A INTERAÇÃO HOLÍSTICA
ANALISTA-ANALISANDO
Para
chegar até a interação holística analista-analisando – onde o corpo/sensações/afetos
do analista são levados em consideração, a psicanálise percorreu um caminho que
tentarei esquematizar. Nas primeiras décadas de existência da psicanálise, quando
vigorava o paradigma dicotômico da modernidade, época de repressão, recalque e
neurose, o psicanalista considerava-se um leitor objetivo do Ic. do analisando,
transmitindo-lhe sua leitura através da interpretação, esperando que o
preenchimento das lacunas de memória fizesse desaparecer o conflito produtor de
sintomas. O analista colocava então uma distância entre ele e o analisando,
distância que o protegia de se envolver afetivamente, na época (e para alguns,
até hoje), o maior dos pecados. A fala do analisando não penetrava na
subjetividade, no psiquismo, no interior do analista. Ela flutuava no espaço
criado por um distanciamento técnico prévio de onde era olhada e avaliada pelo
analista através de sua ótica teórica. O analista pretendia ser um espelho do
Ic. do analisando. Julgava conhecê-lo referenciando-o à teoria que utilizava,
passando por fora de uma relação direta de subjetividades. Colocava-se numa
posição de superioridade hierárquica que tinha a ver com a estrutura da relação
e com uma pretensão onipotente de conhecimento. Era ele quem sabia do Ic. do
analisando e todo protesto era considerado uma resistência. Em um artigo
anterior chamei a esta constelação de postura-espelho, comportamento
interpretativo. A palavra representacional era o grande astro desta relação.
Ignorava-se o corpo e se dava atenção à palavra. O decúbito do analisando
preenchia duas das condições da psicanálise de então: não ver e não ser visto,
mas apenas ouvido o que tornava a palavra soberana; e ficar numa situação de
inferioridade ontológica como se ele, analisando, fosse um mero mortal diante
de um semideus onipotente e onisciente. Era a partir desta posição que o
analista interpretava o Ic. e as defesas. Analista e analisando habitavam dois
universos separados que se comunicavam através de um espaço entre eles e fora
deles, onde a vivência de cada um era transformada em palavra representacional.
Stolorow chama a isto de “mito da mente isolada”.
Com
os conceitos de identificação projetiva e introjetiva de Melanie Klein, de
continente de Bion e de depositação de Bleger os conteúdos e afetos não mais
eram alocados em um espaço intermediário, mas entravam diretamente no psiquismo
do analista provocando uma contratransferência.
Temos aqui duas
possibilidades: na primeira a mobilização afetiva provocada pela penetração das
fantasias e afetos do analisando no psiquismo do analista eram, por este,
contidos e segregados em um local isolado do seu psiquismo. De lá eram
observados pelo eu isento do analista que assim podia objetivamente visualizar
a transferência/contratransferência e a partir daí oferecer uma interpretação. Nenhuma
palavra sobre o tempo de permanência dos conteúdos do analisando no psiquismo
do analista. O conceito de continente de Bion avança mais; este autor fala
explicitamente da importância do tempo de maturação dos conteúdos do analisando
no psiquismo do analista que, portanto, não deve receber de imediato uma
interpretação; mas a resposta a ser dada ainda é através da interpretação. O
conceito de depositação tem suas semelhanças com o de continente. Ambos
consideram que o conteúdo depositado no analista precisa um tempo para ser maturado
e elaborado. O conteúdo poderá ser devolvido ou não, pois a própria maturação
promove transformações na dinâmica psíquica. Nesta concepção há momentos de
encontro intersubjetivo em que os dois funcionam unitariamente, mas continua
predominando o comportamento interpretativo e o “mito da mente isolada” que por
vezes sai de seu isolamento. Ao final e ao cabo tudo desemboca na
interpretação. Mas, sem dúvida é mais um passo em direção à intersubjetividade,
à interação holística. A interpretação embora tangenciada pela vivência
compartilhada continuava a predominar como o instrumento magno da psicanálise.
Eu me referi a duas
formas de funcionamento da continência. Na primeira, vista acima, o analista
abre seu psiquismo para receber afetos e fantasias dentro de si; logo em
seguida, porém, os isola, e passa a olhá-los objetivamente, como se não
pertencessem a ele. A segunda função é de amadurecimento das vivências e
dinamismos. O analista contém dentro de si as projeções do analisando dando
tempo para que a própria relação exerça uma ação terapêutica. Já estamos
falando de algo revolucionário: a importância da personalidade e do
comportamento do analista na evolução da análise independentemente das
interpretações corretas que possa dar. Esta revolução ganha clareza e se
consolida com autores como Winnicott, Kohut, Searles, Stolorow, Stern, Atwood, Orange.
Esta última cria o conceito de cotransferência deixando bem claro a paridade
das transferências e contratransferências do analista e do analisando, retirando
o privilégio hierárquico do analista. São duas subjetividades de igual valor e
importância que se encontram e criando um campo intersubjetivo. Estamos falando
de vivências compartilhadas. A interpretação deixa de ser o grande astro da
psicanálise e divide seu espaço com outro estar-com: a vivência compartilhada. Já
não estamos falando de mentes isoladas, mas de partilhamento, interações,
mutualidade, identificações cruzadas, relações dual-porosas.
O mundo atual mudou a
distribuição dos modos de ser. Na modernidade predominava a repressão/recalque
criadora de sintomas neuróticos. Na pós-modernidade predomina a porosidade e a
permissividade o que coloca nosso analisando diante das questões fundamentais
do ser humano: morte, sentido da vida, amor, identidade, etc. Em tendo havido
dificuldades no seu desenvolvimento devido a uma maternagem não suficientemente
boa e em não havendo um superego forte que possa reprimir as conseqüências
psíquicas dessa má maternagem, facilmente se chega aos limites da personalidade
deparando-se então com ameaças de desintegração, de queda em um buraco sem
fundo, de despersonalização, de pânico, de beira de abismo, etc. Sua porosidade
torna-os muito perceptivos e sensíveis ao estado corporal/afetivo do analista
guiando-se mais por ele do que pela palavra representacional. Nós que já
tínhamos acompanhado a linha que vai da interpretação à vivência compartilhada,
encontramos outra linha de evolução que lhe é muito próxima: da palavra
representacional ao corpo-afeto e à palavra holística, aquela palavra não
intelectual ligada não à mente, mas ao corpo/psiquismo.
Temos então uma novidade
em nossa área. Antes lidávamos com a palavra como protagonista e com o corpo
como fundo. Até o aparecimento dos autores acima citados assim foi. Não que as
figuras de fundo não fossem reconhecidas; elas simplesmente eram
desconsideradas ou marginalizadas. Lembro-me de, há muito tempo atrás ter
falado, com um colega analista, que geralmente se cria um afeto entre analista
e analisando e que isso deve ser levado em consideração já que influi no curso
da análise. A resposta que obtive é que, mesmo existindo, o afeto não deveria influir
no desenvolvimento da psicanálise. Na verdade o borderline deixa-se influir
mais pelo afeto que pela palavra representacional. O borderline não presta
atenção à palavra neutra; é preciso que ela venha acompanhada de uma
expressividade emocional. Já o neurótico acredita e presta atenção na palavra
representacional não dando atenção às modificações afetivo/corporais.
Muito já foi estudado
sobre transferência e contratransferência sob o signo da palavra. Começou-se,
de um tempo para cá a estudar a transferência e contratransferência sob o signo
do corpo/afeto. Acredito que podemos dizer que a evolução deste pensamento é,
até certo ponto, analógica à anterior. Tal como a transferência psíquica, a
transferência corporal de início foi ignorada. Em seguida, passou-se a
valorizar o corpo como fonte de informação sobre o psiquismo do analisando e
embora os analistas percebessem a dificuldade de colocar em palavras as
sensações e sentimentos corporais eles, num paralelo à transferência psíquica consideravam
de importância primordial esta tradução. É o que diz Fontes na p.93 de seu
livro “Memória corporal e transferência”: “É
preciso que a sensação seja interpretada, porque seu retorno como memória se
deve ao fato de ela encontrar-se anteriormente não-interpretada, tornando-se
assim uma inquietante estranheza”. Vou aproveitar este momento cairótico
para adiantar o que seria a etapa seguinte do desenvolvimento da relação
analista-analisando: tão ou mais importante que a interpretação das sensações é
o diálogo das sensações corporais entre analista e analisando. Mais adiante
darei exemplos. Continuando: tal como a contratransferência psíquica, a
contratransferência corporal, (aperto no coração, coceira, sono, inquietude, dor
de barriga, leve erguer de sobrancelha, contração
muscular,
etc. do analista) era considerada um acontecimento irrelevante. Só mais tarde,
tal como aconteceu na contratransferência clássica, passou a instrumento de
trabalho; as sensações do analista foram instrumentalizadas. Como foi visto
esta instrumentalização tinha como meta a interpretação das sensações. Falta
percorrer uma última etapa. A relação transferencial-contratransferencial psíquica
é terapêutica em si mesma, independentemente da interpretação. De maneira
similar o diálogo entre os corpos é terapêutico em si mesmo independentemente
de se vir a interpretá-lo ou não. Isto não é algo novo, pois há muito se admite
que o brincar da criança e o sonhar do homem é elaborativo, e, portanto
terapêutico em si mesmo. Vou contar dois episódios clínicos em que a interação
terapêutica se deu em nível corporal sem que nenhuma palavra, muito menos uma
interpretação, tenha sido dita.
Primeiro episódio: após um
tempo de tratamento de uma pessoa de aproximadamente 35 anos, um estranho
diálogo se estabeleceu entre nossas barrigas: ambas borbulhavam, ora
concomitantemente, ora sucessivamente. A forte impressão que dava era que
conversavam entre si em uma linguagem absolutamente própria, incompreensível
para nós. Foi uma situação que se repetiu várias vezes e que se causou
constrangimento foi apenas no início e mesmo assim leve. Estávamos
perfeitamente à vontade com o diálogo de nossos intestinos e certamente achamos
que era um colóquio importante. Não só eu nada falei como também não me
preocupei em dar uma interpretação ao que estava acontecendo. Só ao escrever
este trabalho fiz a hipótese de que estávamos desafiando o convencionalismo e
que isto nos fazia cúmplices, nos aproximava. Além do que um órgão fundamental
estava envolvido: o órgão da digestão dos alimentos que podemos imediatamente
associar a refeição e a mamada. Estaríamos então ambos igualmente em uma
situação regressiva (eu não era superior a ela) e desafiando a sociedade (dois
transgressores em cumplicidade). São apenas hipóteses. Na época nada foi dito.
Mas a sensação de conforto e entendimento foi importante para o desenvolvimento
da relação. Segundo episódio: a primeira criança que tratei tinha quatro anos e
era portadora de uma urticária severa intermitente que freqüentemente cobria
todo o seu corpo. Depois de algum tempo de tratamento percebi nele um pedido
para ser abraçado. Neste dia a urticária se espalhava por toda a sua pele.
Dei-lhe um abraço e a urticária, como por milagre, imediatamente desapareceu.
Estes dois exemplos são de fácil entendimento. Nossos sentidos tradicionais os
percebem e não deixam dúvida quanto a sua existência. Existem, porém situações
extremamente sutis, mas da maior importância para o desenvolvimento da relação,
não acessíveis aos sentidos comuns. Poderíamos aqui encontrar um novo sentido
para além da audição, visão, etc. para cobrir os incorporais (ou quase-fenômenos)
que tentarei descrever a seguir. Este sentido seria a identificação porosa. Perceber
holisticamente por identificação. Imaginemos um analista bem analisado que
conseguiu reduzir as exigências de seu superego, que se tornou cônscio de seu
narcisismo, de sua inveja, de sua tendência autoritária ou depressiva ou de sua
tendência à submissão, de sua necessidade de brilhar, etc., etc. Por melhor que
tenha sido analisado algumas destas tendências embora atenuadas continuam a
fazer parte da estrutura de sua personalidade. No nível consciente é possível
controlá-las de modo a não interferir na comunicação verbal. Porém aquilo que é
possível controlar a nível verbal aparecerá no comportamento do analista, na
maneira de seu corpo/afeto se manifestar. Há sutilezas imperceptíveis que
revelam leves exigências superegóicas, ou ligeiras dificuldades em aceitar o
crescimento e afirmação do analisando, uma imponderável inveja negativa, um
evanescente autoritarismo ou submissão, etc., etc. Estas vaporosas
manifestações de tendências não influem no tratamento do neurótico que criou
uma barreira para não se deixar afetar facilmente pelos fantasmas do outro e
pelos seus próprios fantasmas. Mas com pessoas mais porosas do que reprimidas
este comportamento quântico provoca reações de grande magnitude. O suave bater
das asas da borboleta pode provocar tempestades psíquicas. Temos aqui uma
situação difícil. Como dar conta do evanescente do corpo?
Podemos aqui começar a
pensar naquilo que Foucault chamou de “cuidado de si” ao estudar o modo de vida
greco-romano. Sócrates diz para Alcibíades que para governar Atenas deverá
primeiro cuidar de si, conhecer seus limites, tentar corrigir suas imperfeições
tendo como modelo as idéias transcendentes. Fica claro que não só a pólis ganha
com isso, mas também o próprio Alcibíades. O mesmo se pode pensar do analista.
Aquilo que seu corpo faz na sessão é da ordem da espontaneidade. O analista
deverá estar atento às sutis manifestações corporais, suas e do analisando,
para melhor se orientar na relação, tentando evitar que a análise tome um curso
indesejável. Este é um objetivo impossível, mas podemos nos aproximar dele. O cuidado de si começaria com o conhecimento
de si. Este conhecimento de si deverá se estender do que hoje já é convencional
até as ínfimas variações do corpo/afeto: um pequeno sobressalto cardíaco, um
leve ardor no estomago, um aperto no peito, uma coceira quase imperceptível, um
sinal de sonolência, uma súbita queda ou incremento de energia, etc. É uma
empreitada impossível já que infinita; mas podemos avançar neste infinito e
cada pequeno território desbravado por uma atenção persistente e
concentradamente focada no momento presente[1]
permitirá uma melhor orientação do analista na sessão.
Quando o analista sintoniza
com o humor do analisando acompanhando com o seu corpo/afeto as manifestações
do outro corpo/afeto cria-se uma corrente radioativa que une
analista/analisando em uma unidade de interação. O analista deverá deixar que o
estado de espírito, os afetos e as fantasias inconscientes do analisando
penetrem em seu ser respondendo a elas com comportamentos complementares e
homólogos. Na verdade, mais que identificações complementares e homólogas os
dois tornam-se uma unidade de funcionamento, trocando afetos e fantasias e
criando um campo intersubjetivo próprio daquela relação específica, um campo
ecológico em permanente exercício de reequilíbrio.
Muito ainda
poderia ser dito, mas o meu tempo está acabando. Este texto fica como uma
comunicação preliminar em um campo em que há muito a desbravar e a dizer.
Março/2010.
Nahman Armony