação de tarefa em
que entraria mais a perspicácia que a sensibilidade. No decorrer da terapia a
sensibilidade vai ocupando o lugar da perspicácia. Sinal de que o neurótico
tornou-se mais poroso, mais sutilmente perceptivo em relação à sua própria
subjetividade e à subjetividade do outro e está evoluindo no tratamento na
dimensão borderline.
O psicótico faz
projeções e introjeções de seu analista de acordo com seus temores, inclinação,
fantasias. O analista não é um analista, mas um demiurgo onipotente e
onisciente que tudo pode tanto para o bem quanto para o mal. Nas áreas
psicóticas nem mesmo se pode falar de porosidade, mas sim de uma ausência de
limites o que faz com que o mundo interno e externo se emaranhem tornando-se
uma coisa só. O analista ora aparece como a fada benfazeja, ora como um
implacável destruidor. Não há a vivência de uma hierarquia, de um contexto; os
títulos do analista em nada interessam ao psicótico, assim como a vida pessoal
do analista. O analista é uma figura de seus sonhos e pesadelos.
O neurótico busca a objetividade absoluta.
Para atingi-la ele teria – seguindo sua organização epistemológica – de
recalcar suas fantasias, seus sentimentos e emoções, pois o aparecimento deles
na consciência perturbaria a pureza do raciocínio. Esta pureza seria mais facilmente alcançada
pela adesão à palavra abstrata, aquela que é símbolo de 2º grau, isto é, aquela
que representa, que substitui o acontecimento vivo. Esta noção será mais
facilmente compreendida se nos reportarmos ao mundo inteligível de Platão, onde
se encontraria a Verdade, em contraposição ao mundo sensível que seria um mundo
ilusório e enganador.
Para o psicótico a
objetividade (o espaço objetivo de Winnicott) é inalcançável, pois ele mistura
aquilo que seria mundo interno com o mundo externo. Isto significa que para ele
existe um só mundo, o seu mundo de sentimentos e fantasias projetados nas
coisas exteriores que por sua vez são introjetadas sob a perspectiva de seus
sentimentos e fantasias. Vive mergulhado no mundo sensível transformando as
palavras em coisas da ordem da concretude.
O borderline está ao
mesmo tempo conectado com a objetividade consensual e com sua própria
subjetividade. Como o psicótico, está conectado com suas fantasias mais
primitivas, cuidando porém de que elas não impeçam a sua atividade de percepção
objetiva. Remeto aqui ao conceito winnicottiano de objeto objetivamente
percebido e de objeto subjetivamente concebido. Enquanto o neurótico tenta
viver no campo do objeto objetivamente percebido, o psicótico vive no
subjetivamente concebido e o borderline vive a ambigüidade e o paradoxo destes
dois espaços. Podemos dizer que o borderline tem um pé na objetividade e outro
na fantasia o que o aproxima da concepção freudiana de perversão, no que diz
respeito justamente à ambiguidade desta dupla inserção.
Porosidade- neurótico
com fronteiras pouco porosas, borderline com fronteiras porosas, e psicótico
sem fronteiras com confusão eu/não-eu. A porosidade favorece a introspecção.
Onipotência- neurótico
recalca a onipotência e chega à potência. Psicótico vive na onipotência.
Borderline alterna onipotência mitigada e impotência.
Ótica neurótica: dever
e obediência acima de tudo, valorização da palavra representacional (símbolos
de 2ª ordem), respeito à lei e às convenções.
Ótica borderline:
criatividade, multiplicidade, valorização da palavra expressiva (símbolos de
1ª ordem), predomínio da singularidade,
relativização e uma certa indiferença em relação às leis e regras, acesso ao seu
inconsciente e ao inconsciente alheio.
A
GRADAÇÃO BORDERLINE
GRINKER - Grinker[1]
fala de quatro níveis de borderline: Grupo 1- O borderline psicótico –
comportamento inapropriado e não adaptado. Deficiente senso de identidade e de
realidade. Comportamento negativo e raivoso em relação às pessoas.
Depressão. Grupo 2- O borderline nuclear
– Envolvimento flutuante com outros. Expressões abertas e atuadas de raiva.
Depressão. Ausência de indicações de um self consistente. Grupo 3 –
Personalidades ‘como se’ – comportamento adaptado e apropriado. Relações
complementares. Pouca espontaneidade e afeto em resposta a situações. Defesas:
afastamento e intelectualização. Grupo 4- O borderline neurótico – Depressão
anaclítica (semelhante à da infância). Ansiedade. Semelhança com caráter
narcisista neurótico. Influenciado por essa sistematização agrupei esse
conjunto humano em borderline pesado (patológico), borderline falso-self e
borderline brando (próximo da normalidade.
Exemplo de borderline
pesado: Pedro é um jovem adulto da classe média, casa dos 20, mora com os pais,
não trabalha e acabou de abandonar a Faculdade.
A sua sintomatologia é múltipla e
variada o que é uma característica do borderline; Vejamos: conversão (paresia - semi-paralisia - da mão direita). Crises
de grande ansiedade. Crises de grande depressão. Diarréias súbitas
(somatização). Tinha medo de sair à rua e quando o fazia sentia-se superior aos
transeuntes e temia ser atacado por eles. (Fobia; sentimentos paranóides;
sentimentos de desvalia). Sentia-se olhado pelos passageiros da barca que o
estariam criticando por não trabalhar. Sentimentos de rejeição em relação aos
pais. Ia muito a festas onde participava de desordens. Em uma delas, por
exemplo, foi expulso juntamente com outro rapaz por estarem se excedendo,
derramando bebidas no chão, jogando pratos fora e beijando-se publicamente
(conduta psicopática) Pedro mesmo fora de festas embriagava-se. Também fumava
maconha. Certa ocasião, em uma bacanal, levou uma moça para um quarto onde ela
se recusou a ter relações sexuais; esbofeteou-a, urinou sobre ela e chamou
amigos para que juntos a currassem (conduta perversa). Participa de arruaças.
Tem predominantemente relações heterossexuais mas já teve atividades
homossexuais. Muda de itinerário por medo
de encontrar um guarda que o leve à prisão. Isto é mais forte quando está
“levando uma mulher” para um motel. O percurso é feito com enorme ansiedade,
com medo de ser interpelado por um guarda.
Exemplo de borderline
leve: Paula- vive um estado constante de alegre excitação interrompido por
períodos de exaustão quando descansa e dorme, o que a recupera. Seu estado de
agitação é usado produtivamente no trabalho e na diversão. Está disponível para
relações dual-porosas envolvendo-se intensamente com os acontecimentos
externos, com histórias ficcionais, com as vitórias, fracassos, prazeres e
dores de seus amigos que são muitos, de vários graus. Com isso vive grandes
alegrias e grandes sofrimentos de uma maneira quase tão intensa quanto vive
suas próprias derrotas, triunfos e frustrações. Diante de situações inusitadas
e chocantes fica paralisada, sem reação, sem conseguir articular pensamentos e,
embora raramente, com distúrbios de identidade (certa vez esqueceu o próprio
nome numa situação altamente estressante). É uma pessoa bondosa, sem
ressentimentos. Sempre que pode ajuda quem está à sua volta mesmo que tenha de
se sacrificar pessoalmente. Mas isto tem um limite, pois seu instinto de
sobrevivência é poderoso sendo capaz de fortes atos defensivos/agressivos.
Muito susceptível facilmente sente-se atacada e ridicularizada; quando não se
paralisa descarrega (desde que haja segurança) sua raiva no momento da situação
ou, mais freqüentemente após, em ambiente protegido. Em pouco tempo recupera-se
das feridas narcísicas restabelecendo relações dual-porosas. Faz também
relações de amor/ódio com objetos inanimados. Exp.: Seu carro, individualizado
e humanizado por um nome próprio, e amado como se fosse um ser humano, certa
vez enguiçou em um momento em que dele precisava para resolver questões
urgentes. Ela o tratou como um amigo que a tivesse traído, socando-o, chorando
e gritando a pergunta “por que você está fazendo isto comigo? Eu não mereço
isto.” Após descarregar os sentimentos gerados pela sensação de decepção pôde
tomar as providências objetivas que a situação requeria. É impulsiva o que a
faz agir com alguma freqüência, de forma inadequada, mas é capaz de
imediatamente corrigir a conseqüência de sua impulsividade restabelecendo uma
boa relação com a realidade. Por outro lado a impulsividade leva-a a querer
rapidamente resolver os problemas que aparecem o que faz dela uma pessoa
dinâmica e eficiente, mais acertando que errando pois está sempre disposta a
corrigir seus deslizes. Quando em situações de grande desejo ou sentidas como
de grande perigo, tem diminuída sua capacidade de usar o pensamento
objetivo. Um bom exemplo desta
perturbação de sua relação com a realidade objetiva aconteceu em um vôo em zona
de turbulência. Ela, aparentemente calma e controlada, e como se fosse a coisa
mais natural do mundo, chamou a comissária de bordo e muito seriamente pediu
para falar com o piloto, pois queria orientá-lo no sentido de evitar a zona de
turbulência. Passado o perigo ela se deu conta do bizarro de seu ato, e pôde divertir-se
com ele. Embora o desejo, o medo e fortes convicções façam com que as idéias
subjetivamente concebidas imperem por períodos variáveis de tempo, elas acabam
se integrando numa visão objetivamente percebida. Com isso o seu trabalho é
ousado, imaginativo, original, fecundo, estimulante e bem-sucedido. Um trabalho
que de início pode facilmente ser criticado e mesmo ridicularizado, mas que
acaba por se impor por sua eficiência pragmática. É um trabalho amoroso que
leva em consideração os aspectos subjetivos do humano. Um trabalho claramente
realizado em um espaço potencial e que acabou por lhe valer um reconhecimento
expresso em prestígio, homenagens e convites para trabalhos de excelência.
Sofre bastante com as somatizações e frustrações decorrentes de suas relações
pessoais e profissionais. Uma de suas muitas alegrias é ser muito solicitada
como profissional e como amiga.
O borderline brando tende mais à multiplicidade do que ao
polissintomático, o que significa que ele não inibe os vários aspectos de sua
personalidade em favor de um único aspecto, mantendo as suas várias
potencialidades disponíveis para serem usadas. No que diz respeito à
sensibilidade/susceptibilidade narcísica ela apresenta-se menos como uma ferida
e mais como um instrumento de conhecimento do outro; a permeabilidade das
fronteiras do eu, que poderia torná-lo vulnerável às afetações do outro
mantém-se como sensibilidade que permite conhecer o outro, propiciando o
desenvolvimento de afetos e sentimentos pertinentes à relação em curso. Assim,
ao invés de um fechamento nas próprias fantasias, há uma abertura para o
conhecimento das fantasias do
outro. A permeabilidade das fronteiras, que no borderline pesado pode ser usada
contra o outro ou pode dar lugar a um excesso de identificação projetiva e
introjetiva, no borderline brando muda de qualidade, transformando-se em
identificação dual-porosa, uma identificação que permite um regime de trocas
fantasmáticas e afetivas contínuas entre os seres humanos entre si e com o
mundo circundante. A porosidade tanto funciona em relação ao mundo externo (a
um outro humano, sim, mas também em relação à cultura, à natureza, ao planeta),
quanto ao mundo interno, isto é, na percepção do próprio inconsciente. Em se
tratando do borderline brando, as trocas fantasmáticas e afetivas ocorrem em um
espaço potencial ou a ele equivalente, o que significa que ao objeto subjetivo
superpõe-se o mesmo objeto objetivamente percebido. A identificação dual-porosa
mostra-se um precioso instrumento de conhecimento, relação e comunicação,
permitindo surfar nas ondas do devir, possibilitando ao borderline deslizar e
se enlear nas sutis e infindas variações de um mundo em constante mutação. A
tendência à dependência do borderline pesado, traduz-se no borderline brando
pelo reconhecimento da necessidade afetiva de um outro também dual-poroso, de
tal maneira que um regime de trocas, onde vigore tanto o subjetivo quanto o
objetivamente percebido, possa ser estabelecido.
O estado de
identificação em devir encontrado no borderline brando (o homem pós-moderno)
entrelaça-o à subjetividade contemporânea como sujeito criativo e
transformador.
Feitas estas
discriminações podemos nos dedicar à questão sócio-psicanalítica através dos
três paradigmas que arranquei da história social na qual a história da
psicanálise está inserida. Começarei pelo século 19, período vitoriano que
caracterizarei como um período repressivo, embora não ignore a contribuição de
Foucault que acentua o aspecto da proliferação dos discursos sobre a
sexualidade. Mas, ele também fala de uma sociedade disciplinar, e, em minha
opinião, quando se fala de disciplina está-se falando de repressão. Para mim,
não há dúvida de que a repressão é um aspecto importante do período vitoriano,
especialmente para a psicanálise. Tão importante que escolho falar deste
período que é justamente quando se dá a formação de Freud e a construção de
suas primeiras teorias. Aos poucos a subjetividade humana vai sendo invadida
pelo paradigma permissivo que por sua vez vai cedendo seu lugar a um novo
paradigma que não me atrevo a nomear, pois ainda está em formação. Um paradigma
não substitui outro, mas sim, convivem lado a lado, enquanto um vai sendo
esquecido e o outro vai se fortalecendo na medida em que as gerações se
sucedem. Pode-se também perceber uma interpenetração de paradigmas o que nos
leva ao processo de evolução das idéias de Hegel, com sua tríade,
tese-antítese-sintese.
GRADAÇÃO DO NEURÓTICO
NORMAL AO NEURÓTICO PATOLÓGICO
PARADIGMA
REPRESSIVO
A mentalidade
vitoriana domina a 2ª metade do século XIX. Na verdade sua influência
estende-se até o século XX embora já partilhando com outros paradigmas o espaço
social. Mesmo, hoje, em 2012, segunda década do século XXI, nos ainda o vemos
em ação. A Rainha Vitória reinou de 1837 a 1901. Neste período a Inglaterra
conheceu um período de crescimento econômico e de expansão de seu poder e
influência no mundo. Os valores éticos da sociedade britânica estenderam-se por
todo o mundo ocidental civilizado. Freud cresceu dentro desta mentalidade, destes
valores éticos, dentro dos conceitos e preconceitos vitorianos. Rigidez,
moralismo, intolerância, restrições e preconceitos sexuais, rígido código
social de conduta pública são características da mentalidade vitoriana. Tal
comportamento era obtido mediante a repressão social. Várias figuras de relevo
denunciaram essa mentalidade como responsável pelo sofrimento psíquico das
pessoas. Freud em 1908 escreveu o artigo “A moral civilizada e a doença nervosa
moderna”. Neste artigo ele aponta a repressão sexual como responsável pelo
sofrimento neurótico. O desejo recalcado ao tentar se realizar encontrava a
barreira das regras morais que impedia sua realização direta, mas não impedia
que esse desejo aparecesse na consciência e na ação como sintoma. Foi o que denominou
de volta do reprimido. Sintomas obsessivos, fóbicos, conversivos. Freud
atribuía à repressão e recalque da sexualidade a origem dos males psíquicos.
Talvez se possa dizer que a repressão sexual era o mais evidente na moralidade
vitoriana, tentando reger a vida sexual das pessoas e fazendo surgir a
hipocrisia social, a dupla moral e as neuroses psicogênicas. Por que a
sexualidade? Dois instintos básicos e de uma extrema força movem a humanidade.
O instinto de sobrevivência e o instinto sexual. A sobrevivência de uma certa
forma estava garantida para uma classe que podemos chamar de privilegiada mas o
instinto sexual que é uma poderosa força básica ao ser impedida de se
manifestar passou a ocupar o primeiro plano das preocupações humanas. A
repressão sexual de tal forma dominava a cena social que as outras repressões
ficaram na obscuridade.
REPRESSÃO DA PALAVRA -
Até a época cientificista a palavra tinha uma imprecisão que permitia usá-la
POETICAMENTE, PARADOXALMENTE, METAFORICAMENTE. A palavra estava integrada no
conjunto corpopsiquemente. Havia então uma liberdade no seu uso e ela podia ser
ouvida em sua polissemia permitindo ao ouvinte dar uma interpretação singular
acorde à sua subjetividade. A denotação era uma parte mínima da palavra,
cercada que estava por todos os lados pela conotação, permitindo seu amplo uso,
uma grande liberdade de interpretação. Com a ciência aboliu-se a conotação. A
palavra tinha de ser precisa e designar exata e conceitualmente o objeto, não
permitindo nenhum devaneio. A palavra passou a ser um produto da mente
dissociada do corpopsique. Acabava-se com a poesia e a diversidade da fala.
Passou a haver a preocupação de se dizer a palavra precisa, exata, o que
TRUNCAVA o discurso tornando-o esquemático e desinteressante. A palavra perdeu
o seu encanto, sua liberdade, seu potencial poético. Todos deveriam entender as
coisas exatamente da mesma maneira. Isto é que era ser científico. A riqueza da
diversidade humana se perdia. Aquilo que na física clássica era útil,
necessário, eficiente, tornou-se uma camisa de força para a manifestação da
complexidade, diversidade e sutileza da alma humana. Eliminava-se parte do
mundo, simplificando-o através da ciência. Tudo poderia ser explicado por
cálculo. Mas para isso a palavra tinha de ser rigorosamente exata,
rigorosamente intelectual, rigorosamente mental reprimindo-se o psiquecorpo e
conseqüentemente as conotações da palavra. E a poesia perdida nos faz falta.
Ela está ligada ao encantamento do mundo, ao afeto, ao sentimento oceânico, à
criatividade, condições necessárias para um viver integrado e saudável, onde
corpo e mente formam uma unidade.
REPRESSÃO DOS ASPECTOS
FEMININOS DO SER HUMANO: Numa sociedade
machista, patriarcal, a mente é valorizada em detrimento do corpopsique. A
objetividade, o intelecto, o poder, a riqueza material ficam em um patamar
muito superior à sensibilidade, empatia, compaixão, amor. O corpopsique é
ignorado, negado, colocado em segundo plano. As características femininas são
vistas como fraquezas, necessárias sim, mas que devem ficar confinadas ao lar.
E mesmo aí elas são desvalorizadas, servindo para realçar a força da
racionalidade (isenta de sentimentos) do homem. Há uma clara dicotomia. Homem é
homem, mulher é mulher. À mulher, de constituição inferior, se permitem
fraquezas que vêm de seu sentimentalismo, de seu exercício da empatia,
identificação, compaixão, espírito de conciliação. Já o homem não pode ter
fraquezas. Tem de ser duro, não se deixar atrapalhar pelos sentimentos para
poder enxergar a realidade crua, a realidade egoísta que então lhe permite
oprimir, castigar, dominar os seus oponentes garantindo o sustento e quiçá o
luxo de sua família. Os sentimentos reprimidos, no entanto reapareciam na forma
de sintomas neuróticos, enquanto que nas mulheres a sua desvalorização e o seu
confinamento provocavam distúrbios dos quais o mais freqüente era a histeria. O
rapaz para poder sobreviver nesta sociedade rígida tinha de recalcar todas as
suas potencialidades só permitindo o afloramento de uma delas. Com isso sua
vida tinha um caráter retilíneo com um único objetivo em vista que para ser
alcançado deveria sacrificar as suas outras potencialidades. Os desejos
múltiplos infantis tinham de ser duramente reprimidos para que um único
objetivo prevalecesse. Desta forma seu ego tornava-se inteiriço, unitário,
determinado, não se desviando do caminho traçado. A dupla moral vitoriana
permitia-lhe manter a unidade do ego, pois lhe dava a oportunidade de evadir-se
em noitadas clandestinas que eram dissociadas da vida correta e civilizada o
que em parte aliviava seu mal-estar. Assim como o ego tinha contornos
nitidamente delimitados também os quadros neuróticos o tinham recebendo nomes
específicos de acordo com seus sintomas e psicopatologia: neurose obsessiva,
fóbica, neurose de ansiedade, neurose conversiva. O corpo manifestamente sofria
com a ansiedade e com a conversão. Aparentemente não havia sofrimento corporal
quando certas condições se cumpriam na neurose obsessiva e fóbica.
DICOTOMIZAÇÃO DA
UNIDADE CORPO-MENTE: No paradigma repressivo predominam as relações
dominador-dominado. Quem governa é a mente e o corpo obedece. Isto se repete no
relacionamento professor/aluno, marido/esposa, médico/paciente,
patrão/empregado, pai/filho, etc. A mente que deveria estar integrada ao corpo,
exercendo seu papel de mediadora entre o corpo/afeto e realidade, e entre o
corpo e o psíquico deixa de ter esta função e passa a exercer uma tirania sobre
o corpo/afeto. Ela obriga o corpoafeto a ultrapassar limites até a exaustão,
não dando importância aos sinais de desequilíbrio enviados pelo soma. Assim
como a mente tiraniza o corpo, desconsiderando-o, as pessoas se tornam
dominadoras desconsiderando os sentimentos e a humanidade da outra. Na luta
pelo poder só a mente funciona; o psíquico (as emoções e sentimentos corporais)
desaparece para que a impiedade, a crueldade, a implacabilidade possam
funcionar livre de freios.
A REPRESSÃO NA RELAÇÃO
CUIDADOR-CUIDADO – a rígida hierarquia própria do paradigma cartesiano impede a
colaboração do paciente na condução de sua trajetória curativa. O cuidador não
ouve as informações daquele que está sendo cuidado e autoritariamente dita
normas a serem seguidas. A não participação do que está sendo cuidado dificulta
a conduta terapêutica, pois o estado de submissão, diante de uma instância
autoritária, inferioriza, inibe e dificulta ou impede a indispensável
informação e colaboração do dominado.
A REPRESSÃO NA RELAÇÃO
MÉDICO-PACIENTE -- O médico possuído pelo paradigma dicotômico tratará o órgão
doente sem se importar com a pessoa que porta este órgão. E com isto ele estará
dando uma assistência incompleta, pois não levará em consideração a unidade
psique/corpo nem a importância da mente que participa desta unidade. Ex. do
CTI. Ex. das pessoas em coma. Importância do toque, do carinho, da atenção.
A REPRESSÃO NA RELAÇÃO
MÃE-FILHO – Uma mãe que saiba dar carinho e estímulo, mas que não cuide do
corpo do bebê estará passando a mensagem de que o corpo não é importante. A
criança ao se tornar adulto tenderá a negligenciá-lo recusando-se, por exemplo,
a fazer check-up, a ir ao médico para prevenção e tratamento. Também ignorará
os sinais que o corpo envia quando começa a adoecer ou quando começa a
ultrapassar sua capacidade de trabalho. A má alimentação é também uma
negligência com o corpo assim como a obesidade. Evidentemente não só a
negligência entra em pauta; há outros fatores dinâmicos influenciando os
transtornos corporais.
A mãe que cuida só do
corpo de seu bebê (dando-lhe comida na hora certa, mantendo-a limpa e seca,
seguindo os preceitos higiênicos) estará prejudicando-a se não a tratar com
carinho, se não perceber e/ou não responder às suas demandas afetivas, se não
se identificar com ela para atender às suas necessidades que são ao mesmo tempo
físicas e psicológicas. Ela a deixará em estado de carência afetiva que
repercutirá em sua vida futura.
Uma mãe que favoreça o
desenvolvimento da mente do bebê e da criança em detrimento do corpo/afeto
facilitará o aparecimento de um adulto intelectualizado que dará pouca ou
nenhuma importância à rica e variada vida de sentimentos. São pessoas frias,
sem sensibilidade para a vida subjetiva, capazes de impiedade. Têm uma mente
matemática, apta a exercer maquinações implacáveis, infensa a sentimentos de
simpatia e compaixão. São capazes de tramar intelectualmente sua ascensão
pessoal e profissional sem a menor consideração pelos outros que só lhes servem
como degraus de uma escada a ser percorrida até o topo. Teremos um ser humano
perfeitamente adaptado à feroz luta competitiva do capitalismo. Esta luta feroz
é artisticamente alegorizada por Costa-Gavras em seu filme “O corte” (“Le
couperet”) lançado em 2005 onde o protagonista, um homem perfeitamente “normal”
segundo os critérios sociais, grande especialista em sua área, mata 3 ou 4
outros especialistas da mesma área para não ter concorrentes na busca de
emprego.
Uma mãe consciente ou
inconscientemente preconceituosa, reprimida e repressiva, ao mexer na zona
genital (durante o banho ou a troca de fralda) o faz com dificuldade, com
reserva, com desgosto, com aflição, às vezes com nojo, transmitindo ao bebê o
sentimento de aquela parte é diferente das outras do corpo levando à
dissociação da zona genital que é como se não existisse ou existisse de uma
maneira autônoma ou como se fosse uma parte demoníaca.
Quando a mãe está
ausente por um tempo demasiado, (o que pode acontecer mesmo estando fisicamente
presente) a mente do bebê, tentando entender o que está acontecendo, sofre um
desenvolvimento exagerado dissociando-se do corpo. A mente excessivamente
desenvolvida dissocia-se do corpopsique com as conseqüências que já vimos
acima.
Para que haja uma
integração corpopsiquemente é preciso firmeza na sustentação (holding), cuidado
psíquico e corporal. O toque amoroso é fundamental para a vida.
Uma mãe que apresenta
firmeza na sustentação (holding) cuidado físico e corporal, e que mexa no corpo
da criança sem vergonhas e preconceitos será certamente uma mãe bem integrada e
que transmitirá esta integração para o filho dando-lhe a oportunidade de manter
sua integração mesmo num ambiente adverso.
A família patriarcal
prototípica do período vitoriano era composta por uma mãe suficientemente boa e
por um pai que impunha, a qualquer custo, com a aquiescência da mãe, as leis da
casa; isso incluía a ação de castração na época apropriada. A mãe através da
relação fusional e da mutualidade propiciava ao filho o desenvolvimento da
capacidade de empatia, de identificação, da sensibilidade sutil, do sentimento
de compaixão. Estas características eram consideradas, na sociedade moderna
vitoriana, “coisas de mulher”, enfraquecedoras de crianças do sexo masculino
que então deveriam livrar-se desta subjetividade. Os meninos deveriam
recalcá-la para tornarem-se fortes, duros, impiedosos: uma masculinidade bem
desenvolvida lhes permitiria vencer a dura luta pela sobrevivência, alcançando
um padrão de vida consoante o seu grupo social. Para conseguir este resultado o
Pai (ou a função pai) proibia duramente o acesso à mãe; ele exercia a função de
castração da qual resultava uma interdição do feminino. O resultado era o
provável desenvolvimento de um neurótico normal desde que a mãe fosse
suficientemente boa e o pai castrador suficientemente bom; refiro-me a uma mãe
suficientemente disponível, sensível e responsiva às modificações da
subjetividade do filho e a um pai suficientemente presente, justo, protetor,
respeitador da lei, qualidades que fariam dele uma boa figura de identificação.
Esta seria a situação ideal.
Na mentalidade
vitoriana repressiva as regras eram estritas e aquele que as seguia era
valorizado e recompensado. A sexualidade, o feminino, os sentimentos de
fraqueza, dor, tristeza, a espontaneidade, a empatia e a capacidade de
identificação eram desvalorizados, reprimidos e recalcados.
A educação era
repressiva. Na escola valorizava-se a disciplina, o dever, o bom comportamento.
A criança era cumpridora de obrigações e entre estas, a de decorar as matérias
escolares.
As empresas procuravam funcionários
“certinhos”, disciplinados, cumpridores de deveres, assíduos, burocráticos,
dedicados à firma e lhes oferecia segurança e aposentadoria.
Neste cenário vicejam as formas
neuróticas de viver. O homem vitoriano ideal era educado, formal, correto,
disciplinado, cumpridor de suas obrigações, honesto, íntegro, retilíneo em sua
trajetória de vida, confiável, honrado. Um cavalheiro, um gentleman. Ordem,
dever, organização, controle, disciplina eram os preceitos a serem seguidos.
Dedicava sua vida à tarefa de crescer lenta e seguramente dentro da atividade
e/ou empresa escolhida. Para isso usava o processo de repressão que impedia que
desejos e fantasias desviassem a pessoa em atividade neurótica de seus
objetivos. O filme “Caráter” retrata bem este aspecto. O jovem bastardo na sua
determinação de conseguir “subir na vida” reprime seus afetos assim como seu
pai e sua mãe seguindo as regras estritas da sociedade, reprimem seus afetos.
Uma repressão suficientemente boa deixa seus rastros na forma de sintomas e
comportamentos desviante que trazem pouco transtorno. Uma repressão não
suficientemente boa provoca o aparecimento de sintomas e comportamentos
perturbadores. Dependendo da predominância e da força dos sintomas temos as
neuroses: obsessivas, fóbicas, conversivas, as histerias de angústia.
A subjetividade neurótica, conveniente à
modernidade, pede um comportamento obediente, rígido e regido pelas regras da
hierarquia. Seu pensamento é dicotômico. Há os que mandam e os que obedecem sem
questionamentos. Numa relação analítica o analisando é um objeto esquadrinhado
por um cientista neutro, possuidor de um conhecimento inconteste de seu
inconsciente. O analisando é meramente um mortal enquanto o analista habita o
Olimpo dos deuses. Uma análise que não rompa esta dinâmica dicotômica tem como
destino fazer do analisando uma cópia do analista, tornando-o também portador
de uma verdade incontestável que todos deverão aceitar. Como veremos adiante, a
psicanálise na hipermodernidade realiza-se não em um regime dicotômico, mas em
um registro unitário, onde dois seres humanos se encontram para aumentar a
potência de vida. Importante expor aqui uma diferença entre dicotomia e
dualidade. A dualidade não nega as diferenças (nem as semelhanças), mas coloca
dois sujeitos que se relacionam no mesmo patamar qualitativo, participantes do
mesmo universo ontológico. Na dicotomia cada sujeito pertence a uma substância
diferente. Semideuses pertenceriam a uma substância e meros mortais a outra. Em
contraposição a esta concepção dicotômica existe uma concepção dualista que
enxerga não um sujeito e um objeto com diferenças ontológicas, mas dois
sujeitos que pertencem a uma humanidade comum, cada qual, porém, com suas
características próprias. Não há semideuses e humanos, mas apenas humanos com
diferentes experiências, conhecimentos e sensibilidades que se encontram para
estabelecer uma relação produtiva de crescimento e criatividade através da qual
se reduz o mal-estar e o sofrimento.
Outros valores da
modernidade que também têm a ver com o processo de repressão/recalque são a
disciplina, a ordem, o respeito, a organização, o controle, a objetificação, a
reverência hierárquica, a distância afetiva, o convencionalismo. Sem dúvida são
características que darão certo colorido à relação e às quais o analista deverá
prestar atenção, levando-as em consideração.
Sentimentos de honra,
de pundonor derivados do recalque são encontrados no consultório. Quando estão
a serviço da preservação da auto-imagem podem vir a constituir um enorme
obstáculo à honestidade e à sinceridade na relação terapêutica. Exigirá do
analista toda uma paciente costura que terá como alguns dos fios a aceitação
incondicional, a perseverança tranqüila, e um comportamento poroso, aberto e
sincero. A resultante bem-vinda será a instalação de uma relação de confiança
mútua. A valorização social do sentimento de honra e pundonor é um obstáculo a
mais para abertura de um espaço honesto.
A trajetória de vida
do neurótico modelar é retilínea e acumulativa. Este resultado é conseguido com
o recalque dos muitos desejos e pequenos eus a fim de que reine absoluto e sem
contestação o Eu “Verdadeiro” com seu desejo único. O impedimento do retorno à
consciência dos pequenos eus provoca sentimentos de insatisfação, de
inutilidade da vida, de incompletude e vários sintomas.
Pelo seu aspecto
neurótico, a pessoa está aprisionada por convenções, regras e leis ficando com
a sua espontaneidade e criatividade coartadas. A barreira do recalque dificulta
a percepção de seu inconsciente, do inconsciente do outro e da subjetividade circulante.
A comunicação
neurótica é mais superficial que a borderline, pois está barrada pelo
convencionalismo das palavras e dos valores especialmente os da hierarquia que
impedem o diálogo íntimo.
A vida neurótica está
normatizada e segue os trilhos consagrados pela tradição e pelos preconceitos.
A saúde psíquica do neurótico “normal” está resguardada pelo recalque das
grandes inquietações existenciais, mas tende a ser tensa e descolorida,
pontilhada de irrelevantes sintomas e pequenas obsessões.
A culpa é um
sentimento onipresente no funcionamento neurótico. Nesse modo existencial uma
Personificação de Autoridade inconsciente atormenta e controla o sujeito. Sendo
essa Personificação de Autoridade a responsável pela sua culpa caberia a ela
tirá-lo do atoleiro da depressão. Esta expectativa atiça a culpa elevando-a a
um ápice insuportável quando uma intervenção se faz necessária. A
Personificação de Autoridade terá então cumprido a sua função imaginária. A
culpa é também uma maneira de reter o fluxo do tempo, pois ela mantém os
acontecimentos paralisados na memória.
O neurótico modelo
está mais voltado para si mesmo do que para o exterior. Mais se interioriza que
se exterioriza. Ele preserva a sua intimidade. Reluta em falar de suas
fraquezas, de tudo aquilo que poderia, na sua concepção, ser criticado pelo
analista. Envolve-se em uma capa protetora que avalia e filtra tudo o que vem
de fora. Dentro de sua concepção é ele quem deverá resolver os seus problemas.
O outro não tem nenhum papel a desempenhar a não ser lhe fornecer dicas de
questionável importância. Estas características dificultam o estabelecimento de
uma relação de intimidade.
As considerações acima
se referem à primeira fase da dialética inicialmente proposta, a fase da
repressão.
PARADIGMA PERMISSIVO
Acompanhamos algo do
surgimento e crescimento da repressão/recalque, substrato sobre o qual se
assenta o modo neurótico de viver. Vamos agora tentar realizar o mesmo processo
em relação a subjetividade borderline que prospera especialmente a partir de
meados do século passado. Veremos como a repressão/recalque produtora do modo
neurótico de processar a experiência evolui para a onipotência/cisão, substrato
do modo borderline.
A família patriarcal
entra em declínio. As identificações sólidas com o pai sofrem com a perda de
poder desse pai, com sua desorientação diante de um mundo mutável onde nada é
seguro, nem o emprego, nem as amizades, nem as convenções sociais, nem a
moralidade. Um pai que fica perdido entre o autoritarismo e a condescendência,
agindo muitas vezes erraticamente. Um comportamento próprio de um período de
transição. O homem firme, seguro, com valores sólidos, com um superego forte,
perde seus parâmetros e torna-se um homem inseguro, que não sabe se expressa ou
não seus sentimentos, que não sabe se desenvolve ou não sua capacidade de
empatia e identificação, que não sabe se deve ou não ser autoritário. Quanto à
mãe, chamada a entrar no mercado de trabalho por razões econômicas, também o
faz para livrar-se do jugo do marido, para tornar-se independente,
valorizar-se, igualar-se subjetiva e hierarquicamente ao marido; ela então,
torna-se uma profissional dedicada a sua carreira. Duas conseqüências: menos
tempo para o bebê e mais preocupação com o sustento da casa. Esses dois fatores
diminuem sua disponibilidade para o bebê, e a fusão e a identificação mãe/bebê
ficam prejudicadas, remetendo-nos a questões de identidade/identificação.
Sem dúvida, mesmo no
período vitoriano havia pessoas que escapavam do modo neurótico de processar a
experiência. Porém as transformações sociais, políticas, econômicas e
subjetivas tornaram o modo borderline de processar a experiência mais
presentes. Atualmente os psicanalistas recebem no consultório um contingente
cada vez maior de borderlines, narcísicos, psicossomáticos ---- pessoas que
estariam classificadas como casos-limite. Também, fora do consultório, isto é,
pessoas que têm a possibilidade de lidar com seus problemas eles mesmos, sem um
auxílio profissional, predomina o modo de enxergar a vida pela ótica
borderline. Evidentemente aqui entra a distinção entre borderline “pesado” e
borderline brando do qual já falei. Apresentarei mais um aspecto desta
diferenciação.
O
borderline, visto de um ângulo negativo será dito como tendo insuficiência
de identificações, expressão que poderá ser substituída por valências
identificatórias abertas, se olharmos o mesmo fenômeno positivamente, à luz
de uma outra episteme.
Segundo Freud, quando
o complexo de Édipo se resolve satisfatoriamente o homem adquire um superego
sólido que dificilmente se deixará modificar pelo ambiente. O borderline
pensado na perspectiva edípica será falado como tendo um superego frouxo,
lábil, influenciável, correspondente à descrição freudiana do superego
feminino. Justamente é este superego poroso -- que se deixa penetrar e
influenciar e ao mesmo tempo penetra e influencia -- que privilegiará o borderline
tornando-o apto a acompanhar (e influenciar) as rápidas transformações da
cultura.
A cultura permissiva
com seus exageros tornou-se possível por todo um background. Estímulo ao
consumismo, reação ao autoritarismo sofrido pelas pessoas (contar o episódio),
avanços tecnológicos (computador, Google) mudanças nas relações de poder na
família e na sociedade, etc.
A ideologia familiar
também mudou: ao invés do pensamento de que a criança tem de ser obediente, não
pode participar da vida dos adultos, tem de ser disciplinada, tem limitações
próprias à idade, uma outra ideologia se desenvolveu: à criança tem absoluta
prioridade, tem de ser atendida em primeiro lugar (pode interromper a conversa
de adultos), não pode ser reprimida tendo de ter seus desejos satisfeitos, etc.
O sentimento de onipotência advindo da experiência de onipotência e que deveria
ir gradativamente perdendo sua força, é incrementado e a criança em crescimento
que logo se tornará adolescente e adulto incorpora em seu ser o sentimento e o
pensamento de que tudo lhe é permitido e que ninguém pode impedir a livre
satisfação de seus desejos. A criança se transforma em um ser imperial a quem
tudo é permitido pois o resto do mundo estaria ali para servi-lo. Evidentemente
uma tal ideologia levada ao extremo inviabilizaria a convivência humana. Por
isso mesmo esse paradigma tem sido objeto de preocupação de muitas pessoas e
organizações que procuram meio e modos de modificar esse cenário. Há quem pense
que nada de bom adveio e poderá advir desse paradigma e solução seria uma
completa revolução. Muitos pensam que é preciso retornar ao paradigma anterior.
O que podemos dizer é que esse conjunto de pessoas pensantes e atuantes fazem
com que estejamos num momento de formação de um novo paradigma. E, para mim,
aqui avulta a figura de um psicanalista inglês, Donald W. Winnicott que tem
contribuições preciosos para que possamos pensar em um novo paradigma sem
desprezar os ganhos obtidos pelo paradigma da permissividade. Aqui eu me
permito trazer à cena a figura do filósofo Hegel que com sua doutrina de
evolução espiritual da humanidade criou a tríade tese-antítese-síntese onde a
síntese se transformará em novo tese que sofrerá o mesmo processo de evolução.
Quero dizer com isso que o pensamento de Hegel nos permite aproveitar aspectos
importantes da tese, pois antítese não é a negação da tese, mas sua elaboração,
pois a tese já traz em seu âmago os elementos para a sua transformação.
Passemos para a segunda proposição
dialética. Coloco como antítese da repressão, a permissividade. É justamente a
permissividade que domina a hipermodernidade. A permissividade provoca o
aparecimento de outra maneira de ser e viver diferente do modo neurótico. É o
modo borderline, típico do período em que vivemos. O borderline não internaliza
um firme superego que lhe garantiria incontestáveis pontos de referência. Solto
no mundo, com suas valências identificatórias abertas, sem uma forte
identificação com os valores dos pais, necessita da aprovação do ambiente. Esta
seria uma das razões das intimidades expostas nos webblogs e webcans. Seus
valores não são fixos, pois não estão regidos por um código interno. Dependem
da reação do ambiente. Se aprovados sentem-se bem. Se desaprovados ficam
envergonhados de terem tido uma conduta inadequada. Na hipermodernidade (ou
modernidade líquida) predomina a cultura da vergonha sobre a cultura da
culpa.Também as formas de vivenciar o tempo e a interioridade se modificam. Paula
Sibilia escreve: A eficiência e a
eficácia ---- a capacidade de produzir determinados efeitos ---- tornam-se
justificativas auto-suficientes que dispensam toda explicação causal e qualquer
pergunta pelo sentido”..... A velha função do passado parece ter caducado: o
passado não serve mais para conceder inteligibilidade ao caótico fluir do
tempo, e nem para explicar o presente ou a mítica singularidade do eu.
(p.40)....esses novos fenômenos revelam mais um traço no processo de
reconfiguração que atravessam as subjetividades contemporâneas. Os gêneros
autobiográficos que proliferam na Internet são sintomáticos destas novas
torções subjetivas, por evidenciarem importantes mudanças nos valores
atribuídos à idéia de interioridade e ao estatuto do passado como dois
alicerces fundamentais do eu. Essas duas noções foram primordiais na
constituição das subjetividades modernas e, apesar da sua permanência como
fatores ainda relevantes, parecem estar perdendo seu peso na definição do que
cada um é(p. 48).
Estas citações são
importantes por nos remeterem a situações clínicas atuais: muitos analisandos
não se interessam por ter um conhecimento penetrante de sua vida subjetiva.
Esta mais parece um produto da relação analista-analisando. Há uma falta de
interesse quanto à origem e resolução dos sintomas. Eles são aceitos como quase
incontornáveis características idiossincráticas, algo próximo da ordem da
necessidade e, portanto praticamente inacessíveis à investigação. O passado dos
sintomas não lhes interessa, e a perturbação provocada por eles é aceita e
integrada nas ações. Interessa-lhes o presente. Isto coloca mais um desafio
para o analista que em uma primeira instância conversaria sobre as dificuldades
objetivas do presente buscando soluções sem procurar suas origens no passado,
tentando encontrar com o analisando um equilíbrio pessoal e social que inclua
os sintomas e os dinamismos expostos ---- e isto dá lugar a um intenso diálogo
entre analista e analisando; em uma segunda instância tentariam ultrapassar os
obstáculos, entendendo as dinâmicas que estão ocorrendo no momento mesmo dos
acontecimentos: isto parece agradar menos ao analisando que ouve sim, o que o
analista diz, mas que passa batido pelo dito como se fosse uma parte não
importante da conversa, não dando continuidade ao assunto, e continuando a
falar como se nada lhe tivesse sido dito. Porém, com o tempo, dá para perceber
que as palavras do analista tiveram efeito; em uma terceira instância procurar
a dinâmica no passado. A isto o analisando é ainda mais refratário e a ocasião
para fazer tais interpretações deve ser bem escolhida, isto é, deve fazer parte
do devir de uma conversação normal que por acaso tocou na infância, sem uma
impostação que transmita a impressão de que algo professoral e básico esteja
sendo dito. Podemos perceber, dentro de certo prazo, o efeito positivo da
interpretação. Mas o que predomina é o repúdio pelo passado e uma forte
inserção no presente que dificilmente se estende para um futuro, pois este se
apresenta imprevisível e então há pouco que falar sobre ele. É claro que as
coisas não são tão simples e esquemáticas como as apresento, pois estamos
lidando com situações de complexidade. Mas servem para nos situar melhor diante
dos aspectos hipermodernos da subjetividade.
O que mais se pode
dizer do sujeito hipermoderno? Quais outras conseqüências de uma sociedade e
educação permissivas? A mais óbvia é a falta de limites; a pessoa cresce com a
convicção de que tudo o que existe no meio social pertence de direito a ela. É
dever de a sociedade abrir-lhe todas as portas. “É proibido proibir”. É
inconcebível que se ponham limites aos seus desejos. Ser contrariada é um crime
de lesa-majestade, impossível sequer de se pensar ---- uma aberração da
natureza, um tabu. É evidente que nestas circunstâncias os direitos e
sentimentos dos outros não conseguem ser sequer vistos. O complemento social
desta atitude pessoal é a abundância potencial de ofertas e oportunidades que a
sociedade coloca à disposição. O encontro dos pequenos eus desreprimidos com a
virtual abundância de ofertas sociais tem várias conseqüências: os muitos
pequenos eus embriagam-se com as muitas ofertas tentando dar conta de todas
elas, comprimindo o tempo, e entrando em ansiedade. Muda a maneira de vivenciar
o tempo: é preciso correr para dar conta de todas as tentações e para chegar
antes. A velocidade assimilada pelo corpo/psique torna-se parte integrante do
ser e converte-se no ritmo da hipermodernidade, um “prestissimo” febril e
ansioso. Também a idéia de não perder nenhuma oportunidade provoca ansiedade e
pressa. A pessoa nunca se dá por inteiramente satisfeita com suas escolhas,
pois lá adiante pode haver algo muito melhor. A pergunta não é “fiz uma boa
escolha?”, mas “será que perdi alguma coisa fabulosa, “irada”? As outras inúmeras
possibilidades desconhecidas fazem sua ronda tentadora e constante em torno da
cabeça de nosso voraz protagonista sussurrando em seus ouvidos possibilidades
de escolhas melhores, de aparecimento de oportunidades incríveis que
transformarão por completo sua vida. E será preciso lá chegar antes que outros
se apossem da chance. É comum um movimento errático em que o jovem passa de um
investimento para outro à procura daquilo que “seria o melhor dos máximos”.
Um aspecto positivo a
ser considerado é a porosidade que o jovem da hipermodernidade apresenta e que
lhe permite ter acesso ao seu inconsciente implícito e à subjetividade da
sociedade em transformação. Este é um aspecto a ser preservado. O terapeuta
deverá ter muito cuidado com o que chamamos de interpretação, pois ela poderá
entupir a porosidade, impedindo o acesso aos aspectos femininos, ao
inconsciente e à percepção da subjetividade social corrente. A preservação da
porosidade permitirá um trabalho terapêutico que irá além do representacional,
propiciando aquilo que Freud chamou de comunicação de inconsciente a
inconsciente e que tem a ver com algo misterioso, sim, mas também com os sutis
movimentos, expressões, mímicas faciais, olhares, modulação de voz e tantas
outras coisas que freqüentemente estão fora do campo de nossa consciência e
que, portanto, não controlamos. Por essa razão o analista precisa ter um
“cuidado de si” que permita que seu corpo/psique demonstre, propague, passe uma
verdadeira renúncia psicocorporal ao narcisismo e um verdadeiro acolhimento
psicocorporal consciente e inconsciente da pessoa do analisando tal qual ele é
no momento da relação. Esta seria a atitude ideal, porém nem sempre presente,
já que o analista por mais que tenha “cuidado de si”, terá com alguma
freqüência o seu inconsciente corporal implícito e afetivo mobilizado de uma
maneira mais ou menos afastada da ideal, especialmente diante dos novos
analisandos que o procuram. Deverá então ficar o mais possível atento às suas
reações corporais e ao tipo de cargas afetivas que estão sendo produzidas, e
então tentar progredir em direção a uma atmosfera de conforto, confiança,
relaxamento, ritmos sincrônicos e interesse afetivo.
Bauman nos fala que na
modernidade líquida existe um desrespeito pelo compromisso. Esta é uma
experiência freqüente de todos nós. Só somos levados a sério se, no momento,
apresentamos algum interesse pragmático. Caso contrário somos ignorados. A
sociedade nos trata como mercadorias a serem consumidas. Isto afeta nosso
sentimento de valor com direito à deferência e consideração. Não somos vistos
como pessoas com uma subjetividade a ser respeitada, mas como mercadorias. Se,
para ser levado em consideração é preciso que o sujeito seja mercadoria ele se
esforça por sê-la. O conhecimento e assimilação destes fatos sociais podem
modificar o equilíbrio narcísico de nossos analisandos. Daí a importância do
analista poder apresentar um panorama da subjetividade social em que vivemos,
um de cujos aspectos é não dar importância ao indivíduo como uma singularidade
subjetiva a ser respeitada.
Ainda falando do
narcisismo e de suas possibilidades de transformação: uma abertura pessoal que
permitisse a compreensão da subjetividade do outro, colocando em suspensão as
reações emocionais à crítica alheia, à desconsideração, ao apontamento de seus
defeitos seria uma importante aquisição no campo do narcisismo. “Será que ele
tem razão de em me ver e sentir desta maneira? Quais são os seus motivos?” são
perguntas a serem feitas permanentemente. Colocar a indignação entre parêntesis
para avaliar o quanto a palavra do outro é pertinente (e aí é preciso levar em
consideração o contexto em que a “ofensa” acontece) para até poder se
aperfeiçoar, e também compreender o outro, as razões de seus ataques e de suas
críticas. Importante distinguir entre a ofensa com a intenção de ferir e o
apontamento de características sem esta intenção. Não significa que se deverá
adotar uma atitude indiferente, sem emoção. Esta certamente deverá estar
presente, mas integrada a um questionamento não-narcísico.
O mal-estar advindo da
desconsideração, da objetificação, da transformação em mercadoria pode ser
fortemente atenuado por uma redistribuição dos sentimentos narcísicos. Uma
compreensão da subjetividade pessoal do outro e da subjetividade social
contemporânea cumprirá esta tarefa. A auto-estima advirá então desta nova
distribuição narcísica. Este remanejamento encontrará enormes resistências,
pois para isso deveremos vencer nossos atavismos. Será certamente uma tarefa de
muitas gerações. Esta nova subjetividade difícil de se instalar diante das
reações espontâneas hereditárias de cada um, só aos poucos, mediante pequenos
atos, atitudes e mínimas transformações se espalhará por uma espécie de osmose
psíquica pelo corpo societário. E será importante aprovar explicitamente
qualquer passo nessa direção. O
sentimento de “estar ferido em seu amor-próprio” quando uma
característica/“defeito” é apontada deverá ser substituído pela valorização do
autoconhecimento e de heteroconhecimento das dinâmicas em jogo.
A situação de intensa
disputa da hipermodernidade que aproveita qualquer brecha para atacar e
diminuir o outro torna ainda mais difícil esta trajetória. Aquele que procura
substituir o sentimento de honra pela sinceridade e honestidade encontrará dificuldades
diante da hipercompetitividade de nosso tempo.
Este é um quadro
sociológico que devemos conhecer para ajudar nosso analisando a se situar no
mundo atual; sem isso ele ficaria perdido, sem compreender os acontecimentos, e
atribuindo a si o que faz parte de um contexto social.
A conjugação da
abundância de ofertas vindas da sociedade (excesso de ofertas externas) com a
desrepressão dos pequenos eus (excesso de demandas internas) produz uma
atividade incessante e febril. Este excesso provoca desorientação, ansiedade,
exaustão. Sem dúvida a psicanálise contribuiu, com o conceito e trabalho de
desrepressão para a permissividade descontrolada e o mal-estar da atualidade.
Não era esta, porém a intenção de Freud. Pelo contrário, um de seus postulados
básicos apresenta o recalque como constitutivo da personalidade. Mas recalques
obsoletos e fora de lugar são inúteis e provocam sofrimento. Faz-se necessária
uma redistribuição dos recalques. Repressões úteis devem ocupar o lugar das
repressões infantis irracionais. Em suas palavras: A análise, contudo, capacita o ego, que atingiu maior maturidade e
força, a empreender uma revisão dessas antigas repressões; algumas são
demolidas, ao passo que outras são identificadas, mas construídas de novo, a
partir de um material mais sólido. O grau de firmeza dessas novas represas é
bastante diferente do das anteriores; podemos confiar em que não cederão
facilmente ante uma maré ascendente da força instintual. Dessa maneira, a
façanha real da terapia analítica seria a subseqüente correção do processo
original de repressão, correção que põe fim à dominância do fator quantitativo.
Porém o movimento da
sociedade foi mais radical e ao processo de des-repressão não se seguiu uma
repressão seletiva e adequada como Freud esperava. A dês-repressão tornou-se
liberação geral das pulsões. Quando falo de movimento geral da sociedade
refiro-me à passagem do capitalismo de acumulação para o capitalismo
consumista, da contenção ao desperdício, da criação de modismos e de novas
necessidades para aumento do consumo; e também da falta de limites de cada um
que se sente no direito de fazer o que quer sem respeito nem à lei nem ao
direito do outro, à roubalheira desenfreada, aos excessos de velocidade com
aumento de mortes, à desobediência a regras necessárias ao bom convívio, ao uso
do poder e das leis para benefício
próprio. Um quadro desolador. E sem dúvida, mesmo que involuntariamente, a
psicanálise contribuiu para isso com a difusão da idéia de desrepressão.
PARADIGMA EM FORMAÇÃO-
O borderline só veio a ter existência depois que surgiu o conceito de neurose.
Sem neurose não haveria borderline. A neurose é uma patologia bem estruturada e
que surge depois que a repressão/recalque torna-se relevante. Borderline
significa estar na borda, no limite, portanto longe do centro, da norma, do
habitual. Na medida em que a repressão/recalque está menos onipresente e mais
branda, os processos próprios do borderline (cisão, onipotência mitigada,
porosidade) tornam-se mais presentes. Tornam-se maioria ou pelo menos formam
com os processos produtores de neurose um outro modo de estar no mundo. Não
cabe mais o nome do borderline, pois eles não estão mais no limite, mas sim no
centro da cultura. Que outro nome poderia ser dado àquele que um dia foi chamado
por mim (e ainda o é) de “borderline brando” e “borderline próximo da
normalidade”? E que outro nome pode-se dar ao “paradigma em formação” que dê
uma indicação do caminho que está sendo percorrido? Respondendo primeiro à
segunda pergunta direi que, se dermos relevância à contribuição de Winnicott
estaríamos indo em direção a um paradigma holístico, ecológico, humanístico.
Quanto a primeira pergunta penso que o conceito “borderline brando” possa ser
incluído em um todo mais amplo que seria representado pelo conceito de “Homem
Transicional”, referido ao espaço transicional de Winnicott.
SÍNTESE – PARADIGMA EM
FORMAÇÃO: em direção a um PARADIGMA ECOLÓGICO, HUMANÍSTICO.
Sinais de um paradigma
em formação ecológico, ético, humanístico poderão ser encontrados desde que
estejamos atentos a eles: em Portugal, a política pública para drogas adotada
pelo Estado é a de não penalizar o usuário de drogas, mas compreender sua
situação de viciado e tentar ajudá-lo a partir do ponto de adição em que se
encontra. (procurar no Google).
A atuação de várias
ONGs. Oficinas de música, teatro, esportes, etc.
A criação da rede
colaborativa “Circuito fora do eixo”.
Também observamos no
dia-a-dia a derrocada do comportamento patriarcal distante e severo para uma
proximidade, um carinho, uma paciência, uma amorosidade, raramente encontradas
no passado. Podemos presumir que estamos caminhando da Castração para o Limite.
A castração é um
conceito cunhado por Freud e refere-se em uma ação dura, cruel, enquanto que a
colocação de limites nós a encontramos nos escritos de Winnicott como uma
atividade realizada com amorosidade e sensibilidade. Citações de Freud e
Winnicott.
Freud: “O superego conservará o caráter do pai, e
quanto mais intenso foi o complexo de Édipo e mais rapidamente se produziu a
sua repressão (pela influência da autoridade, a doutrina religiosa, a educação,
a leitura), tanto mais rigoroso será depois o império do superego como
consciência moral, talvez também como sentimento inconsciente de culpa, sobre o
ego”[2]. Outra
citação de Freud: “O
superego reteve características essenciais das pessoas introjetadas — a sua
força, sua severidade, a sua inclinação a supervisar e punir. Como já disse
noutro lugar, é facilmente concebível que, graças à desfusão de instinto que
ocorre juntamente com essa introdução no ego, a severidade fosse aumentada. O
superego — a consciência em ação no ego — pode então tornar-se dura, cruel e
inexorável contra o ego que está a seu cargo. O Imperativo Categórico de Kant
é, assim, o herdeiro direto do complexo de Édipo”[3].
Winnicott:
“Fica claro que, de acordo
com a teoria que uso em meu trabalho, você está possibilitando ao seu filho
desenvolver um sentido de certo e de errado ao ser uma pessoa confiável nessa
fase formativa inicial das experiências da vida dele. Se não tiver êxito com o
seu bebê desse modo (e certamente se sairá melhor com um bebê do que com um
outro), terá de tirar o melhor proveito possível de ser estritamente um ser
humano, embora saiba que coisas muito melhores poderiam estar acontecendo no
processo de desenvolvimento natural da criança. Se fracassar por completo,
então deve tentar implantar idéias de certo e errado através do ensino e do
treinamento assíduo. Mas isso é um substituto para o procedimento realmente
válido, é uma confissão de fracasso e você vai detestar essa idéia; e, em todo
caso, esse método só funciona desde que você, ou alguém atuando no seu lugar,
esteja presente a fim de impor a sua vontade. Por outro lado, se puder dar a
partida para o seu bebê de modo que, através da sua confiabilidade, ele desenvolva
um sentido pessoal de certo e errado, em vez de medos primitivos e toscos de
retaliação, você descobrirá mais tarde que pode reforçar as idéias de seu filho
e enriquecê-lo com as suas próprias idéias”[4].
A distinção entre a
castração freudiana e o limite winnicotianno é tão mais nítida quanto mais
radical e traumática é a castração. Na subjetividade neurótica o acesso ao
feminino do homem é impedido mediante esta ação castradora. Na prática esta
castração é principalmente exercida pelo pai que impede o acesso da criança aos
seus aspectos femininos de empatia, capacidade de identificação, sensibilidade
sutil, etc. Hoje, na classe média educada e informada a brutalidade castradora
encontra-se atenuada e pode-se mesmo dizer que está se espalhando uma ação não
mais de castração, mas de colocação de limites. Quando falo de castração penso
em violência em seus diversos graus. Quando falo de limites também penso em
graus de tranqüilidade, amorosidade, respeitadoras da subjetividade da criança.
Gosto de usar para a castração a imagem de um muro compacto contra o qual a
criança irá se chocar e se machucar; já o limite eu o vejo como uma cortina de
veludo, macia e flexível que oferecerá proteção e limite à criança sem
machucá-la. O pai impiedosamente castrador do século XIX que vemos em filmes
como “A fita branca” está desaparecendo nas classes médias dos centros urbanos.
Os pais em geral são amorosos com os filhos e as proibições são realizadas de
uma forma delicada, carinhosa e sensível. A repressão que vem dos pais já não é
mais traumática, castradora, violenta e isto faz uma diferença. Considero este
item da maior importância para o futuro psicológico do ser humano. Por esta razão vou me estender nesse assunto.
Sabemos que as proibições que a criança impõe a si mesma podem ser altamente
intensivas mesmo quando os limites são dados por uma figura benigna. Esta
benignidade tem sua importância, pois evita a introjeção de uma personificação
despótica. A pressão que a criança necessariamente tem de exercer sobre si
mesma para conter seus desejos imaturos emanam da força ditatorial das palavras
em si e não do pavor/pânico provocados por uma figura tirânica assustadora
vociferando ordens. Esta nova maneira de colocar limites muda a qualidade do
recalque e permite que processos de divisão do eu tenham um lugar mais
proeminente no psiquismo.
O que quero dizer com
recalque benigno? Vou abusar da boa vontade dos colegas, expondo uma outra
variante da diferença existente entre um recalque provocado por palavras de
ordem e outro modo de recalque que inclui uma ação repressora dura de uma
figura tirânica. Desenvolvendo: recalque de boa qualidade foi uma expressão que
encontrei para distinguir o recalque cuja realização é assumida pela própria
pessoa, do recalque oriundo de um trauma externo maligno(Winnicott) por choque
ou por tensão cumulativa (Kris, Khan): o bebê e a criança necessitam de
obsessivamente repetir para si mesmas as proibições e exercer uma suficiente
pressão para conseguir conter seus desejos. Vemos então uma criança dizendo
para si mesma em voz de comando: “não pode”. Acho que devemos distinguir esta
voz de comando à qual a criança recorre para a aceitação de limites (que podem
ter sido colocados pelos pais com a maior doçura) da imposição severa e
insensível dos pais. Eu chamaria a primeira de proibição auto-induzida na qual não se dá a introjeção de uma
Personificação de Pai autoritária e insensível, e a segunda de proibição
autoritária na qual uma Personificação de Autoridade de Direito Olímpico
Inabalável e Incontestável se impõe como figura ameaçadora. No primeiro caso o
bebê e a criança criam uma proibição adequada às suas necessidades psicológicas
e no segundo caso a invasão castradora não respeita a organização psíquica
invadindo o psiquismo do bebê e lá deixando uma marca. Uma marca diferente da
marca que o próprio bebê se coloca, pois a que ele se coloca está dentro de
suas possibilidades de suportar o trauma sem uma quebra significativa da
continuidade de ser. Usando os conceitos que Winnicott apresentou no artigo “O
conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da
família” (em Explorações Psicanalíticas, p.114) podemos dizer que a
auto-imposição do bebê e da criança é um trauma benigno enquanto que a
imposição dura, severa e insensível dos pais é um trauma que será tanto mais
maligno quanto mais ríspida e insensível for a intervenção paterna. Neste caso
o pai será internalizado como uma Entidade Maligna Invasiva, aparelhando o
psiquismo para problemas com figuras de autoridade.
Voltando à linha
principal do pensamento. Winnicott nos fornece importantes conceitos que servem
para compor um novo paradigma. Estes conceitos permitem a elaboração de um paradigma que valoriza o impulso
individual, evitando reprimi-lo (um análogo ético da permissividade) e que ao
mesmo tempo limita excessos por um processo psíquico interno, um processo que
não é exterior ao indivíduo, mas que brota da interioridade da pessoa em
desenvolvimento harmônico com o externo, e que por isso mesmo não apresenta excessos
narcísicos radicais pouco compatíveis com uma sociedade ecológica e
humanística. Refiro-me a uma relação de carinho, mutualidade e sensibilidade às
necessidades verdadeiras da díade não cortadas por uma intervenção castradora
que fará como algo intrínseco o desejo de equilibração e relação equitativa e
ecológica. Um aspecto particular desta equiliração nós a encontramos num certo
momento do desenvolvimento do bebê quando ele percebe que a mãe-objeto que lhe
satisfaz as necessidades do id é a mesma mãe que o envolve carinhosamente dando
acolhida e compreensão às suas necessidades de self. Neste momento ele modula
seus impulsos instintivos de id com receio de machucar esta que agora é uma mãe
unificada.
Vejamos então quais as
contribuições de Winnicott para um paradigma ecológico e humanístico:
MÃE
SUFICIENTEMENTE BOA
Considero esta
expressão revolucionária por introduzir na estrutura mesmo das relações humanas
(e, por extensão, não humanas) a noção de falha. A falha deixaria de ser um
acidente indesejável e abominado para fazer parte integrante, inevitável e
preciosa do devir humano. Com isso o homem se torna menos defensivo, pois não
tem de resguardar a todo custo o acerto de seus atos e pode se abrir mais à
subjetividade do outro, à sua critica compreendendo-o melhor. Podemos dizer que
a idéia de honra foi substituída pela idéia de transparência.
HOLDING
O protótipo da noção de
holding é uma mãe sustentando o bebê em seus braços e colo. Uma mãe amorosa
acolhedora, não ansiosa, transmitirá uma sensação de segurança, de
confiabilidade, de liberdade e de limite ao bebê. Tudo lhe é permitido no
espaço abarcado pelo corpo da mãe. Mas é um corpo que provê um limite.
Paradoxalmente o bebê se sente livre para expressar seus sentimentos e, ao
mesmo tempo protegido pelos limites que o colo e braços da mãe proporcionam.
Uma citação de Winnicott nos permitirá perceber o alcance e a importância da
noção de holding:
É possível perceber
aqui uma série ----- o corpo da mãe, seus braços, o relacionamento dos pais, o lar,
a família, incluindo primos e parentes próximos, a escola, o bairro com sua
delegacia, o país, suas leis[5].
Esta seqüência mostra-nos uma lei
intimamente ligada ao holding e portanto ego-sintônica, e não como uma
imposição que vem de fora. Reunem-se limite e acolhimento, correção e suporte;
diferentemente da lei freudiana posta em prática através de uma intervenção
impiedosa da autoridade à qual ele chamou apropriadamente de “castração”.
Vejamos isto em duas citações de Freud:
O superego reteve características
essenciais das pessoas introjetadas — a sua força, sua severidade, a sua
inclinação a supervisar e punir. Como já disse noutro lugar, é
facilmente concebível que, graças à desfusão de instinto que ocorre juntamente
com essa introdução no ego, a severidade fosse aumentada. O superego — a
consciência em ação no ego — pode então tornar-se dura, cruel e inexorável
contra o ego que está a seu cargo. O Imperativo Categórico de Kant é, assim, o
herdeiro direto do complexo de Édipo[6].
O superego conservará o caráter do
pai e quanto mais intenso foi o complexo de Édipo e mais rápido se produziu sua
repressão (sob a influência da autoridade, do ensino religioso, da educação
escolar, da leitura), tanto mais rigoroso virá a ser o império do superego
sobre o ego como consciência moral, talvez também como sentimento inconsciente
de culpa, sobre o ego[7].
Esta concepção de superego fez com
que se confundissem a figura do Tirano, do Déspota, com a do Guia (Guru,
Mestre), e a necessidade de limites com a castração implacável e
insensível.
A reação da sociedade a esta confusão, a este excesso foi um
outro excesso: o da permissividade total bem expressa na frase de ordem “é
proibido proibir”[8].
Esta a 2ª fase, a antítese de nossa dialética. Entramos agora numa 3ª fase
procurando aberturas e é aí que contamos com a ajuda de Winnicott. O conceito
de holding permite uma convivência pacífica da limitação com a liberdade. Faz
parte do holding saber apresentar o mundo à criança de acordo com suas necessidades
e possibilidades. Isto é diferente da imposição de idéias de um regime
patriarcal autoritário. Permite que o ser humano sinta que a limitação
necessária para a vida em sociedade é também uma criação sua. A limitação
torna-se intrínseca ao sujeito e a permissividade e transgressão ganham
contornos adequados[9].
Distingue-se do resultado da ação de castração da 1ª fase de nossa dialética.
Naquela circunstância, tendo sido impedido o acesso da criança à mãe, ao
feminino, ela perde o contacto com sua sensibilidade, a sua vida afetiva e não
tem condições de exercer a intuição, a empatia, a identificação primária, etc.
Transforma-se então em
Homem Objetivo , poderoso e forte em sua defesa da Lei, um
Homem que não aceita o mundo feminino da sensibilidade. Com a ação de holding
Winnicott reconecta o ser humano com o feminino possibilitando uma colocação
sensível de limites sem ter de obrigatoriamente realizar ações duras,
implacáveis, impiedosas, violentas. O limite deixa de ser um duro muro de pedra
que arrebenta a cabeça de quem o enfrenta e torna-se uma flexível, macia e
acolhedora cortina de veludo. Estaríamos então fora da repressão excessiva e da
permissividade desenfreada. E, em não havendo repressão excessiva o ser em
desenvolvimento pode usar mais o dinamismo divisão, a onipotência mitigada, a
identificação dual-porosa.
ESPAÇO
POTENCIAL E OBJETO TRANSICIONAL
Considero estes conceitos como
contribuições ao aspecto holístico do paradigma que tenho esperança de que
esteja se formando, um paradigma ecológico/humanista/holistíco. Vamos vê-los
então um pouco mais de perto. Para o bebê recém-nascido não existe um mundo
externo a ele. Tudo é sua criação e ele preenche com o seu ser todos os espaços
do mundo. Ele vive uma experiência de onipotência. É uma experiência necessária
para a formação de sua identidade, uma identidade que na fase que Winnicott
denominou de dependência absoluta onde há uma fusão mãe-bebê, confunde-se com a
identidade materna. Esse bloco domina todo o espaço psíquico do bebê. Winnicott
dá como exemplo um acontecimento-prototípico à qual chama de “momento de
ilusão”: o bebê ao ter fome cria a expectativa de um seio amamentador e, se
atenta, a mãe se apresenta para a alimentação. Para o bebê foi ele quem criou o
seio. O seio é vivido como parte de seu psiquismo. Há uma continuidade entre
seu desejo e o aparecimento do seio. Quando o seio deixa de comparecer
imediatamente cria-se uma fenda na continuidade de ser, logo preenchida por um
objeto que presentifica o seio. Essa fenda transforma-se em espaço potencial e
o objeto que criou (e foi criado por) esse espaço é denominado de objeto
transicional. O objeto transicional é um objeto não-eu mas é ao mesmo tempo um
objeto do self. É portanto ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. Um objeto
paradoxal. Aqui podemos inserir o conceito de criatividade que para Winnicott é
conceber subjetivamente objetos objetivamente percebidos. A lua, por exemplo,
pode ser ao mesmo tempo subjetivamente concebida (lua dos namorados) e
objetivamente percebida (lua dos astronautas). Gilberto Gil canta: “poetas,
namorados, seresteiros correi; é chegada a hora de escrever e cantar; talvez as
derradeiras noites de luar”. Essa canção ele a escreve por ocasião da missão
Lunik 9 que levou pela primeira vez o homem à lua e expressa seu medo de que a
lua, diante da conquista da ciência, deixe de existir subjetivamente.
No período repressivo
o homem tinha como ideal a objetividade absoluta proibindo, reprimindo e
recalcando o modo feminino de apreender o mundo. Com isso se reforçou a
dicotomia razão/emoção cujo saldo inicial foi positivo (conquistas da ciência
numérica e newtoniano), mas que com o tempo as consequencias nefastas da
dicotomia tanto no plano humano (colonização e impiedade) como no planetário
foram se tornando insuportáveis. O
objeto transicional e o espaço potencial reconecta o homem com o outro, com o
mundo e consigo mesmo (aqui podemos pensar no meu conceito de dual-porosidade).
Eu colocaria que o homem winnicottiano, diferentemente do homem vitoriano e do
homem psicótico, deseja viver no espaço intermediário (potencial) onde
coexistem o subjetivamente concebido com o objetivamente percebido.
CRIATIVIDADE
Esta conexão com o
mundo torna-se mais forte com o conceito de criatividade de Winnicott. Para
esse autor criatividade tem um significado diferente do uso comum que implica
obrigatoriamente em novidade: para Winnicott criar significa criar o que já
existe. Mas também o que significa que ele impregna com a sua subjetividade o
já existente, tornando-o assim parte de si. Ultrapassa-se assim a dicotomia
razão/emoção e homem/mundo.
IDENTIFICAÇÃO
Capacidade de sentir o
que o outro sente e de perceber a posição subjetiva em que outro coloca a si e
ao outro. A castração coloca uma barreira ao processo de identificação. Na
minha leitura Winnicott propõe manter a capacidade de identificação e a
disponibilidade para a identificação. Na sociedade capitalista selvagemmente
competitiva a capacidade e disponibilidade para a identificação são
consideradas como óbice para os objetivos mercantilistas das pessoas.
MUTUALIDADE
Troca subjetiva entre
duas pessoas diferenciadas quer estejam em simbiose ou não. Ex.: bebê de
aproximadamente 12 semanas (portanto de 3 meses e já distinguindo o eu do
não-eu embora ainda em simbiose) sendo amamentado e colocando seu dedo na boca
da mãe como se a estivesse amamentando. Desfaz a hierarquia.
Tenho de pôr um ponto
final neste trabalho. Deixarei este ponto final provisório aos meus leitores,
seguindo os ditames de Humberto Eco e de Winnicott.
Nahman Armony
[1] Grinker,R.R., .Werble,B., Drye,R.C., 1968, p.83-90.
[2]FREUD,
S.- “O Ego e o Id” Vol.XIX da Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. p.36.
[3]
FREUD, S. (1924) O problema econômico do
masoquismo. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.208-209. (Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud.)
[4]WINNICOTT,
D.W. - “O desenvolvimento do sentido do certo e do errado em uma
criança” in Coversando com os pais. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
p.125-126.
[5]
WINNICOTT, D.W. (2000) A tendência anti-social. In: Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1956. p.406-416.
[6]
FREUD, S. (1924) O problema econômico do
masoquismo. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.208-209. (Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud.)
[7]
FREUD, S. (1923) O ego e o id. Rio de
Janeiro: Imago, 1976. p.49. (Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud).
[8]
CAETANO VELOSO, 1968.
[9]
ARMONY, N. Do universal/particular ao local/global: o superego sob nova ótica.
In: Winnicott, seminários cariocas. Rio
de Janeiro: Revinter, 2008. p. 111-127.
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