A RECONSTRUÇÃO INTERIOR ATENUA A DOR DA SEPARAÇÃO DOS AMANTES

                                                                          
Quando duas pessoas se amam forma-se, imaginariamente, um entrelaçamento de raízes que, provindas dos dois parceiros, emaranham-se. Por elas corre uma seiva que nutre e fortalece. Essa rede, se mutilada, pode causar sofrimento. Para ajudar a desfazê-la, é preciso tomar consciência de que os sentimentos despertados pertencem à própria pessoa. 

 

Quando um casal separa-se, é quase certo que haja sofrimento de um ou dos dois membros do par. Um sofrimento que vai do doloroso ao insuportável. O sentimento está ligado a uma dinâmica que varia de casal para casal e deve ser examinado em sua singularidade, a qual será mais bem compreendida se antes obtivermos uma visão mais ampla das relações amorosas.

Para essa generalização, tomemos como guias as idéias de distância e de penetração. Um casal pode relacionar-se distanciadamente, cada um preservando sua individualidade, privacidade, intimidade. O contrário também ocorre: ambos deixam-se penetrar pelo outro. E há o caso em que os dois são penetrados um pelo outro, mas preservando o núcleo de sua individualidade.

O maior sofrimento ocorre quando há uma diferença na profundidade da relação. Aquele que mais se entregou é quem vai enfrentar maior sofrimento e dificuldade em aceitar o rompimento, mesmo quando se trata de um passo óbvio e saudável.

Quando falo de profundidade visualizo uma pessoa lançando penetrantes raízes na imagem do amante e dela recebendo raízes também profundas modificadoras da imagem. Os dois utilizam o mesmo processo. Estou falando de uma realidade psíquica análoga à realidade virtual. Essas raízes se entrelaçam, formando um emaranhado que oculta suas origens, não mais se sabendo qual o seu pertencimento. Por elas passa uma seiva nutridora, um dar e receber que alimenta a personalidade. Não importa o quanto de realidade e de fantasia há na percepção do dar e receber, pois o que nos interessa é a imagética psíquica, virtual.

Na separação, a pessoa tende a compor uma imagem inconsciente de um desarraigamento das raízes compartilhadas, sofrendo um sentimento de perda, não só do outro; também de si. Esse desatamento é tão violentamente doloroso que dele fugimos como de uma catástrofe. Lembremo-nos, porém, que estamos no terreno da realidade psíquica, cujo aspecto de virtualidade permite realizar novas composições. Pode-se então desemaranhar as raízes, tornando a separação mais exeqüível e menos dolorosa.

Uma jovem de 30 anos, pouco favorecida pelo destino quanto à qualidade das uniões afetivas, encontrou um parceiro que despertou sua capacidade de dar e receber amor. Intensa ligação se desenvolveu e, com ela, enorme medo de perda, o que levou o casal, em especial a mulher, a exagerado controle mútuo. A união foi se envenenando a ponto de se tornar insuportável. O vínculo oscilava entre céu e inferno; ora um amor infinito, ora um ódio sem limites. O desgaste era terrível. Os dois concordaram que a separação seria a única saída. Da resolução à prática, uma enorme distância. A jovem procurou, então, ajuda. E esta veio na forma de um tratamento psicanalítico. O casal desfez a parceria e ela se mudou do apartamento comum. Mas pensava nele a toda hora e vigiava-lhe a vida e os amores. Só aos poucos entendeu que a capacidade de afeto era propriedade dela, não algo cedido pelo companheiro. Sendo a ternura uma posse sua, poderia ser despertada por outro homem. E algum tempo após a separação, encontrou uma pessoa que tocou as cordas de sua harpa interior. Foi um fato magno, pois ali teve a prova inconteste de que a capacidade de amar lhe pertencia, não sendo dádiva do amante. Com isso dinamizou-se a separação do antigo companheiro.

O processo de desemaranhar as raízes confundidas é tão mais longo quanto mais o casal amalgamou as cartas de seus afetos, desejos, vaidades, realidades, fantasias.

No final, sempre fica algo de um no outro. Mas o que resta precisará ser sentido como próprio e não como alheio. É o ganho que cada um terá da relação desfeita.

 

                                                                              Nahman Armony

        Primeira publicação na revista CARAS.

EXPERIÊNCIA EXEMPLAR - EXPERIÊNCIA MODELAR

                                   Nem  tudo nessa vida é modelar, mas tudo é exemplar.[1]

               

                PAM é a primeira palavra jamais dita por um ser humano. Ela surgiu quando um nosso ancestral, atacado pelo equivalente a um lobo, lançou mão de um tronco de árvore que, por acaso, estava ao seu alcance e abateu o animal. No momento do abate, nosso corajoso  antepassado gritou PAM. Evidentemente, neste momento ainda não possuímos uma palavra. Trata-se de um som associado a uma ação e dela faz parte. Ao atacar o lobo, nosso personagem realiza movimentos voluntários com braços, mãos e pernas, e movimentos suplementares involuntários com o restante da musculatura, necessários à manutenção do equilíbrio corporal. Além disto, deve estar possuído de um estado psicológico particular, um estado colérico que lhe permita superar o medo e atacar. Este estado psicológico está acompanhado de manifestações físicas diversas, incluindo-se aí os sons emitidos. As alterações corporais ao mesmo tempo expressam e mantêm o estado de cólera necessário à luta. Digamos que o nosso genial tetravô, após a morte do inimigo, e antecipando de séculos o jubilo comemorativo de um jogador de futebol ao fazer um gol, tenha descarregado seu excedente de energia brandindo o tronco acima da cabeça e, cheio de alegria, tenha repetidamente gritado PAM ao mesmo tempo em que dava pulos de contentamento, numa espécie de dança e canto primitivos da mais intensa euforia. Neste momento, o conjunto do comportamento comemorativo, incluindo-se aí o significante PAM, poderia significar: "matei o lobo e estou feliz por estar vivo e meu inimigo morto". PAM, aqui, é um dos aspectos da ação e da emoção; a emoção descarrega-se pela ação e o grito é também ação: o músculo diafragmático empurrando o ar do pulmão através da glote, fá-lo sair da cavidade bucal numa explosão bilabial. Sendo ação PAM é também um som.          

                Imaginemos um segundo momento. Desta vez, nosso gênio está acompanhado por um outro ser humano. Por acaso, estão distantes entre si e um tronco jaz perto do companheiro. Nosso personagem pressente que vai ser atacado por um mamífero carniceiro e corre em direção ao tronco gritando PAM. Seu companheiro espantado e mobilizado pela situação, acompanha a corrida do amigo ouvindo o som PAM repetido. A cena termina com um happy end, matando-se o animal. PAM aqui, ainda pertence a uma ação e a uma situação singular; porém já se independentiza do gesto de ataque e sobrevoa por sobre toda a seqüência vivida. É um som que dá um precário mínimo destaque ao objeto "tronco", um significante cujo significado seria aproximadamente o seguinte: "quero o tronco para poder matar o meu inimigo mortal". Inicia-se aqui a sua função de comunicação.

                Terceiro momento: novamente Brucutu (nosso gênio) e seu companheiro. Com a diferença de que o atacado é o companheiro. Brucutu ao vê-lo em perigo aponta para o tronco e grita "PAM" correndo em seu auxílio. PAM continua pertencendo a uma situação particular, real e atual. Porém ganha uma ainda maior independência. Agora, ela indica mais claramente um objeto delimitado, aponta para uma existência, embora esta existência mal se distinga do conjunto da situação vivida; distingue-se porém o suficiente para agora merecer o nome de "palavra"; uma palavra que dita em meio a uma ação real, pertence a esta ação. Aqui o significante PAM poderia ser traduzido por "pegue este tronco para se defender". Sua função de comunicação está se consolidando.

                Quarta cena: Brucutu conta sua aventura para os companheiros. Re-produz a cena vivamente e nesta re-produção emprega o significante PAM em todos os seus usos anteriores: como inerente à ação de matar, como inerente à explosão de júbilo comemorativo e como indicativo de um objeto carregado de uma importância vital dentro da seqüência de uma ação. Neste caso, diferentemente dos outros, a situação embora singular e real no sentido de uma existência em si e por si, não é atual, mas sim uma re-produção vivencial, uma repetição diferencial de uma situação já ocorrida. Os objetos não estão presentes, mas o relato re-produz a intensidade experiencial, atualizando e dando força,  vivacidade e presença aos objetos ausentes, aos acontecimentos já passados. Há uma certa independentização da cena re-produzida em relação ao acontecimento, e a palavra PAM, partícipe da re-produção, está acumpliciada nesta independência. PAM goza pois de uma dupla "certa"-independência: a que vem de sua vinculação a uma re-produção vivencial e a que se pode reconhecer pela delimitação de um certo território, que, embora fluido, não deixa de ter certo destaque.         

                Quinta cena: Brucutu tem à sua volta um grupo de crianças e, preocupado com os perigos da floresta, resolve  lhes ensinar a se defender. Inventa então uma cena em que, atacado por um lobo, abate-o com um tronco. Da mesma maneira que no exemplo anterior PAM aqui é usado em suas várias acepções, dando-se-lhe, contudo,  certo destaque como objeto de agressão/defesa o que faz ressaltar sua angulosidade indicativa; este modo de visada não se apresenta porém como um foco nítido já que o objeto PAM está mergulhado na intensidade dos acontecimentos, neles perdendo os seus contornos de pura indicação. O objeto PAM não tem seus limites determinados pela extensão física do tronco, mas continua-se e apaga-se na emocionalidade e força propulsora dos acontecimentos. Voltaremos, mais tarde, a este aspecto. Neste momento quero mirar o acontecimento PAM pela perspectiva de seu salto qualitativo nas modalidades do pensar. Vejamos: Brucutu participou de inúmeras caçadas e foi atacado por lobos inúmeras vezes. O desempenho re-produtivo que ele realiza não se refere a uma caçada específica mas representa um resumo, uma contração, uma síntese vivencial feita por ele mesmo e à sua maneira de todas as caçadas das quais participou. É, portanto, uma cena ao mesmo tempo reproduzida e imaginada, repetida e inventada, porém uma invenção calcada em experiências e atuada para os garotos como uma experiência viva, embora não seja real como a cena 4, nem atual como a cena 3. Podemos chamar a esta performance experiencial que está sendo vivamente transmitida, de experiência exemplar, pois aqui Brucutu traz um exemplo vivo, pleno de força e emoção para os garotos. Para estes, tanto faz Brucutu re-produzir uma experiência singular ou atuar uma experiência exemplar. O que conta para eles é que Brucutu possa envolvê-los em sua narrativa, colocando-os dentro da atividade da caçada. Para isto, Brucutu deverá estar finamente sintonizado com os sentimentos, expectativas e fantasias da platéia, o que exige dele uma abertura perceptivo-emocional para a cena presente, a cena que está sendo vivida com os meninos. Este aprendizado vivo será a base para qualquer outro aprendizado que possa ser realizado. Os objetos só adquirem interesse e significado plenos quando implicados em vida e emoção. A vantagem de Brucutu atuar não uma situação concreta, mas uma situação exemplar está no fato dele poder condensar em uma única performance as experiências mais marcantes, mais importantes e mais freqüentes, podendo graduar a ênfase segundo o conjunto de suas experiências e de acordo com as reações do público. Mais tarde, o aedo terá à sua disposição situações exemplares das quais se utilizará para se comunicar vivencialmente com a platéia. Estas situações exemplares serão chamadas de mitos.

                Sexta situação: séculos se passaram. Um outro salto se realiza. Esta mesma cena é agora contada sem teatralização, apenas com palavras, o que cria um distanciamento afetivo e vivencial. Nesta modalidade revolucionária separa-se designação de emoção; a palavra PAM apenas nomeia um objeto, dando-lhe contornos nítidos, isolando-o da situação viva, e possibilitando assim o seu estudo como objeto em si. Ele pode ser agora fisicamente estudado, transformado em  moléculas e átomos, cortado, macerado, queimado e o que mais se queira experimentar. Pode ser avaliado em seu peso, consistência, força de impacto, etc. Pode-se fazer um estudo minucioso de seus atributos, de suas propriedades defensivas e ofensivas, da técnica de manejo, etc. Pode-se inclusive realizar um treinamento com o objeto, aperfeiçoando-se assim o seu uso. Em seguida, pode-se escrever um tratado das propriedades, usos e técnicas relativas ao PAM. Este tratado não será mais uma síntese de situações vividas, mas será justo o resultado de um distanciamento afetivo e gnosiológico das situações em si intensas e vibrantes. Estamos agora diante de uma teoria que fornece um modelo teórico intelectual para a utilização do objeto, uma teoria que se comunica, que transmite o conhecimento através de um modelo. Tanto faz tratar-se de um modelo aberto, aquele que permite uma flexibilidade ao leitor, ou de um modelo fechado a ser inflexivelmente copiado. Mesmo a teoria modelar aberta difere da teoria exemplar por separar o objeto do seu contexto, o observador da vivência. O conhecimento comunicado pela teoria modelar faz com que as situações apareçam geometrizadas, reduzindo os acontecimentos a esquemas minimalistas, tirando-lhes a vitalidade, a intensidade e a vibração.[2] Já o conhecimento comunicado pela teoria exemplar mantém a força e a intensidade com que a vida decorre; é um conhecimento e comunicação instalados no devir e que estão imbricados, misturados, aos acontecendos em todas as suas dimensões. O conhecimento (e comunicação) modelar, dependendo do uso que dela se fizer, poderá ser valiosamente útil ou extremamente perigosa. Imaginemos Brucutu, no instante da luta, pensando nas propriedades da madeira; desviada sua atenção do momento presente será presa fácil para o mamífero carniceiro. Mas, se incorporada à experiência, o conhecimento (e comunicação) modelar aumentará o repertório possível de ações de Brucutu. É preciso, pois, que o conhecimento modelar se insira de tal maneira no devir, que ela própria venha a se constituir em experiência. Transformar o modelo em experiência, eis a utilização ideal do estudo realizado fora dos acontecendos.

                A filosofia platônica, com o seu mundo de essências servindo de modelo para o mundo das aparências, fornece um protótipo de conhecimento modelar enquanto que o mito recontado diferencialmente pelo aedo em sintonia fina com os sentimentos da platéia, dá-nos o paradigma de comunicação exemplar. Poderemos compreender melhor  teoria-modelar e teoria-exemplar se nos reportarmos às concepções de corpo e alma em Platão e no aedo Homero. Para Platão melhor a alma conhecerá as essências quanto menos sujeita ao corpo; é na morte que a alma, inteiramente liberta dos grilhões do corpo, poderá finalmente visitar sem limitações o mundo das idéias, adquirindo assim o conhecimento pleno das essências. Homero não nos fala de alma enquanto vida vigora; enquanto vivo, o corpo está vivificado pela pneuma - sopro vital. A alma - psiqué -,  só se faz presente no momento da morte. Esta alma é apenas uma sombra, um êidolon, privada de entendimento e de capacidade de comunicação.[3] Se, analogicamente, pensarmos na palavra como dotada de corpo e alma, diremos que a palavra homérica fala de um objeto como parte  dos  acontecendos, mantendo alma e  corpo unidos, enquanto que a palavra platônica retira o objeto do devir, separando corpo e alma. Esta separação que segundo Platão permite o verdadeiro conhecimento (episteme), na perspectiva de Homero torna-o quase impossível.

                A comunicação exemplar passa-se no devir e sua unidade pensante é o corpomente em indissolúvel união. A comunicação, a relação e o conhecimento fazem-se diretamente de pessoa a pessoa.

                        A comunicação modelar ao introduzir um terceiro - o modelo - promove um desvio que passa pelo conceito e que ao retornar à relação inter-sujeitos a empobrece e desvitaliza. No modo exemplar a teoria é móvel, modificando-se na medida em que novos acontecimentos vão sendo vividos e incorporados à experiência. Assim, a teoria exemplar (teoria-mito) está em perene transformação, refazendo permanentemente a síntese dos acontecimentos. Esta precariedade, aparentemente inconveniente, torna-se fecunda se pensarmos nestas sínteses em termos de repetição diferencial, de eterno retorno espiralado. Poderemos então nos apropriar da teoria como experiência viva, como memória de frescor estético indestrutível, como repertório experiencial e vivencial a ser atualizado quando a situação vivida o solicitar. A comunicação/relação/conhecimento acompanhará as ondulações e meandros do devir.




[1]BENJAMIN, Walter , 1985b “A Imagem de Proust”. In: _________,   Magia e Técnica, Arte e Política, p. 36.. Neste mesmo livro, no ensaio “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskow”, 1985c encontra-se outro trecho pertinente à “História do Pam”: “Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história (...) A arte de narrar está definhando porque a sabedoria - o lado épico da verdade - está em extinção. Porém esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um ‘sintoma de decadência’ ou uma característica ‘moderna’. Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas. O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno (...) Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes...”. P. 200/201.
[2]Ver MORIN, E., 1991, p. 20: “...o filósofo das ciências, Bachelard, tinha descoberto que o simples não existe. A ciência constrói o objeto extraindo-o do seu meio complexo para o colocar em situações experimentais não complexas. A ciência não é o estudo do universo simples, é uma simplificação heurística necessária para libertar certas propriedades e mesmo certas leis”.
[3]Cf. BOHADANA, E., 1990.
 
                                                                Nahman Armony 

(do livro Borderline: uma outra normalidade.) 

MOMENTO ETERNO

TRANSMUTAÇÕES

 

Havia pavor em seus olhos.
Olhei no fundo de seu pavor
E juntos
Enfrentamos o inominável.
 
Havia Morte em meu corpo
E em minha alma
Mas não em meus olhos.
 
A súplica dos olhos de minha filha
Varreu de meu ser a angústia do Além
E me tornou Puro, Forte,
Uma Rocha,
A olhá-la com a força dos Deuses Benfazejos.
 
Nem eu mais a olhava
Nem ela mim.
Nossos olhares eram uma só intensidade
Lutando contra o Horror.
Quatro olhos infinitos
Formando um infinito arco
Intransponível.
 
O choro era um grito de Vitória
O grito uma Sinfonia Guerreira
A dor, um amuleto ancorado
Nas cem correntes entrelaçadas
Protegendo a Vida
                         a Alma
                              O amor.
 
A paz no fundo da dor
Os olhos no fundo da paz
O fundo na paz dos olhos
Os olhos nos olhos
A olhar
A trançar
Retraçando caminhos.   
 
 

O SER WINNICOTTIANO E A CLÍNICA DA PÓS-MODERNIDADE

UMA INVESTIGAÇÃO INICIAL SOBRE IDENTIFICAÇÃO E IDENTIDADE PRIMÁRIAS


                                                                                           
            Winnicott viveu em uma época em que a concepção de pós-modernidade estava se formando, e, sabedor ou não disto, contribuiu com conceitos que hoje podemos usar para teorizar sofrimentos humanos ligados à conjuntura atual. Sua idéia de identidade primária é-nos de grande valia para o entendimento de questões básicas do homem pós-moderno.

                A maioria dos autores considera a identidade como resultado das inúmeras identificações vividas, especialmente nos períodos iniciais da vida. Freud fala-nos de uma identificação primária, anobjetal, anterior ao investimento objetal e de uma identificação secundária que acontece depois de estabelecida a diferenciação entre o eu e o não-eu. Mas não fala de uma identidade primária. Já Winnicott, ao retomar a idéia de identificação primária, desenvolve-a até uma concepção de identidade primária, diferente da identidade propriamente dita que já depende de identificações secundárias.

            Essas idéias, colocadas mais claramente em termos winnicottianos, assim ficariam: ao nascer, o bebê estaria numa situação de “dependência absoluta” e a mãe em um estado de “preocupação materna primária”. Ao se referir a essa fase, Winnicott tanto fala de fusão quanto de identificação. Tentarei fazer uma diferenciação entre estes dois conceitos embora tal empreendimento não seja indispensável para a compreensão deste trabalho, pois ambos desembocam na identidade primária.

            Quando falamos de identificação está pressuposta a existência de um eu e de um outro.  Falar de identificação primária ou identificação anobjetal é uma contradição ou um paradoxo. Ele talvez se justifique como decorrência lingüística da identificação propriamente dita, a identificação secundária, expressão freqüentemente usada para abordar as relações primitivas mãe-filho. Deixará de ser um paradoxo se afirmarmos que desde o início da vida distingue-se um eu de um outro. Segundo Winnicott, do ponto de vista do bebê, não existe durante a fase da dependência absoluta uma distinção entre o eu e o não-eu. Talvez pudéssemos falar de identificação primária se nos colocássemos, não do ponto de vista do bebê, mas do ponto de vista da mãe. Mesmo uma mãe que realiza uma fusão tem consciência que ali estão dois seres ao mesmo tempo separados e unidos.

O uso da expressão identificação primária para se referir à fusão mãe-filho pode ainda ser entendido como decorrente de um ponto de vista do analista que vê essa mãe primitiva mais atendendo às necessidades do bebê do que contribuindo com o seu desejo para a formação de uma identidade. Talvez possamos dizer, a propósito, que a mãe simplesmente atende à necessidade que o bebê tem de que ela SEJA. É dessa forma que se pode interpretar o “seja” da frase de Outeiral “E esta mãe não é sempre uma única coisa ou coisa alguma, ela é aquilo que o bebê necessita que ela seja” (“Conhece-te a ti mesmo”). Este “seja” tanto pode ser referido ao SER da dependência absoluta quanto à capacidade de identificação da mãe na fase da dependência relativa.

            Se, ao invés de usar a expressão “identificação primária” falarmos de fusão estaremos pensando numa maior participação da mãe no processo de constituição da identidade. As fantasias, temores, sentimentos, esperanças da mãe interagem com as potencialidades do bebê e a identidade primária estará impregnada pela subjetividade da mãe. Posso usar como analogia, com vistas a uma maior compreensão do que estou querendo dizer, a idéia winnicottiana de superposição de duas áreas de brincar. Claro que a analogia é imperfeita, pois neste último caso já terão acontecido identificações secundárias, estando o eu já diferenciado de um não-eu.

            Winnicott introduz os conceitos de SER (feminino) e FAZER (masculino). Se na fase da dependência absoluta a mãe, em fusão com o seu bebê, pode simplesmente SER, então o bebê poderá tornar-se SER. Este SER é a sua identidade primária. A palavra “simplesmente” refere-se tanto ao caráter monolítico do conceito SER quanto ao fato de só podermos ver o processo sob um ponto de vista macro. Está além de nossas possibilidades a rememoração e a descrição representacional deste estado. Podemos apenas intuí-lo, talvez a partir de uma hipotética memória arcaica não-verbal a ser despertada mais pela capacidade impressionista/nebulosa da palavra poética do que pelo discurso logicamente coerente.

Na preocupação materna primária a mãe está presente psicossomaticamente, integralmente voltada para o bebê. Ela está SENDO para o bebê que então tem a experiência de SER, pois estão ambos fundidos. Impossível definir este SER da mãe. Podemos tentar alcançar a intuição do que é este SER usando abusivamente a frase de Lacan que diz ser o corpo o primeiro significante a adquirir significado para o sujeito, se tiver sido antes significante para a mãe. Ainda em busca de uma compreensão/intuição podemos transportar para a relação mãe-bebê a observação de Masud-Kahn sobre a presença psicossomática integral de um Winnicott inteiramente voltado para o analisando. Podem-se usar as palavras devotada, dedicada, capturada, fascinada, dizer que o bebê é a razão e foco de sua existência. Estas palavras e expressões só serviriam para tentar despertar no leitor a intuição do que é SER na relação com o bebê. Se na fase de fusão a mãe É para o bebê, então este pode também SER, o que significa que ele poderá ver confirmada a sua experiência de onipotência. Como estamos falando de SER não nos será difícil aceitar que está aparecendo uma primeira e primitiva identidade que pode ser chamada de ontológica. O bebê terá então uma presença tão verdadeira, real, consistente quanto a pedra ou qualquer outro objeto animado ou inanimado da natureza. Não há dúvida de que esse pensamento apresenta dificuldades. Poder-se-ia pensar que só se pode pensar o SER em oposição a um não-SER. Não é, porém o que Parmênides nos diz quando separa radicalmente o Ser do não-Ser em sua famosa frase: “o que é, é, e o que não-é não é”. Ou: “uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo”, concluindo a partir daí, através de um raciocínio sofisticado, que tudo é Ser e que não existe o não-Ser. Isso nos ajuda a alcançar a intuição de um bebê em estado de onipotência absoluta onde só ele existe e o universo todo é ele próprio; ele está em um estado de Ser com exclusão de todo não-Ser. Como em Parmênides, há aí uma espécie de plenitude que preenche todo o universo. Podemos agora formular uma frase-ponte entre teoria e prática. É importante que o analista SEJA para que o analisando possa SER. Isto é particularmente importante em pacientes nos quais, o sentimento de SER está prejudicado. Podemos aqui encontrar os fundamentos teóricos para que o analista esteja presente na sua relação com o paciente com o seu corpo e alma, ou melhor, com o seu soma, psique e mente, que este corpo/psique/mente integrado esteja inteiramente voltado - disponível e atento - para o seu analisando. A ênfase aqui estaria na presença silenciosa/falante do corpo/mente/psique do analista.

Falei alhures de três caminhos: a mãe como espelho do bebê, como parceira contribuinte e a mãe possibilitando o SER do bebê através de seu SER. Qual deles o verdadeiro? Esta é uma falsa questão. Em primeiro lugar os três podem, segundo o gosto de cada um, se incluírem. Em segundo lugar, quando construímos nossas teorias ou nossas teorizações, valemo-nos de observações fenomênicas que serão organizadas, valoradas e selecionadas segundo nossas concepções inconscientes (penso também nas pré-concepções de Bion). Tendemos a enxergar e a nos relacionar com os nossos analisandos segundo dinamismos que se formaram ao longo de nossa vida, dinamismos estes criados no contato com figuras significativas, desde pais até psicanalistas. É nossa experiência total, incluindo-se aí leituras, teorias e o que mais seja, que está em jogo quando estamos trabalhando em nossos consultórios. Temos predisposições afetivas, intelectuais, psicomentessomáticas e buscamos ou inventamos teorizações que permitam balizar a nossa forma de ser e proceder. Interpretamos assim os fatos dentro de uma óptica própria, subjetiva e objetiva, e, portanto, transicional.

            Teoricamente posso hipotetizar que existe uma primeira identidade à qual chamei de ontológica. Corresponde à fase de fusão onde a mãe deverá estar presente com o seu SER, denso, consistente, voltada integralmente para o bebê afim de que este possa constituir sua identidade primeira, uma identidade prévia à identificação. Acho que a expressão “estar inteiramente voltada para o bebê com o seu SER integral” junto com a idéia de fusão aproxima-nos da intuição que estamos buscando. Aqueles que não tiveram uma mãe suficientemente boa nesse período apresentariam uma dificuldade em sentirem dentro de si a presença de uma base firme, de um eixo central. Esta hipótese organiza para o analista 1- a fala dispersa, ansiosa, pouco coerente onde ele se sente chamado a acolher a fragmentação, 2- as atividades múltiplas e dispersas do analisando sem outro objetivo que não a própria atividade, 3- o desajeitamento corporal resultante de uma coordenação motora falha 4- a sensação contratransferencial de personalidades inconsistentes às quais faltaria um endoesqueleto psíquico e que necessitam de um exoesqueleto que vai desde o uso da superfície do corpo (tatuagens, corpo malhado, piercings, excessiva preocupação com a beleza) até coberturas referenciais externas em cuja série o analista é encaixado.

No extremo da deficiência da identidade primária estariam o autismo infantil, a confusão mental, a esquizofrenia hebefrênica, a esquizofrenia simples. Não fica porém claro, em suas minúcias, como isto se daria. Devo então renunciar a esta formulação, ou deixá-la como uma intuição a ser estudada? 

            Em seguida encontraríamos, na linha da dependência, uma regressão à transição entre a dependência absoluta e a dependência relativa. Se esta transição foi mal vivida, a passagem da onipotência absoluta (identidade ontológica) para a onipotência mitigada (identidade humana), da experiência unária de onipotência para a experiência dual eu----não-eu fica prejudicada. A segunda identidade que é a separação de si mesmo do mundo não se faz adequadamente. Estaríamos basicamente, segundo Winnicott/Abram no reino dos borderlines e esquizóides. Teríamos uma identidade difusa, uma identidade que através das identificações projetivas e introjetivas exageradas tenderia a invadir e a se deixar penetrar excessivamente pelo ambiente. Basicamente, a mãe não teria conseguido acompanhar os movimentos de retração e expansão do bebê. Não estaria suficientemente identificada com o seu bebê para perceber seu movimento de retorno à fase de dependência absoluta a partir da dependência relativa e vice-versa. Se a mãe não acompanha o vai-e-vem de seu bebê este apresentará problemas nas áreas das identificações e das identidades secundárias. Pode sentir-se não aceito, não reconhecido, não autorizado quando da passagem da simbiose para a fusão e vice-versa. A flexibilidade da vida psíquica fica prejudicada pela intrusão materna. Os dois estados não podem se suceder dentro de uma integração temporal. Diante da intrusão o bebê reagirá ativamente ou passivamente: poderá se revoltar e enraivecer-se, tentando a integração no tempo, ou se conformar, cindindo então os estados de fusão e de simbiose; deixa então de haver um fluxo livre entre estes dois estados, tendendo o bebê a privilegiar um dos estados, ficando o outro dissociado, mas passível de subitamente ser retomado. O mesmo pode acontecer quando da passagem da simbiose para a individuação (da dependência relativa para rumo à independência).

            As noções desenvolvidas neste trabalho pretendem focalizar especialmente aquelas personalidades que não se sentem consistentes e que aparecem em número crescente em nossos consultórios.

São pessoas que para se sentirem reais precisam muitas vezes de emoções fortíssimas, entre elas a emoção da violência/destruição. A noção de “identidade ontológica” que depende da capacidade de SER da mãe, e a importância atribuída à capacidade de SER do analista, podem nos ajudar no manejo de pessoas com sérios problemas na área da identidade primária.

A capacidade de SER da mãe estando prejudicada por uma sociedade que a requisita como força de trabalho, trazendo-lhe preocupações e incertezas que ultrapassam o âmbito doméstico, inserindo-a numa subjetividade que cultua o individualismo, o corpo belo, o espetáculo, o sucesso, dificulta o exercício de sua função de SER. Será a capacidade de SER do analista que ajudará analisandos com um endoesqueleto psíquico precário a se fortalecerem.
                          
                                           Nahman Armony
                                                             ago.2009
 

 

 

 

CONTROLE&CUIDADO


A DIFÍCIL ARTE DE DOSAR CONTROLE E CUIDADO EM UMA RELAÇÃO AMOROSA

                                                                          

As crianças querem sempre saber onde a mãe está, pois têm medo de perdê-la. Com o tempo, percebem que o amor é a garantia de que não serão abandonadas;  contudo mantêm, em parte, a atitude controladora, agora por preocupação e afeto. No relacionamento amoroso, a experiência se reproduz. O risco é permitir que o zelo se transforme em fiscalização excessiva.
 Para algumas pessoas, o fato de o parceiro ou parceira não perguntar a todo o momento para onde ele ou ela vai, não telefonar com freqüência ou não se interessar por detalhes de sua vida é percebido como desinteresse ou falta de amor. Para outras, é o contrário. O controle excessivo lhes traz a sensação de privação de liberdade, desrespeito à privacidade, desconfiança quanto à fidelidade. Ambas as formas de agir — e as reações por elas provocadas — podem comprometer a relação.  Porém, na maioria das vezes é possível relevá-las e viabilizar a convivência com elas, preservando o amor e a parceria.

Precisamos nos voltar para a infância para entender as forças em operação no psiquismo do adulto. Ao nascer, o bebê imagina a mãe como parte de si e acredita que exerce controle absoluto sobre ela. Basta chorar que a mãe aparece para suprir sua necessidade.

À medida que cresce, percebe que ela é independente e nem sempre responde com presteza ou sequer atende às suas solicitações. Desesperada, temendo perder a mãe, a criança busca recuperar o controle refinando os procedimentos. Aos poucos, aprende quais ações são efetivas para conseguir o que deseja. Se antes lançava mão só do choro, agora usa a culpa, a amolação, a graciosidade, a chantagem emocional. Ao mesmo tempo, o afeto pela genitora vai crescendo. A preocupação com seu bem-estar, tranqüilidade e saúde ganha força. As perguntas “o que a mamãe está fazendo?”, “para onde ela foi?”, “com quem ela está?” têm os componentes de controle e afeto, além dos de curiosidade, aprendizado, identificação e certamente outros, mais sutis. Mas me interessa falar das duas correntes psíquicas postas em evidência mais acima: uma que deseja controlar e outra que deseja cuidar da mãe. A primeira está ligada ao medo de não sobreviver sem sua presença; a segunda, ao amor por ela. Ao amar a mãe, a criança sente-se amada. O controle começa a perder a razão de ser: uma mãe amorosa não vai abandoná-la ou negligenciá-la. O próprio amor se torna fator de segurança, dispensando o controle. Mas persiste o sentimento primitivo de que é o controle que faz a mãe acudir e a mantém amarrada e atenta.

Como somos herdeiros de nosso passado, nos mantemos em parte no registro do controle e em parte no do zelo; sem esquecer o natural desejo amoroso de participar de tudo que se refere ao amado e da curiosidade sobre suas atividades.

Alguns adultos aceitam o controle e o considera, como ao ciúme, uma prova de amor. Mas outros se sentem sufocados, presos e ofendidos com o mínimo de indagações sobre suas atividades. Estes só percebem o controle e não conseguem ver o aspecto de cuidado na atitude do outro. Desde que não haja fatores complicadores, a necessidade de controle vai sendo lapidada até se perder no amoroso desejo de acompanhar a vida do parceiro. O que persistir poderá ser carinhosamente aceito, a não ser que se tenha criado, durante o desenvolvimento, uma ojeriza pela atitude fiscalizadora. Em geral, negocia-se um certo encaixe entre o medo de ser controlado de um e o desejo de controlar de outro. Se os aspectos de zelo, do “querer saber” puderem ser percebidos e valorizados, e se o casal está disposto a desenvolver a relação em direção a um equilíbrio, o medo de ser controlado ou a idéia de que a falta de controle significa desamor podem ser minimizados, permitindo uma convivência rica e gostosa.

                                               Nahman Armony

      Primeira publicação na revista CARAS.

 

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A DANÇA INFERNAL

Milhões de bonequinhos Nahman a dançar dentro de mim
Eles batem, eles pulam, eles correm, eles gritam.

- Meu cérebro é lugar de brincadeiras!

Estão sempre inquietos
Atraindo-me a atenção;
Se peço que parem, sosseguem,
É em vão.
Em paz eles dizem
Tu não ficas, não
Seu grande bobão
Seu cara de chão
Tu não ficas não.

- Eles se divertem comigo!

Mas...tudo parou?!
Será que eles voltam?
Penso que não.

E agora Nahman?
E os bonecos Nahman?
Sem eles, Nahman
Quem és tu, Nahman?

Mas, um aparece.
Aqui estou, diz rindo
Procuro alcança-lo
Mas onde o bandido?
Já outro me chama
E outro me espeta
Cutucam de um lado
Nahman eles berram.
Direita, atrás,
Esquerda, à frente,
Nahman, Nahman,
De todos os lados
Milhões de bonecos
Picando, batendo,
Cantando, pulando,
Aqui estamos, aqui estamos
 - ME DEIXEM DE VEZ.
De vez, repetem
De vez, gargalham
E chamam meu nome
E dão cambalhotas
Não o deixaremos
Não o deixaremos

Milhões de Nahmans a berrar
Milhões de Nahmans a dançar infatigáveis
                     A Dança Infernal.

                                         Nahman Armony