O
HOMEM CRIATIVO: SUBJETIVIDADES EM TRANSFORMAÇÃO
RESUMO
DE
O ‘BORDERLINE CRIATIVO: SUJEITO DE UM
MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO’ PARA ‘O HOMEM
CRIATIVO: SUBJETIVIDADES EM TRANSFORMAÇÃO’.
Ao final de minha
conferência, tendo feito um percurso da modernidade à pós-modernidade, e dentro
da pós-modernidade, elaborado um novo paradigma a ser ventilado e debatido,
sugiro, a partir dos novos elementos trazidos, a mudança de título. Esta foi
uma forma que encontrei de enfatizar a permanência do devir (o Ser é o Devir)
nessa minha manifestação onde afirmo a existência de um paradigma moderno
repressor, um paradigma pós-moderno excessivamente permissivo e elaboro a
existência de outro paradigma pós-moderno cujo nome, ainda flutuante, poderia
ser paradigma holístico, humanista, ecológico, amoroso, ou algum outro que
caracterize essa nova subjetividade. Nesse trajeto elaboro a questão da
criatividade comum e da criatividade winnicottiana lançando mão de diversos
autores psicanalistas, filósofos, escritores e cientistas: Freud, Romain
Rolland, Bergson, Kekulé, Einstein, Carlos Plastino e, naturalmente e
enfaticamente, Winnicott. Uma linha importante de pensamento são as diferenças
das relações parentais nos três paradigmas mencionados. Essas diferenças são
altamente influentes na formação dos paradigmas, o que não quer dizer que não
haja outras também extremamente influentes. A ideia que fica é a de que o homem
contemporâneo que em outro lugar chamei de Homem Transicional é mais facilmente
criativo por amalgamar os modos neurótico e borderline de estar no mundo.
Palavras-chave:
criatividade, neurose, borderline, repressão, intuição, paradigma moderno,
paradigmas pós-modernos, Homem Criativo.
O verbo criar (e seus
parentes próximos --- criativo, criação, criatividade) tem inúmeras
conotações: criar uma criança, criar
gado, criar uma esperança, criar uma obra de arte, criar uma teoria, etc. No
momento interessa-me trabalhar com uma das conotações mais usadas: inventar
algo novo, inédito. Um acaso (ou, quem sabe, um sincronismo) alertou-me para o
possível perigo dessa escolha, pois um simples ‘o’ acrescentado à palavra
‘usadas’ transforma-se em ousadia. Assusto-me com os ocultismos dos poderes
mediúnicos. Qual ousadia invadiu meu campo semântico? Será que meu pecado é
colocar em um lugar privilegiado ---- considerando que estou entre
psicanalistas que conhecem e admiram Winnicott sendo eu mesmo um deles ---- uma
conotação banal, deixando ao lado a contemporânea, complexa e revolucionária
concepção winnicottiana que se materializa na frase “criar o que já existe”?
O bordão criar o que
já existe nos remete ao objeto e fenômeno transicional que é ao mesmo tempo
subjetivamente concebido e objetivamente percebido. Esse objeto transicional,
irmão siamês do espaço potencial é criativo não especialmente por acrescentar
algo inédito, mas por unir o subjetivo mutante ao objetivo consensual, tornando
a pessoa parte integrante do universo, e o universo parte integrante da pessoa,
ultrapassando-se a dicotomia h@mem/ambiente. A pessoa é criador e criatura do
mundo. Essa formulação holística básica não impede que a essa conotação se
acrescente uma significação mais usual que é a de simplesmente inventar, trazer
ao mundo objetos até então desconhecidos/inexistentes. Haverá então
criatividade em dois sentidos: no de estar recriando o objeto e portanto
criando o mundo (objeto transicional), e no sentido de acrescentar ao acervo da
humanidade algo inédito num desdobramento da intuição original. Diz Winnicott
que o simples e autêntico respirar é um ato criativo. Um ato que une homem e
mundo. Visto isso, surge uma questão: toda inovação é, por definição, criativa
no sentido winnicottiano?
Percebo que, quanto
mais se afastam as duas conotações de criatividade (a comum e a winnicottiana)
mais elas insistem em se aproximar. Acabarei sendo coagido a aceitar a
existência de dois contrários atuando como unidade funcional. Devido aos meus
condicionamentos genealógicos, certamente não ficarei adstrito ao paradigma
holístico já que estou sujeito à influência/intensidade de minhas raízes mais
primitivas. Dou-me provisoriamente por vencido e me conformo em manter juntas as
duas conotações do criar, sabendo que provavelmente terei de lidar com
contradições, paradoxos, confusões várias, com as quais tentarei lidar, usando
ora a lógica formal, ora a paradoxal, ora sem saber bem que lógica estou
usando. Continuarei falando de criatividade como acréscimo e de criatividade
como sentimento de pertencer ao universo e ser por ele pertencido. Esta última
pode ser mais bem compreendida se a compararmos com pessoas que têm um
sentimento de desrealização: elas são observadoras da vida, mas não a criam e,
em não criando, não se sentem vivazes. O pôr-do-sol, por exemplo, não as
comove. É simplesmente um fenômeno natural importante para a ciência e externo
às pessoas. Mas quando crio o que já existe, estou penetrando no fenômeno pôr
do sol, tornando-o transicional ao empapá-lo com minha subjetividade. A
subjetividade flui em devir e isso é uma benção, pois podemos ver milhares de
vezes um pôr-do-sol como se fosse a primeira.
Quando o novo não
resulta da junção assimilativa do objetivo com o subjetivo, ele será chamado de
criação no seu sentido corriqueiro, mas não será uma criação no sentido
winnicottiano. Quando produzo algo sem antes ter penetrado em seu âmago com
minha subjetividade, estou criando sem criatividade, pois meu ser mais íntimo não
estará participando da criação. Trarei uma citação de Bergson para, em
colocando-a junto com os ingredientes de nossa panela queer ecumênica, atrair
@s efervescentes e criativos fogos eletrificados da vida: “Seja ainda uma
personagem de romance cujas aventuras me são contadas. O romancista poderá
multiplicar os traços de caráter, fazer falar e agir seu herói tanto quanto
queira: tudo isto não valerá o sentimento simples e indivisível que eu
experimentaria se coincidisse um instante com o próprio personagem” (Bergson-
“Introdução à Metafísica” p.20). Na minha avaliação estamos aqui diante de uma
criatividade que não inova no sentido comum da palavra, mas de uma criatividade
vital (o personagem ganha vida ao ser criado pelo liame
subjetividade/objetividade) que faz o Homem parte da sociedade/natureza. Em
minha opinião Winnicott instituiu um arquétipo, o mais primitivo possível,
quando falou do simples respirar como um ato criativo.
A criação no entender psicanalítico
winnicottiano é fundamental para a existência do Homem. Mas também a criação
inédita não winnicottianamente criativa (se é que posso me expressar assim)
preenche parte de nossas vidas e sem ela os seres vivos não poderiam prosperar.
A boa cópia, embora sempre incompleta, dizia Deleuze interpretando Platão, é
uma figura necessária para a vida.
Conheço dois concertos
para violino de Haydn. Um do genial Joseph Haydn e outro de seu irmão Michael
Haydn, ambos interpretados por Robert Gerle. O primeiro concerto toca nossa
alma fazendo com que participemos da música com o nosso ser mais íntimo.
Dissolvidos e carregados pelas ondas sonoras nos perdemos num oceano sem fim. O
segundo faz com que acompanhemos com interesse sua criação, sem porém nos tornarmos unos com a música. Temos um
belo objeto a nossa frente, uma música agradável que apreciamos, mas que, em
não mobilizando nosso mais íntimo núcleo emocional, não comove, não nos
dispersa no infinito. Mas provoca uma agradável e bem-vinda sensação de
bem-estar.
Estamos, pois, falando
de dois tipos de criatividade.
O Homem foi desde seus
primórdios, criativo nos dois sentidos. E continua a sê-lo. Caso contrário,
teria desaparecido como espécie. Sua inventividade foi se potencializando
através dos séculos. Temos uma infinidade de exemplos que vão desde a ancestral
conquista do fogo até a atual descoberta de elementos fugazes captados por
gigantescas estruturas aceleradoras de partículas; e desde a criação de mitos
de origem que incluíam nosso ancestral primitivo no enigmático mundo em que
vivia, até a concepção winnicottiana de criatividade. E muitos outros
desenvolvimentos serão encontrados se os procurarmos. Uma vez tendo sido, num
lance de intuição, criada a roda, seguiram-se os vários e diferentes tipos de
aperfeiçoamentos mais dependentes de um raciocínio lógico do que de uma
intuição. O mesmo vale para o fogo, para a teoria da relatividade, para as leis
de Arquimedes, etc. Acho que aqui vale uma citação de Winnicott: “Num sentido positivo, o pensar faz parte do impulso criativo, mas
existem alternativas ao pensar e elas possuem algumas vantagens sobre ele.
Exemplificando, o pensamento lógico leva muito tempo e pode nunca chegar lá,
mas o lampejo de intuição não leva tempo e chega lá imediatamente. A ciência
precisa de ambas estas maneiras de progredir. Achamo-nos aqui buscando
palavras, pensando e tentando ser lógicos, e incluindo um estudo do
inconsciente que permite uma imensa ampliação do raio de ação da lógica. Ao
mesmo tempo, porém, precisamos ser capazes de buscar símbolos e criar imaginativamente
e em linguagem pré-verbal; precisamos ser capazes de pensar alucinatoriamente”.
(WINNICOTT – “Explorações psicanalíticas”. Uma
nova luz para o pensar infantil.).
Tentei, com essas
páginas iniciais, desfazer a impressão que eu poderia estar passando, de que
considero a criatividade apanágio do borderline light. Não penso assim. O
neurótico é também criativo. E é criativo não só no sentido do desdobramento e
desenvolvimento de uma intuição já consensualmente acatada; ele, apesar da
violência da repressão, consegue com esforço e persistência, alcançar estados
de não integração, de descontração, de soltura, de desorganização organizada,
que permitem ao inconsciente gotejar preciosas intuições. Desfeitos os recalques, ainda que provisória
e pontualmente, o neurótico estará apto a receber uma visita pessoal das musas
inspiradoras. Estas recompensam seu esforço abrindo-lhe o mundo do sonho, da
poesia, da desordem, da intuição, do insight ---- saltando do paradigma
cientificista para o holístico, e, em seguida aprendendo a trabalhar com ambos
no modo paradoxal. Aqui vale colocar uma outra historinha para ilustrar minha
fala. Trata-se de um sonho relatado por Kekulé que precedeu sua descoberta da
estrutura cíclica do benzeno. Ei-lo: “Eu estava sentado
à mesa a escrever o meu compêndio, mas o
trabalho não rendia; os meus pensamentos estavam noutro sítio. Virei a cadeira
para a lareira e comecei a dormitar. Outra vez começaram os átomos às
cambalhotas em frente de meus olhos. Desta vez os grupos mais pequenos mantinham-se
modestamente à distância. A minha visão mental, aguçada por repetidas visões
desta espécie, podia distinguir agora estruturas maiores com variadas
conformações; longas filas, por vezes alinhadas e muito juntas; todas
torcendo-se e voltando-se em movimentos serpenteantes. Mas olha! O que é
aquilo? Uma das serpentes tinha filado [abocanhado] a própria cauda e a forma
que fazia rodopiava trocistamente diante dos meus olhos. Como se se tivesse
produzido um relâmpago acordei;...passei o resto da noite a verificar as
consequências da hipótese. Aprendamos a sonhar, senhores, pois então talvez nos
apercebamos da verdade...mas também vamos ter cuidado para não publicar nossos
sonhos até que tenham sido examinados pela mente desperta”. Esta
citação faz parte de um discurso proferido em 11 de março de 1890, em Berlim,
em
comemoração à descoberta da estrutura fechada do benzeno, por ocasião dos 25
anos da publicação de um primeiro artigo do discursante sobre a estrutura
química do benzeno.
Vamos agora ver o que
Freud nos diz dos dois modos de vivenciar os acontecimentos: “Em anos posteriores neguei a mim
mesmo o enorme prazer da leitura das obras de Nietzsche, com o propósito
deliberado de não prejudicar, com qualquer espécie de ideias antecipatórias, a
elaboração das impressões recebidas na psicanálise. Tive, portanto de me
preparar --- e com satisfação --- para renunciar a qualquer pretensão de
prioridade nos muitos casos em que a investigação psicanalítica laboriosa pode
apenas confirmar as verdades que o filósofo reconheceu por intuição.”
(V.14, p.25/26). Lendo cuidadosamente esta citação, veremos que Freud fala de
duas espécies de criatividade: uma criatividade que vem de uma investigação
lenta, laboriosa, trabalhosa e outra que se apresenta como imediata,
instantânea. Um bom exemplo destas duas formas de criatividade nós o
encontramos nas primeiras páginas do “Mal-estar na civilização”(vol.21 pg.82).
Freud recebe uma carta na qual Romain Rolland afirma existir em si mesmo “confirmado por muitos outros e que
pode imaginar atuante em milhões de seres humanos”
um sentimento que chamou de oceânico, ‘uma sensação de eternidade, um sentimento de algo ilimitado,
sem fronteiras --- oceânico por assim dizer’(21,81). Freud
comenta: “Não consigo
descobrir em mim esse sentimento oceânico. Não é fácil elaborar sentimentos
passando-os pelo pente-fino da ciência” (v.21, p.82). E mais
adiante: “a ideia de os
homens receberem uma indicação de sua vinculação com um mundo que os cerca por
meio de um sentimento imediato que, desde o início é dirigido para este fim,
soa de modo tão estranho e se ajusta tão mal ao contexto de nossa psicologia
que se torna justificável a tentativa de encontrar uma explicação
psicanalítica, ou seja, genética, para esse sentimento”.
Parte então em busca de uma validação científica na forma de uma ‘elucidação
psicanalítica genética’. Essa elucidação tem como pedra fundamental a concepção
de um ego “autônomo e
unitário, distintamente demarcado de tudo o mais”(21,83). Aqui
temos um Freud que 1- não tem a intuição de ‘sentimento oceânico’, e 2- que
nestas circunstâncias parece não aceitar a intuição como componente do método
psicanalítico de conhecimento. Apesar de conscientemente não aceitar a intuição
como parte do método psicanalítico, a pedra inicial de seu raciocínio --- o ego
--- é um dado intuitivo. Citando: “Normalmente, não há nada de que
possamos estar mais certos do que o sentimento do nosso eu, do nosso próprio
ego(p.83)”.
Ele parte desse fundamento/intuição para a tão desejada confirmação científica
da importância da noção de sentimento oceânico de seu amigo Romain Rolland.
Para não me alongar demasiadamente não discriminarei os passos dados por Freud.
Apenas os nomearei: ego e id não têm uma delimitação nítida(p.83); a fronteira
entre ego e objeto ameaça desaparecer no auge da paixão; as patologias das
relações ego-objeto; uma reflexão sobre o psiquismo inicial do bebê (Citando:
“Uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como
fonte de sensações que fluem sobre ela”(p.84).) Freud dá mais alguns passos e
finalmente tem uma frase conclusiva: “...originalmente o ego inclui tudo; posteriormente separa de
si mesmo um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego não passa,
portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo
--- na verdade, totalmente abrangente ---, que corresponde a um vínculo mais
íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas em cuja
vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor grau,
ele existiria nelas ao lado do sentimento de ego mais estrito de mais
nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu.
Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de
ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo --- as mesmas ideias com que
meu amigo elucidou o sentimento ‘oceânico’ ”(p.86).
Ufa! Que enorme volta
Freud teve de fazer para validar a intuição do amigo dentro do paradigma
moderno cientificista. Mas ele teve de partir de uma intuição para conseguir
legitimar ‘cientificamente’ a noção de ‘sentimento oceânico’. Por que ele
aceitaria a intuição ego e não a intuição ‘sentimento oceânico’? Não acho que
seja simplesmente pelo fato de Freud ter uma percepção da primeira e não da
segunda. Trata-se mais da questão do paradigma no qual as pessoas se movem.
Quando Freud diz que “Normalmente, não há nada de que possamos estar mais
certos do que o sentimento do nosso eu, do nosso próprio ego(p.83)”, está
implicitamente admitindo um conhecimento direto, uma intuição de eu. Infiro que
é pelo fato dessa intuição se coadunar com o paradigma moderno --- no qual
viveu mergulhado a maior parte de sua vida ---- que Freud, de alguma maneira a
percebe. Já o sentimento oceânico pertence a outro paradigma, o paradigma
holístico. Os padrões de relacionamento com a cultura e com as pessoas dependem
dos paradigmas em que se vive. O ser humano deles depende para se movimentar no
social, pois é dentro destes parâmetros que ele se move e através deles que
enxerga. Freud, no “Mal-estar da civilização” encontra-se no paradigma
cientificista. Ou, mais abrangentemente, podemos dizer que está no paradigma da
modernidade. A prioritária, imediata e fácil intuição que Freud tem em relação
ao ‘sentimento de eu’ está consoante ao paradigma da modernidade. [Pertencem a este mesmo paradigma
o ‘self made man’ e a ‘mente isolada’ de Stolorow].1 Já a intuição ‘sentimento oceânico’ está
fora de seu alcance por pertencer ao paradigma holístico. Ele validou o
‘oceânico’ do amigo percorrendo caminhos que, partindo da separação eu – outro,
chega através de um científico raciocínio genealógico psicanalítico à íntima
união de ambos. Sua convicção da existência de um sentimento oceânico não vem
de uma desacreditada intuição, mas de uma legitimadora ilação científica.
Embora ele também use de intuições para construir sua argumentação parece não
se dar conta disso nesse trabalho. Em outros trabalhos Freud dirá que a
elaboração intelectual, possibilitando a superação das resistências, permitirá
o insight, o espocar súbito de uma intuição. É assim que entendo a sua frase:
“... não há supressão da repressão até que a ideia consciente, após as
resistências terem sido vencidas, entre em ligação com o traço de lembrança
inconsciente. Só quando este último se torna consciente é que se alcança o
êxito.” (Freud, v.14 – p.202).
Aqui termino a releitura seletiva do “Mal-Estar”. Em outros
escritos, Freud mais claramente admite e valoriza a participação da psicanálise
em um universo não verbal, universo esse cuja existência ele já postula no
“Projeto”. Essa participação aparece, por exemplo, na sua convicção da
existência de uma comunicação de
inconsciente para inconsciente, afirmação esta que pode ser encontrada no v.12,
p.154 e 402, e no v.14, p.222. Na citação que se segue vemos um Freud
acreditando existirem dois tipos de conhecimento e criatividade. Essa citação
foi retirada de uma carta de 14 de maio de 1922 dirigida a Arthur Schnitzler:
“Assim, ficou-me a impressão de que o sr. sabe por intuição ---- realmente, a
partir de uma fina auto-observação --- tudo que tenho descoberto em outras
pessoas por meio de laborioso trabalho”.
Freud está, pois, talvez sem se dar conta, lançando sementes
para o desenvolvimento do paradigma holístico, e assim contribuindo para o
recuo do paradigma cientificista.
Carlos Plastino garimpou uma preciosidade: um extraordinário
cientista expondo seu modo de criar. Esse cientista é nada mais nada menos que
o formidável pensador Albert Einstein, violinista nas horas vagas, criador da
Teoria da Relatividade Restrita e da Relatividade Geral, teorias que deram um
nó nas melhores cabeças pensantes de sua época. É no artigo “Criatividade em
Winnicott” que Plastino coloca esse depoimento de Einstein: “...as palavras e a
linguagem, na sua expressão oral ou escrita, não parecem desempenhar papel
algum no mecanismo de meu pensamento. As entidades psíquicas que servem como
elementos de pensamento são certos signos e imagens, mais ou menos claros, que
se podem reproduzir e combinar ‘voluntariamente’...Tomado do ponto de vista
psicológico, esse jogo combinatório é a característica principal do pensamento
produtivo, antes que se estabeleça um vinculo qualquer com uma construção
lógica em palavras ou outros símbolos comunicáveis aos demais. Os elementos
mencionados precedentemente são, no meu caso, de tipo visual e, em algumas
pessoas, são musculares. Apenas numa segunda etapa as palavras ou outros signos
convencionais devem ser desenterrados, quando o jogo de associações tem se
estabelecido suficientemente e se pode reproduzir à vontade” (Laborde Nottale, 1992) Então: não foi
pensando com palavras e símbolos já existentes que Einstein produziu/encontrou
as teorias da relatividade. De meu ponto de vista ele evitou pensar no modo
egóico e superegóico (processo secundário), criando condições para o pensamento
transcorrer em processo primário (função secundária). Em seu artigo Plastino
comenta: “Repare-se
que Einstein apresenta claramente os dois processos psíquicos --- primário e
secundário --- considerando ambos como processos de pensamento, porém
atribuindo ao processo primário o que denomina de ‘pensamento produtivo’, cerne
da criatividade intelectual.”
Para Bergson existem dois modos de conhecimento (e portanto de
criatividade). Citando: “...os filósofos concordam apesar de suas divergências
aparentes, em distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer uma
coisa. A primeira implica que rodeemos a coisa; a segunda que entremos nela. A
primeira depende do ponto de vista em que nos colocamos e dos símbolos pelos
quais nos exprimimos. A segunda não se prende a nenhum ponto de vista e não se
apoia em nenhum símbolo.” (Os Pensadores – “Introdução à metafísica”, p.19)”.
Tal como Plastino posso pensar que ao não se apoiar em nenhum símbolo Einstein
funciona em processo primário, começando pela função primária(de descarrego) e
logo passando para a função secundária do processo primário (comunicação e
evitação de desprazer). Teoricamente, esta passagem teria de ser instantânea,
pois se o organismo não evitar as situações destrutivas nem se beneficiar das situações alegres e
amorosas, estará em risco de desaparecimento. O Q (quantidade, energia,
fluxo’’) logo aprenderá a evitar as vias que conduzem à destruição e a procurar
as que provocam prazer e alegria. Estamos aqui na função secundária do processo
primário. Mas isso não é o suficiente pois o ego com seu consistente conjunto
de neurônios possui um enorme poder de atração aliciando para si as Quantidades,
tentando obrigar a todos neurônios, todas as quantidades (Qs.) a rezar pela
cartilha do núcleo egóico, fazendo-os funcionar em processo secundário. Não é
difícil dar um passo adiante e dizer que um ego e superego fortes,
hipercatexizados, dificultam o exercício da criatividade. Será preciso que os
investimentos escapem da atração exercida pelo ego/superego para exercer a
criatividade. E esta é função do borderline pois no funcionamento
normoneurótico todos os investimentos tendem a ser atraídos pelo ego/superego.
A neurose, Freud já o disse, é fruto da repressão externa e do
consequente recalque (repressão interna). No século 19, a sociedade funcionava
em um modo patriarcal: a mãe era a senhora do lar, a que cuidava da casa e dos
filhos, enquanto o pai se ausentava da residência por um certo período de tempo
para trabalhar. A educação era concebida, primordialmente, como tarefa da mãe
sendo o pai uma espécie de apêndice educativo. A mãe era a pessoa presente, com
quem a criança trocava afetos e comportamentos. O pai era uma pessoa distante,
reservada, poderosa, respeitada, temida e até certo ponto, desconhecida. Ao
chegar ao lar, o pai recebia um relatório da esposa e distribuía castigos,
ralhações, elogios e recompensas segundo as observações, sugestões e
cumplicidades da mãe. A prescrição social não incluía a compreensão das
dificuldades e sofrimentos das crianças, e os filhos eram violentamente
castigados, física e psicologicamente. Esse comportamento dos pais propiciava a
formação de um superego cruel, exigente, que tirava a espontaneidade, impedia a
criatividade, obrigando a criança a se conformar às regras e exigências
domésticas e sociais, sob pena de castigos reais e de terríveis punições
fantasmagóricas de seus personagens: fantasmas, monstros colossais, odiosos,
cruéis, impiedosos.
Pode parecer, mas não estou tentando invocar o complexo de Édipo
e a castração freudiana. Minha orientação é outra. Crianças que tiveram pais
dentro dos padrões do paradigma moderno, que sofreram traumas malignos provocados
pelos pais, internalizam o aspecto torturador e traumatizante da dupla
genitora, fantasiando monstrengos, monstros e espaços aterrorizantes,
obstaculizadores da autoafirmação e da criatividade. Esta dinâmica não tem a ver com a sexualidade
que pode estar presente ou não, em grau maior ou menor, com mais ou menos
influência na sintomatologia. Acho que, metaforicamente, cabe o termo
castração, mas tenho receio de usá-lo, temeroso de que se faça uma confusão
entre traumatização edípica sexualizada com traumatização por quaisquer outras
circunstâncias que é como uso a palavra. O ser humano assim ‘‘panificado’
(pânico e pane), para não ser assolado pelo medo e pela culpa torna-se incapaz
de abrir suas valências identificatórias ao mundo, condenando-se a uma triste
vida, pobre e imitativa (ver o livro ‘Borderline: uma outra normalidade) .
O recém-nascido tem o máximo de suas valências identificatórias
abertas absorvendo como se esponja fosse, tudo que atinge seus sentidos. Chamo
a isso de porosidade se estou no campo da dependência absoluta e de
identificação dual-porosa se no campo da dependência relativa. A relação de
porosidade permite que o bebê encontre na mãe o que, potencialmente, já se
encontra nele, bebê: fusão, simbiose, empatia, mutualidade, porosidade, etc. No
paradigma moderno, repressivo, vitoriano, o pai entrará em contato mais ativo
com o pequerrucho aproximadamente entre seus 3 e 5 anos de idade; neste
paradigma moderno o pai, até então uma figura semiausente, torna-se responsável
pela socialização da criança, devendo nela incutir a mentalidade, os processos,
costumes, regras e leis já existentes. Em face das transgressões o pai agirá
autoritariamente, exigindo uma mudança de comportamento do filho. Se essa
autoridade não for aceita o pai deverá usar métodos mais severos e que se
tornarão cada vez mais violentos se o filho continuar a desautorizar o comando
do pai. Temos aí uma ação metaforicamente castradora.
Vou fazer um longo parêntesis visando ampliar e distinguir os
vários significados de vocábulos como castração, limite, amor, o que nos
permitirá visualizar melhor os obstáculos que se colocam à criatividade
winnicottiana.
Toda criança necessita de limites. Estes podem estar sob o signo
da violência ou sob o signo do amor. No paradigma repressivo a criança é
forçada a fazer o que detesta, sem que haja uma explicação, uma preparação, a
criação de uma atmosfera, uma escolha. Usando uma alegoria: a criança ao querer
realizar o seu potencial verdadeiro self encontrará um muro maciço de aço protegido
por protuberâncias pontiagudas (superego feroz) que o traumatizará se ele o
enfrentar, saindo desta luta ou machucado, ou traumatizado, amedrontado,
raivoso, reprimido, inibido, acovardado, recalcado. A função deste muro
(superego) é produzir um trauma maligno para assim impedir, em definitivo
qualquer movimento verdadeiro de renovação. Não ceder nada e não ceder nunca
são os lemas dos adultos capturados pela ideologia social. Esta conduta
repressiva, malignamente traumatizante, rege um modo neurótico de vida. No paradigma humanista/ecológico a criança
será criada com amor, compreensão, empatia. O limite será dado não por uma
muralha de aço, mas por uma cortina macia que oferecerá resistência sim, mas
não só não o machucará além do necessário (trauma benigno) como também
permitirá avanços no desconhecido, no não convencional, no que há de novo no
meio e até atrás dos panos de uma cortina que depois de mexida se recomporá sem
nunca voltar exatamente à forma anterior. Nesta ambiência, o mundo experienciado
através do sentimento oceânico será uma complexidade da qual fará parte a
singularidade da criança, singularidade esta mantida pela preservação da
porosidade, da intuição, das identificações cruzadas, da mutualidade, etc.
Chamei ao portador dessa complexidade de borderline brando (light).
Aqui termina o parêntesis e eu volto a falar do pai autoritário
e, portanto da repressão traumática maligna. Citando Freud:
“A parte
essencial desse curso de acontecimentos [Freud neste trecho está se referindo
aos acontecimentos malignos] repete-se no desenvolvimento abreviado do
indivíduo humano. Também aqui é a autoridade dos pais da criança ----
essencialmente, a de seu pai autocrático, a ameaçá-la com seu poder de punir
---- que lhe exige uma renúncia ao
instinto e que por ela decide o que lhe deve ser concedido e proibido. Mais
tarde, quando a Sociedade e o superego assumiram o lugar dos pais, o que na
criança era chamado de bem-comportado’ ou ‘travesso’, é descrito como ‘bom’ e
‘mau’, ou ‘virtuoso’ e vicioso’. Mas ainda é sempre a mesma coisa --- renuncia
instintual sob a pressão da autoridade que substitui e prolonga o pai”
(“Moisés e o Monoteísmo”, v.23 p.142).
Temos, portanto uma função superegóica com o seu aspecto traumaticamente
maligno, que se mantém permanentemente forte “quase sem mudança” (Freud).
Acho que finalmente
posso falar dos indícios do surgimento de uma nova subjetividade, à qual
denominei de Transicional. É uma subjetividade
pertencente a um paradigma em formação ----------- Paradigma Humanista/Amoroso/Ecológico
(ver em meu livro ‘O Homem Transicional).
O Homem Transicional,
em minha concepção é uma convergência do modo neurótico e do modo borderline de
ser/viver. No modo neurótico prevalece a repressão; a criatividade é lenta,
organizada e trabalhosa e possui o bônus de uma dinâmica psicológica
sustentadora e o ônus do empobrecimento da personalidade. Já no borderline
brando, ‘normal’ o bônus é uma vida rica, leve e criativa e o ônus é o perigo
da dispersão, da inadequação social, da fragmentação, de cair no abismo para
sempre. O Homem Transicional incorporaria os ônus e bônus de ambos.
Creio que quanto ao
neurótico já tivemos material suficiente para apreender sua evolução em direção
ao Homem Transicional. Mas sinto falta de elaborar um pouco mais o caminho
tomado pelo borderline brando nessa mesma direção.
Quando se diz que o
borderline sofre de insuficiência de identificações a lente utilizada é a da
patologia. Visto de outra perspectiva dir-se-á que o borderline, não sofrendo
dos impedimentos ferozes de um superego implacável, está com suas valências
identificatórias insaturadas, sendo capaz de, através da empatia e
identificação, acompanhar o movimento de sua alma, das almas alheias e da
cultura. Em havendo uma excessiva precariedade de vivências fusionais sólidas
com o devir da mãe, a criança estará a mercê de
sua identificação com o pai. Se essa também falhar teremos um borderline
desmembrado, perdido, transtornado, desorientado. Se a precariedade não for
excessiva teremos um borderline prejudicado na sua potência e na sua capacidade
de fruição. Este quadro tem mudado devido a um intenso espalhamento dos modos
femininos de estar no mundo incluindo-se aí uma modificação na ação superegóica
dos cuidadores. A configuração neurótica dominada pela repressão/recalque
insensível e violento e a configuração borderline, dominada por excessiva
permissividade, dicotomia (ou dualidade), onipotência, compartimentação,
porosidade, externalidade, estariam convivendo e se atenuando dando lugar a uma
outra configuração que batizei (com o beneplácito involuntário de Winnicott),
de Homem Transicional. Nesta configuração o espaço até então obstruído pela
repressão maligna fica vago e passa a ser ocupado pela repressão benigna, pela
porosidade seletiva, pela onipotência mitigada, pela compartimentação adequada,
pela permissividade sensível e sensata, pelo esgotamento conduzido das emoções.
Esta nova configuração se deve a um menor domínio patriarcal e a uma maior
difusão do modo feminino de estar no mundo. Nessa configuração não haveria nem
a dominância do sólido nem a do líquido; teríamos idealmente uma ondulação
oceânica, obtendo-se uma solidez líquida suficiente para as variantes entre
sustentação e aventuras do Ser. O H@mem criado por pais gradientemente
sensíveis e gradientemente amorosos, estaria menos sujeit@ à repressão e à
dispersão malignas, com mais chances para exercer uma equilibração
mentepsicosomática e, portanto, com maior liberdade para a fruição e para a
criatividade.
Catalogando: menos repressão
em geral, evitação da repressão maligna, valorização e aceitação da onipotência
mitigada, mais sensibilidade e sensitividade, mais relações porosas, liberdade
para usar os diversos recursos possíveis na luta pela equilibração
psicomentesomática. Tudo isto participaria do paradigma amoroso/ecológico.
Tendo percorrido com
este texto um caminho que ainda está sendo andarilhado por borderlines, neuróticos
e h@mens transicionais, não seria melhor atualizar o título desta conferência
para “O Homem Criativo: subjetividades em transformação”?
Nahman Armony