Olá pretinho da favela
Do alto de minha janela
Em panorâmica tela
Te vejo retangulado
Retocado, pasteurizado
Pretinho multicolorido
Pretinho já muito vivido.
Te vejo subindo o morro
Pés descalços, ar de liberdade,
Árvores, nuvens, disponibilidade
Te vejo levando a lata
Pesada de água e miséria
Sonhando um sonho feérico.
Tu invejas os doutores
Que do alto de sua pompa
Olham de cima o seu céu.
Tu imaginas os bacanos
Comendo o seu pão-caviar
Envoltos em ouro e seda
Tomando banhos de espuma
Morando fantásticas mansões
Meu pretinho querido,
Com os meus olhos compridos
Sem nenhuma doutorância
Te alcanço no alto do morro
E caminho contigo
Em terras de sonho
Em terras de amor
Além das convenções
Além das distorções
Só nós dois a brincar
Nessa triste nuvem fantasia.
Nahman Armony
DISPONIBILIDADE PARA A IDENTIFICAÇÃO COMO EXPRESSÃO INTEGRADORA DE INTERPRETAÇÃO E ATO
Artigo
publicado na revista “Tempo Psicanalítico”, n.26, março de 1992
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem a intenção de
produzir uma abertura para uma visão holística da psicanálise, reunindo
interpretação, motricidade, pensamento, corporalidade, palavra, ação, emoção,
afeto, razão, em um único bloco dinâmico. O acesso para tal integração passa
por uma nova atitude a ser adotada pelo analista diante de seu analisando: a
"disponibilidade para a identificação". A amálgama dinâmica
conseguida por esta via, evidente no trabalho com crianças, se oculta na
situação terapêutica com adultos. A colocação, lado a lado de situações
analíticas infantis e adultas permite apurar nossa percepção para sutis
acontecimentos psico-corporais que, escandalosamente evidentes na psicanálise
infantil, apresentam-se disfarçados no tratamento de adultos.
No
decurso de uma psicoterapia infantil em que normalmente a interpretação e a
atividade estão integradas no brincar, me vi algumas vezes confrontada com a
pergunta: "Digo ou faço?". Com uma interpretação prematura corria o
risco de perder uma compreensão mais profunda da comunicação da criança. Por
outro lado, uma ação me era pedida, ação que me colocaria, a mim e a meu pequeno
paciente, numa situação cujo significado ainda não estava bastante claro para mim.
Ao escolher a segunda alternativa, o fazer não só se revelava portador de um sentido,
mas me levava a um plano vivencial que me interpelava como pessoa e era terapêutico
em si mesmo. O dizer que emergia
então,
não se limitava a uma intenção de clareza comunicada ao paciente, mas era
vivido com a concretude e a atualidade de uma emoção compartilhada. É esta
integração entre a interpretação e o ato, assim como a profunda comunicação que
o paciente estabeleceu comigo que procurarei mostrar através dos relatos de
sessões que se seguem.
Pedro
tem 6 anos e sua terapia dura há um ano e meio. Muito trabalho já foi feito com
respeito ao luto pelo pai que perdeu antes dos três anos, e à elaboração das
fantasias relacionadas ao seio e ao interior da barriga da mãe vivida como uma prisão
sufocante. É preciso acrescentar que Pedro tem asma desde um mês de idade, é uma
criança retraída e é descrito pelos que o cercam como "desligado" e
"muito passivo" diante da agressão. Ao longo da terapia há vários
momentos de regressão ligados à amamentação e ao nascimento. Duas semanas antes
da sessão morre o bisavô com quem convivia.
Estamos
sentados no chão e Pedro distribui as peças de um jogo de dominó: uma para mim,
outra para você...Retoma então a brincadeira da sessão anterior e joga as peças
espalhando-as pela sala toda. "Vamos nadar no mar, vamos procurar o
tesouro". Deitados no chão, nos arrastamos à procura das peças durante
algum tempo e sentamos para examinar os "tesouros" encontrados. Nesse
momento, Pedro se coloca muito perto de mim e me pede para juntar os pés em
torno dele de tal forma que ele se encontra num espaço fechado e delimitado por
meu corpo. Atendo seu pedido e digo: "É, Pedro, você está dentro".
Seu rosto se ilumina. -"Vamos brincar que você está grávida?"
-"De quem?" -"De mim, ali" apontando para o divã no qual se
deita de costas com as pernas encolhidas. Debruço-me e envolvo seu corpo com o
meu como se fosse uma concha, tomando o cuidado de não tocar nele, de forma que
ele tenha liberdade de movimentos. Estabelece-se então um contato muito intenso
de olhar, olhar em que ao mesmo tempo me sinto mergulhando e que me invade com
muita força. Ao contato de olhar segue o contato de rosto e Pedro encosta sua
bochecha na minha; percorre então meu rosto com o nariz como se, depois de
tê-lo "aprendido" através do olhar ele o fizesse agora com a
respiração. Depois é minha vez de "sentir" o rosto dele que ele encosta-se
ao meu nariz e movimenta para me fazer percorrer o mesmo trajeto. Ao mesmo
tempo, o contato corporal se estreita e há uma espécie de ressonância: sinto
suas modulações tônicas como se suas tensões se prolongassem no meu corpo.
Desse acordo tônico nasce uma sensação de bem-estar muito prazerosa de perda
dos limites corporais; uma percepção difusa de não-separação: estamos nós dois,
só respirando, o mesmo ar, no mesmo ritmo. Pedro busca mais um contato: o de boca,
e este é recusado. Digo: "a boca não pode, Pedro". Aparentemente,
esta recusa não tem repercussão no momento e a vivência de fusão continua.
Entremeando
esse diálogo corporal, surgem as palavras de Pedro:
- Meu avô
foi para o céu!
e as
minhas:
- Sim, teu
avô morreu, você ficou muito assustado e aí dá vontade de ser nenenzinho outra
vez, bem protegido dentro da barriga da mamãe.
- É...mas
Deus não deixa!
E num
outro momento pergunta: Você tem um filho? como é o nome dele? onde você mora?
Ele
"nasce" escorregando de cabeça para baixo e se amparando nas mãos. Dirige-se
então para a mesa, pega papel e pilots e vai começar a desenhar quando muda de
idéia e diz, apontando para o divã: "É ali".
Sento
a seu lado no divã e, para grande surpresa minha, Pedro, pela primeira vez,
consegue desenhar uma figura humana. Há só um detalhe que falta: a boca. Me
limito a dizer "Faltou a boca, não é Pedro?"; ao que ele responde
completando
o desenho.
João, 5 anos, é um menino fóbico e tem problema de
fala. Está em terapia há um ano. No jogo, sempre compete comigo numa luta em
que parece que sua própria vida está em jogo. Ou então, quando sozinho,
estabelece metas e obstáculos a serem ultrapassados. Apesar de muito ágil, cai
muito, e quando se machuca, nega a dor. Há um sonho de repetição: ele cai pela
janela, no vazio. Depois de uma partida de futebol que eu ganho, João me propõe
uma nova brincadeira: nas olimpíadas de Sílvio Santos, a porta da esperança.
Ele está do lado oposto da sala e há entre nós uma série de obstáculos que ele
deve pular: um baú, almofadas, bambolês, etc. Eu devo me colocar como última
barreira, ajoelhada, de braços abertos, e não posso deixá-lo passar. Atrás de
mim está a janela. João atravessa a sala correndo na minha direção. Sob o
impacto, caio sentada e o agarro envolvendo-o com meus braços. Segue-se então
uma intensa luta em que acaba por me derrubar no chão. Nunca imaginei que um
menino desta idade tivesse tanta força. É para mim agora que se trata de uma questão
de vida ou morte: não posso deixá-lo passar de jeito nenhum. Finalmente consigo
contê-lo e termino a luta em pé com João nos braços. Por um breve momento ele
relaxa e sorri; nossos olhares se encontram. Começo a embalá-lo mas alguns instantes
depois ele corre para o chão. Sento para recuperar o fôlego quando João sobe
nas minhas costas, se equilibra e lança um grito de triunfo: "Sou o
Palhaço! Viva o Palhaço!" ao que eu respondo "Você é João!
João!". Ele desce então e se dirige à janela e me chama para olhar a rua.
Sento no chão e novamente João sobe, desta vez nos meus ombros, e comenta o que
vê na rua. De repente, como quem descobre e se diverte com uma idéia nova, ele
diz "As pessoas lá fora vão pensar que tem dois chão aqui" - ao que
respondo: "É João, parece que agora eu estou sendo o teu chão".
Na prática psicanalítica com crianças o movimento é
explícito e evidente. O mesmo não ocorre com adultos; sua movimentação se
expressa bem menos no amplo uso da musculatura esquelética e bem mais em
gestos, expressões, atitudes, papéis desempenhados\vivenciados, afetos,
emoções. É destes movimentos mais sutis, destas moções que falarei a seguir.
Com este propósito vamos discernir aquele afeto que,
inibido no nascedouro, mal aparece, funcionando apenas como sinal, de um outro
ao qual se permite que ganhe força, volume, individualidade, desabrochando em
sentimentos e emoções, adquirindo vida e presença ao se manifestar em
expressões e movimentos. O afeto, para uma psicanálise ainda vigente, é apenas
um instrumento de sinalização para um pensamento representacional, devendo
manter-se em um nível mínimo para não perturbar os processos elaborativos do
pensamento; ou então uma ante-câmara inevitável, intrusa e indesejada de um
salão iluminado e iluminista onde luzes brancas afastam os fantasmas do
inconsciente permitindo uma visão mais clara da realidade.
Já o
afeto que se intensifica e desdobra florescendo em suas variegadas cores, em
seu jogo de luzes e sombras, pertence à linhagem catártica da história da
psicanálise. Aqui, o afeto amalgamado à palavra viva é parte de uma vivência
globalizadora onde palavra, ato, emoção, pensamento, afeto, sentimento, e
mesmo, interpretação, não se separam. Este conjunto em seu movimento de
conquista/reativação de novos/antigos espaços, produz um efeito de
transformação, um efeito terapêutico.
Júlio é um rapaz alto, forte, bem apessoado, com
problemas na área da sexualidade. Habitou o quarto dos pais durante longo
período de sua infância, digamos, dos dois aos nove anos. Seu berço, ou cama,
ficava ao lado do leito conjugal e o nível de seu colchão era o mesmo ou
superava em altura o de seus pais. Fiz várias referências à possibilidade de
Júlio ter assistido às relações sexuais do casal. Ele porém de nada se lembra,
nada sente e nada de novo aparece. A idéia dos pais copulando soa-lhe como uma
história inventada que nada tem a ver consigo embora reconheça intelectualmente
que, sem dúvida, algo ele ouviu, viu ou sentiu em tão longo tempo de
convivência noturna com os pais. Numa certa sessão eu me senti como se fosse o
menino Júlio assistindo à relação sexual dos pais. E apareceu dentro de mim uma
sensação. Não creio que esta sensação tenha surgido ali; acredito mais que ela
foi se formando através de pequenos indícios acumulados no meu inconsciente,
nas trocas entre mim e Júlio. E finalmente quando, adquirindo sentido,os
fragmentos indiciais aglutinaram-se, identifiquei-me com o menino Júlio. E, a partir
daquilo que era uma sensação quase opressiva dentro de mim, - uma opressão que
me empurrava para a catarse- eu lhe disse: "A relação de seus pais pode
ter sido sentida como um grandioso fenômeno da natureza, como uma
pororoca".
Esta
intervenção verbal - que formalmente poderia ser considerada uma interpretação
– estava impregnada de uma poderosa intensidade, mercê de
uma
identificação homóloga surgida na situação analítica. Interpretação e ato tornam-se,
nestas circunstâncias, indistinguíveis.
Desta
intervenção Júlio não pode dizê-la alheia a seus sentimentos. Tocado, impressionado,
mobilizado, Júlio trouxe o assunto na sessão seguinte. E pudemos ver então um
menino diante de uma tremenda, terrível manifestação da natureza. Ele perdido e
fascinado em meio a uma assombrosa tempestade. Ele, hipnotizado, horrorizado,
atraído pela grandiosidade e força do encontro de dois gigantes cósmicos e
apavorado pela atração. Desejo de participar daquele formidável evento e medo
de ser esmagado, perder-se, desaparecer. A relação sexual dos pais ganhou força
e sentido e concomitantemente a imobilidade vivencial em que se encontrava em
relação às suas dificuldades sexuais cessou; a análise agora ganhava um novo impulso.
Não se poderia dizer dos três exemplos relatados que o
paciente estava associando livremente diante de um analista em estado de
atenção flutuante. Mais adequado é denominar a atitude do terapeuta de
"estado de identificação" o que pressupõe uma prévia
"disponibilidade para a identificação". Este modo de estar do analista
diante do paciente abre novos campos de experiência. Não é ocioso relembrar que
o conceito de resistência surgiu quando da passagem da hipnose para o método de
pressão, assim como a substituição deste método pela associação livre permitiu
perceber a complexa estrutura da neurose, com seus inumeráveis deslocamentos e
condensações incluindo-se aí o fenômeno da transferência. A aquisição da noção
de "disponibilidade para a identificação" possibilita o aparecimento
de um novo campo: um campo onde dinamismos intersubjetivos ligando paciente e
terapeuta, se produzem2.
A
dupla atenção flutuante/associação livre tem como pressuposto inicial uma comunicação
entre analista e analisando processando-se em nível de linguagem. Admite-se que
o analista interprete comunicações infra-verbais tais como posturas corporais,
comportamentos, gestos, etc. Mais é mais raro aceitar-se que este tipo de
comunicação
seja de mão dupla, como se um analista não emitisse sinais perceptíveis que
pudessem ser levados em conta na dinâmica da relação. Lembro-me de um paciente
psicótico que, numa sessão em que eu estava preocupada em memorizar os acontecimentos,
me surpreendeu com a pergunta: "Mas por que você deixou o gravador ligado
hoje?". Através da suposta existência de um gravador concreto o paciente
expressou uma percepção real de uma preocupação minha.
Esta área de comunicação averbal à qual a linguagem
pode se sobrepor mas sem nunca esgotá-la se caracteriza por processos
primitivos do pensamento, ou seja, a não distinção entre o símbolo e o
simbolizado entre a realidade interna e a realidade externa. A identidade entre
o símbolo e o simbolizado é para Fenichel característicado pensamento
pré-lógico. "Ao passo que na distorção se evita a idéia de pênis”, disfarçando-a
através da idéia de cobra, no pensamento pré-lógico pênis e cobra são uma e
mesma coisa; isto é, são percebidas por uma concepção comum: o avistar da
cobra
provoca emoções relacionadas com o pênis; e este fato é utilizado mais tarde quando
a idéia consciente de cobra substitui a idéia inconsciente de pênis"3.
Já Winnicott considera que o simbolismo tem um significado variável e confere o
status de símbolo às duas concepções. "Se considerarmos, por exemplo, a
hóstia da Sagrada Comunhão, simbólica do corpo de Cristo, penso que tenho razão
se disser que, para a comunidade católico romana ela é o corpo de Cristo
e, para a comunidade protestante, trata-se de um substituto, de algo
evocativo, não sendo essencialmente, de fato, realmente o próprio corpo. Em
ambos os casos, porém, trata-se de um símbolo"4.
Essa
experiência não se limita ao campo religioso mas faz parte do cotidiano dos telespectadores
que, ao encontrarem atores das novelas, repreendem com indignação as maldades
das personagens ou elogiam suas façanhas com admiração. Podemos dizer que a
pessoa do ator é apagada a favor da personagem assim como o analista, até certo
ponto, é "apagado" na transferência. Em momentos privilegiados, ao se
deixar afetar e moldar pelas necessidades do paciente, o analista desempenha o
papel de objeto transicional e faz parte tanto de seu mundo interno quanto
externo. Paciente e terapeuta sentem-se numa espécie de sonho acordado onde a
"outra cena" é o espaço analítico.
Nas vinhetas infantis vimos como a criança retira o terapeuta
de uma posição neutra e observadora, induzindo-o a preencher uma função, a
desempenhar um papel. É preciso, porém, que não nos enganemos; de nada servirá
para a criança o terapeuta atender ao seu pedido mantendo-se em uma
exterioridade, teatralizando em obediência a um comando. Pedro não precisava
simplesmente de um útero - de um receptáculo neutro - para se abrigar e depois
nascer; ele necessitava de uma barriga vívida que o acolhesse e preenchesse
suas necessidades. Pedro estava em busca de algo só alcançável por um terapeuta
disposto a se identificar com seus sentimentos, fantasias, vivências. O
desempenho de papéis e preenchimento de funções não é apenas uma representação,
algo externo que se cola à personalidade do terapeuta ou um modelo dado pela
criança a ser seguido. Pelo contrário: a criança aponta para uma necessidade
afetivo/vivencial só possível de ser alcançada e acolhida por um terapeuta em
estado de disponibilidade para a identificação. Só assim será possível viver
com o pequeno paciente as fantasias/realidades necessárias ao seu
desenvolvimento. Mme. Sechehaye5 quando aceitou amamentar Renèe
através da maçã não estava distinguindo maçã de seio, símbolo de simbolizado; o
aleitamento não estava sendo "representado" mas sim vivido já que as
emoções e vivências da amamentação tanto da parte da paciente quanto da
terapeuta estavam autenticamente lá. Enquanto a criança e o psicótico facilitam
ao terapeuta o acesso ao pedido implícito devido à concomitância verbal/não-
verbal de suas solicitações, a maioria dos pacientes adultos não verbaliza o
aspecto escondido de seus pedidos. Assim, o que está desvelado no tratamento de
crianças e psicóticos torna-se velado no tratamento dos adultos não-pdicóticos.
Tal qual crianças e psicóticos, pacientes adultos solicitam do terapeuta o desempenho
de papéis. Como porém não é uma solicitação com um aspecto verbal indubitável,
o psicanalista ao se posicionar classicamente - neutralidade, observação, atenção
flutuante, frieza técnica - não a perceberá. Para alcançá-la será preciso que ele
se coloque numa disposição especial: é preciso que esteja disponível a
responder às sutis solicitações do paciente no sentido de exercer uma função
vivendo certo papel. É preciso que ele esteja em "disponibilidade para a
identificação". No caso de Júlio, anteriormente citado, esta
disponibilidade levou a uma identificação homóloga, a uma fusão com o
paciente/menino. A pressão era no sentido de fazer o terapeuta viver/expressar
o que o menino Júlio vivera/vivia como se o terapeuta fosse o próprio Júlio. Na
maior parte das vezes porém, a pressão está direcionada não para uma identificação
homóloga mas para uma identificação complementar. O terapeuta deverá viver um
papel complementar indicado pelo paciente.
Vitório repete sem cessar o seu desespero com os
revezes cotidianos: um pneu que fura, pais que brigam, trânsito entupido, vaga
não conseguida, tudo parece ter um sentido que transcende a cotidianidade. Como
se aqueles acontecimentos fossem um castigo dos deuses. Sendo o terapeuta o
único Deus em presença, este se vê empurrado pelas reiterações, lamúrias,
reivindicações, queixas - um conjunto que exprime um intenso sentimento de estar
sendo injustiçado - para uma posição de Personificação-Má-Onipotente,
responsável por tudo de ruim que lhe acontece. Por trás desta atribuição de
maldade à Mãe-Terapeuta existe um vagido que é um poderoso pedido para o
surgimento da Mãe-Boa-Todapoderosa que o proteja onipotentemente. Um
psicanalista com o seu ego fechado às subliminares pressões do paciente,
permaneceria neutro, usando a sua afetividade como um sinal para interpretar
fantasias; não permitiria que uma alteração de seu ego o fizesse provisoriamente
sentir-se como a própria Mãe-Má (por exemplo, não se daria o consentimento de
sentir uma certa inquietude indicativa de uma fantasia de responsabilidade
pelos infortúnios do "filho querido"6. Manter-se-ia
"duro", inflexível, preservando e freqüentemente refugiando-se em seu
papel de "interpretador" não podendo pois perceber que mesmo
interpretações corretas podem quebrar o desenrolar dos dinamismos, obstando um
desenvolvimento dinâmico da relação. Um paciente não encontrando tranqüilidade
ou consentimento no terapeuta para vivenciá-lo como Mãe-Má faria um corte em
seu processo dinâmico, ou perpetuando ou reprimindo o seu dinamismo; não
haveria uma seqüência fantasmática, um desdobramento do dinamismo. Recorrendo
mais uma vez à vinheta-Vitório: não fosse a liberdade que o campo psicanalítico
- criado pelas linhas de força da relação analista-analisando - lhe forneceu,
Vitório não poderia vir a perceber o seu desejo mais profundo, um desejo que
ultrapassava o seu dinamismo paranóide: a aparição da Mãe-Boa-Onipotente. Este
conjunto de exemplos práticos e considerações teóricas nos levam a concluir que
a disponibilidade para a identificação permite o aparecimento e desdobramento
de dinamismos intersubjetivos: paciente e terapeuta compartilham vivências.
Nestas circunstâncias, palavra, ato, interpretação e pensamento estão de tal
forma ligados, de tal maneira se interpenetram que só por um artifício
analítico podem ser separados. Vive-se uma relação e dela se fala;
intermitentemente esta fala assemelha-se a uma interpretação. Deste ponto de
vista interpretação e ato formam uma unidade indissolúvel. Estamos, pois,
diante de uma psicanálise a ser pensada e exercida também em termos holísticos.
Notas e Referências
bibliográficas
1-
Esta expressão foi usada pela primeira vez por um dos autores (Armony, N.) e encontra-se
no artigo “Dinamismos em Psicanálise” publicado em “Psicanálise: da
interpretação à vivência compartilhada” em 1989.
2-
Encontramos formulações próximas às nossas em Winnicott. Selecionamos dois trechos
de seu artigo La teoría de la relación paterno-filial escrito em 1960,
constante do livro El proceso de maduración en el niño (Editorial Laia,
Barcelona, 1975) ilustrativas deste parentesco. Estas
citações, articuladas, se suplementam: "Lo importante, a mi modo de ver,
es que la madre, por medio de su identificación con la criatura, sabe cómo se
siente ésta y, por tanto, es capaz de darle casi exactamente todo cuanto
necesita en forma de sostenimiento y de provisión de un medio ambiente general.
Sin tal identificación considero que la madre no aportará lo que la criatura necesita
a principio: una adaptación viva a sus necesidades"(pag.61). "Parecidos
cambios de orientación los
experimenta el analista al satisfacer las necesidades de un paciente que, en la
transferencia, está reviviendo estas etapas iniciales. Y el analista, a diferencia
de la madre, tiene que ser consciente de la sensibilidad que se está desarrollando
en su interior en respuesta a la inmadurez y dependencia del paciente. Cabría
pensar que esto es una ampliación de la descripción freudiana según la cual el analista
se halla en un estado voluntario de atención"(pag.60).
3-
Fenichel, citado por Marion Milner no artigo O papel da ilusão na formação simbólica
in Novas tendências na psicanálise, Zahar Editores, Rio de
Janeiro 1969, pag. 119.
4-
Winnicott, D.W. (1971)- O Brincar e a Realidade. Imago Editora, Rio de
Janeiro, 1975.
5-
Sechehaye, M.A. (1947)- La realisation symbolique Hans Huber, Berne,
Editor.
6- O
paciente poderá envidar poderosos esforços para retirar o terapeuta de sua posição
de serenidade envolvendo-o em suas fantasias, mobilizando-o com suas emoções,
manipulando seus pontos vulneráveis até conseguir colocá-lo no papel fantasmático
complementar ou homólogo.
Nahman Armony
e Rejane S. Armony
LETHEA&ALETHEA
VERDADE&MENTIRA
Uma longa tradição dicotômica que teve
seus expoentes em Platão e Descartes nos acostumou a enxergar o mundo através
de extremos. Bom-mau; justo-injusto; saúde-doença, etc. Atualmente estes
extremos têm se suavizado propiciando a percepção de uma zona intermediária, o que
provoca dificuldades éticas. Trataremos aqui da dicotomia verdade-mentira. Começarei
por uma situação simples: vemos seguidamente na vida e na ficção alguém dizendo
para uma pessoa prestes a morrer, ou acometida de um mal incurável a mentira do
“está tudo bem”, “tudo vai dar certo”. Trata-se de uma mentira? Ou é uma
questão de foco? Esta pergunta é pertinente, pois o conhecimento bruto e súbito
da realidade poderá fazer a pessoa sentir-se ainda pior e provocar ainda mais
sofrimento.
Quando o psiquiatra lida com pacientes
psicóticos deverá tomar extremo cuidado em não tocar em assuntos para os quais
exista uma susceptibilidade exagerada levando a reações de ansiedade,
agressividade, pânico, confusão mental, etc. Diante de delírios esquizofrênicos
não se deve contrapô-los à realidade para não despertar reações excessivas. O
psiquiatra ou o analista deve permanecer silencioso o que certamente criará uma
situação ambígua na qual o paciente poderá vir a ter a certeza de que o
interlocutor concorda com ele. Uma ambigüidade cuja função ética é evitar situações
críticas de descontrole.
Todos nós temos zonas de hiper-susceptibilidade.
Num relacionamento de casal se uma dessas áreas é revelada pelas palavras do
companheiro, a isto pode se seguir uma crise de conseqüências funestas, seja no
âmbito pessoal com prejuízos corporais e psíquicos, seja no âmbito do relacionamento
de casal quando a pessoa ofendida em sua auto-estima e ameaçada em seu
equilíbrio psíquico fecha definitivamente a porta da relação. Nestes casos
caberia a omissão, a concordância ambígua e a distorção tranqüilizadora. Por
exemplo: uma pessoa que tenha grande dificuldade com dinheiro e que se a
reconhecesse ficaria psiquicamente desequilibrada por considerar a usura uma
baixaria da pior espécie, não poderia ouvir do companheiro nenhuma alusão a
esta característica; criar-se-ia um mal-entendido, uma idéia deliróide que a
faria reagir com fúria, com depressão, com confusão, com extrema ansiedade. Se rola
aquilo que em vários artigos meus chamei de “paixão visceral”, uma paixão que
não admite outra coisa senão a continuidade da intimidade amorosa, aceitando
então lidar com os aspectos imaturos do amado, aquele assunto (a usura) não
pode ser tocado. Por algum tempo ele deverá ser evitado até que o progresso da
relação permita que ele seja tangenciado e por fim, eventualmente, um dia
possa-se falar abertamente dele. Para conservar a integridade e força da
relação e o relacionamento ele próprio é necessário lançar mão da omissão, da
ambigüidade, da tergiversação. Pode-se dizer que aqui a ética não é a da
verdade, mas da preservação de uma relação amorosa que aceita as partes
imaturas (psicóticas) do outro. É claro que existe a esperança de que a verdade
do amor, gerando um comportamento sensível e adaptado às situações, acabe por
promover um amadurecimento dos aspectos dissociados, possibilitando sua saída
das trevas e tornando viável uma relação mais transparente.
Nahman
Armony
Primeira publicação na revista CARAS.
CREPÚSCULO
Discretamente
Vou-me apagando
Um a um meus personagens me abandonam
E a solidão
Reclama os seus direitos
De nascença.
Nada há a objetar.
É dobrar-me
À lei da vida
Que Talião escreveu
Em letras de fogo
No meu fundo.
Encontrar um cântaro generoso
Sábio
Amoroso
Que desvende meu labirinto
Que alcance meu centro sensível
Que envolva minhas feridas em seu mistério,
É demasiado?
Nahman Armony
Vou-me apagando
Um a um meus personagens me abandonam
E a solidão
Reclama os seus direitos
De nascença.
Nada há a objetar.
É dobrar-me
À lei da vida
Que Talião escreveu
Em letras de fogo
No meu fundo.
Encontrar um cântaro generoso
Sábio
Amoroso
Que desvende meu labirinto
Que alcance meu centro sensível
Que envolva minhas feridas em seu mistério,
É demasiado?
Nahman Armony
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