Percursos da Clínica[1]
Ao lançar um olhar abrangente sobre as
mudanças na prática psicanalítica, tomando como referência as potencialidades
de expansão da teoria e da técnica freudiana já realizadas pelos analistas da
atualidade, e especialmente impregnado pela realidade do Rio de Janeiro e do
Brasil, percebo dois grandes eixos através dos quais a psicanálise se desloca:
um eixo lacaniano e um não-lacaniano. Eu mesmo me surpreendo com esta
formulação, onde um único nome ao ser colocado em destaque dilui as ricas e
complexas contribuições diferenciadas de autores como Winnicott, Sullivan,
Kohut, M.Klein, Searles, Bion, Bleger, Balint, Racker, Green e muitos outros,
das quais a psicanálise já não pode prescindir. Não é, portanto, uma situação
com a qual eu concorde, mas acossado, à minha revelia, por uma realidade
carioca, quiçá brasileira, produtora de mesas de debates compostas por um
expositor de orientação lacaniana e outro (perdoem-me a generalização)
não-lacaniana, acabei aceitando-a. Não
se trata porém de um aceite passivo, já que ela é empobrecedora; na medida de
minhas reduzidas possibilidades tentarei dar o meu mínimo empurrão no
determinismo histórico (se é que a história seja assim tão determinante) e sem
dúvida este trabalho se insere nesta linha. De qualquer forma este episódio
serviu para chamar a minha atenção para um fato muito curioso e que deve ter o
seu significado: a escola lacaniana apresenta características que a colocam em
confronto com as demais escolas. Exercendo, a título de humor, a capacidade de
livre fabulação associativa arruma-se na minha mente uma piada: num balé, o
passo destoante de um filho bailarino faz com que a mãe-coruja se vanglorie ser
dele o único passo certo.
Evidentemente
não ignoro que dificilmente um psicanalista da atualidade deixará de sofrer a
influência direta ou indireta, afirmativa ou negativa do pensamento lacaniano
tão forte é a sua presença política e teórica; porém, excluindo, por medida de
prudência, uma zona sombreada, podemos demarcar, para fins metodológicos, um
espaço sim e outro não lacaniano.
Como
sinalizador mais representativo da diferença entre estes dois campos escolhi os
modos de conhecimento utilizados na sessão analítica que por sua vez geram
formas de relacionamento e intervenção psicanalíticas diversas. Uma corrente
admite a existência e importância no interior da sessão psicanalítica de uma
comunicação de inconsciente a inconsciente, de um conhecimento afetivo, de uma
relação empática, de identificação, de "feeling"; são formas de
conhecimento, comunicação e relação usadas terapeuticamente e teorizadas pelos
autores não-lacanianos. Já a corrente lacaniana descarta senão a possibilidade,
pelo menos a importância deste tipo de conhecimento, afirmando que esta forma
de psicanálise não pertence ao legado de Freud.
Freud
foi um grande pensador e como tal possui uma polivalência criativa indutora de
múltiplas leituras. Sem dúvida nenhuma, nosso mestre comum indicou um caminho
de conhecimento operativo que ultrapassa o simbólico. Enquanto Lacan afirma que
"....não há outras, nem terceira
orelha, nem quarta, para uma transaudição que se quereria direta do
inconsciente pelo inconsciente"("Função de campo da fala e da
linguagem em psicanálise" in Escritos, Ed.Perspectiva, S.Paulo, 1978,
pag.118), Freud nos diz que o psicanalista "....deve
voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do
inconsciente transmissor do paciente". ("Recomendações aos
médicos que exercem a psicanálise", vol.12, pag.154). Uma colocação ainda
mais ousada nós a encontramos formulada alguns anos após: em um de seus artigos
sobre telepatia e psicanálise Freud diz que precisamos estar preparados "....para presumir que o conhecimento
foi transferido dele para a suposta profetiza, por algum método desconhecido
que excluiu os meios de comunicação que nos são familiares, ou seja, teremos de
inferir que existe algo como a transmissão de pensamentos." (vol.18,
pag.225)
A
corrente não-lacaniana tornada solidária por uma posição lacaniana avessa a um
conhecimento afetivo-empático-identificatório, não apresenta uma unidade. É
possível distinguir dentro dela três linhas:
a compreensão empática ou é usada como um instrumento de conhecimento
propiciador de interpretações mais afinadas com o inconsciente do analisando,
ou torna-se um meio facilitador de crescimento, ou é levada até o desempenho
deshierarquizante.. Importar-me-ei menos com as diferenças que com as
semelhanças; de qualquer forma, ora estarei referido solidariamente às três
linhas, ora a uma delas.
O
conjunto da produção psicanalítica forneceu-me bases para a formação de minha
própria teoria; porém, pensar outras teorias a partir da minha própria seria
repeti-la sob vários disfarces. Por isso mesmo socorri-me de disciplinas e autores
extra-analíticos na esperança de que uma multidisciplinaridade venha a permitir
uma discussão mais ampla e produtiva das questões psicanalíticas.
Todos
sabemos que a psicanálise mudou. Entre os vários fatores destas mudanças
encontram-se as transformações da subjetividade humana. O paciente que se
apresenta hoje para tratamento difere daquele dos fins do século 19 meados do
século 20. O olhar do analista também mudou percebendo algo diferente de
estrutura neurótica. Estarei certamente cansando o auditório ao dizer que os
casos descritos naquela época eram de neuroses estruturadas (histérica,
obsessiva, fóbica) enquanto que na atualidade predominam os fronteiriços, as
personalidades narcísicas, o sofrimento existencial, os quadros
poli-sintomáticos. O que estas mudanças têm a ver com a história do homem em
seu sentido mais amplo, incluindo sua cultura e suas instituições? Invocarei
Foucault e Deleuze em suas análises sobre o poder nas sociedades industrial e
pós-industrial articulando-as com as correntes psicanalíticas referidas.
Segundo
Foucault surge no século 19, em substituição ao poder monárquico, o poder
disciplinar produtor do "indivíduo". A figuração arquitetônica deste
poder disciplinar é o panóptico carcerário. Ao se exercer o binômio vigilância-punição
sobre o corpo e o espírito de um ser humano, incitando-o a seguir um modelo,
criam-se os processos de individualização. É neste contexto que surge a
psicanálise que ao desdobrar sua teoria
fala-nos de um superego vigilante e
punitivo, prescritivo e proscritivo, incitando o ego a se estruturar segundo um
ego ideal, e um ideal de ego. A idéia de ego bem estruturado é um prolongamento
do ideal de pessoa bem estruturada pertencente ao imaginário social do século
19 que se estende até meados do século 20. Esperava-se das pessoas uma
integridade, uma continuidade, uma coerência, uma disciplina que as tornassem
absolutamente confiáveis, membros sadios de uma comunidade sadia voltados para
um mesmo objetivo e dirigidos por uma mesma ideologia. A este indivíduo estruturado correspondem as
neuroses estruturadas. O modelo da estruturação dominava o campo social de tal
maneira que tanto o comportamento do paciente quanto o olhar do analista
estavam por ele moldados. Usando a concepção de indivíduo introduzida por
Foucault chamarei ao homem de ego bem estruturado, isto é, àquele que responde
a um modelo social disciplinar veiculado pelo superego, de homem-individual; a
hipérbole deste homem é o neurótico clássico - um paciente que tanto se
apresenta como é apreendido como estruturado.
Havia,
portanto um modelo estruturador a ser seguido, modelo este que em psicanálise
apresenta-se na figura do superego. O superego é fundamentalmente resultado da
identificação do menino com o masculino social (superego do pai), e recalque
do feminino. O poder disciplinar impõe
ao homem uma repressão do feminino, desvalorizando este feminino,
restringindo-o às mulheres e assim
desvalorizando-as também. Tentava-se manter este feminino desvalorizado em um
gueto, isolando-o da cultura masculina; mas a partir deste gueto o feminino
exercia sua pressão.
Embora
a sociedade disciplinar isole o feminino, retirando-o das linhas de força positivadas pelo modelo,
não o descaracteriza, não o nega nem controla. Já a sociedade pós-industrial
permite que o feminino e outras forças marginais saiam de seus guetos, pois
agora conta com um novo e mais sutil instrumento de poder: o controle.
Para
Deleuze estamos vivendo o advento da sociedade de controle. Enquanto a
disciplina opera por vigilância e punição, o controle opera por regramento de
fluxos. O modelo deste novo tipo de poder é a informática e o marketing. O
poder tenta modular os movimentos livres. Os desviantes e marginais até então
habitantes dos bastidores podem agora se manifestar. O modelo da estruturação
diminui de importância no imaginário social - não mais se espera coerência nos
homens e organização nas neuroses. Começa-se a falar de singularidades,
múltiplas tendências que impelem o homem para desencontradas direções; o imaginário
social despe o homem de seu código de honra aceitando uma instabilidade
incompatível com o ideal de personalidade ou caráter bem estruturado;
similarmente, as neuroses já não se apresentam estruturadas; os fóbicos,
histéricos, obsessivos cedem cada vez mais espaço para os borderlines, os
psicossomáticos, para os quadros narcísicos.
As singularidades pré-individuais até então recalcadas e reprimidas,
tornam-se socialmente e pessoalmente visíveis, manifestando-se com maior
liberdade no homem e na sociedade. Diante desta situação o poder busca novos
meios de lidar com o que pode ser denominado de homem singular e grupo
singular, aqueles homens e grupos que não se conformam ao código estabelecido,
criando sua maneira original de viver e de pensar. Uma analogia imperfeita,
porém esclarecedora da sutileza operativa deste poder está nos esportes
modernos; no surf, windsurf, asa delta o desportista aproveita as forças, os
movimentos já existentes, codificando-os e usando-os para seu objetivo. Digo que o exemplo é
imperfeito porque nestes esportes existe uma codificação apenas pragmática dos
fluxos e não uma sobrecodificação aprisionadora, uma espécie de neoburocracia
teórica e institucional que captura e direciona
o pensamento e a experiência livres. Segundo Deleuze não é, porém a
sobrecodificação a forma de controle mais eficaz que a atualidade vem
estabelecendo. Esta se caracteriza mais por aquilo que poderíamos chamar de
"liberdade controlada". Pessoas e grupos são livres, mas o poder os
acompanha pari-passu direcionando seus fluxos no sentido de seu interesse. Um
exemplo extremo seria o dos psicóticos não enclausurados em um hospital
psiquiátrico, mas assistidos por um "acompanhante terapêutico".
O
Édipo freudiano é um testemunho da sociedade disciplinar. O Édipo lacaniano
encontra-se na transição sociedade disciplinar-sociedade de controle. Um
cotejamento de duas citações, uma freudiana e outra lacaniana servirá para nos
esclarecer a respeito. Freud: "A autoridade do pai ou dos pais é
introjetada no ego e aí forma o núcleo do superego que assume a severidade do
pai e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o ego do
retorno da catexia libidinal"("A dissolução do complexo de
Édipo", vol.19, pag.221). A catexia libidinal que liga o filho à mãe está
proibida de retornar, mas permanece viva e atuante nos porões da mente e da
cultura. Podemos fazer um símile com os titãs que enterrados sob as montanhas
as fazem tremer periodicamente, pois sua força não está anulada, não está
controlada - está reprimida, isolada, guetificada. Vejamos agora a colocação de
Lacan: "Todo esto invita a
reconsiderar la función del padre que está en el centro de la cuestión de
Édipo....Distinguiremos tres tiempos. Primer tiempo: la metáfora paterna actúa
en sí por cuanto la primacia del falo es instaurada en el orden de la
cultura....En este primer tiempo el niño trata de identificarse con lo que es
el objecto del deseo de la madre y no solamente de su contacto, de sus
cuidados; pero hay en la madre el deseo de algo más que la satisfacción del
deseo del niño; por detrás de ella se perfilan todo ese orden simbólico, el
falo". (Lacan- Las formaciones del inconsciente. E.Nueva Visión,
Buenos Aires, 1979, pag.86). Enquanto Freud testemunha um patriarcalismo que
abafa e desvaloriza os modos femininos de conhecimento e relação sem porém
estabelecer um controle sobre eles, Lacan coloca-se em outra posição: o objeto
de desejo da mãe não seria o bebê mas a ordem simbólica. Desta maneira os
impulsos e movimentos maternais (cuidar do bebê, colocá-lo ao colo,
amamentá-lo, fundir-se, afastar-se, manifestar amor, raiva, contrariedade,
fastio, aversão, desgosto, responder às suas solicitações, evitar seu
sofrimento) não mais seriam livres, não teriam mais a força impositiva de um
impulso primitivo mas estariam sobrecodificados, capturados, aprisionados,
acompanhados, controlados pelo falo - significante dos significantes - pelo
código simbólico, pelo masculino. Os
titãs podem agora vir à superfície pois sua força está dirigida, canalizada,
controlada pelos deuses: não mais assustam. Os movimentos feminino-maternos
controlados e direcionados pelas linhas do modelo-código masculino não mais
atemorizam. O asadeltista não mais teme o vento, uma força livre que ele
capturou através de uma codificação. A captura da comunicação-relação
feminino-materna pelo código masculino tornar-se-á mais evidente se cotejada
com o pensamento de Winnicott: este autor considera que a relação mãe-bebê será
por algum tempo psicótica, desvinculada dos aspectos propriamente sociais e
culturais; mãe e bebê estarão em uma "folie a deux", num mundo
próprio por eles mesmos criado, protegidos por uma continência realizada por
alguém outro - geralmente o pai ou a família - continência que protege a díada
da interferência do social.
Ao
me referir a Freud e Lacan no parágrafo anterior tive de realizar uma
esquematização, uma simplificação pela base. Freud, aberto ao novo, buscando
corajosamente a verdade do auto-conhecimento, preocupado com as injustiças
sociais assim como Lacan atento às tendências do pensamento francês e
universal, procurando se manter como centro irradiador de cultura
contemporâneo-renovadora, buscam e encontram linhas de fuga para o sistema
masculino fálico-castrado. Freud através do genital tenta ultrapassar a
dicotomia, mas não é aí que ele o consegue pois a fase genital ainda referenda
a supremacia dos modos masculinos de relação, conhecimento e comunicação. Já
vimos, porém que ele consegue abrir brechas no modelo masculino quando fala,
entre outras coisas, de comunicação de inconsciente a inconsciente, deflagrando
um movimento que desemboca em várias noções de linhagem feminina: empatia,
disponibilidade para a identificação, reverie, preocupação materna primária,
espaço transicional, devoção, etc. Lacan também tenta ambiguamente,
ambivalentemente, escapar ao fálico-castrado, cuja outra manifestação é a
dicotomia código-falta(Baudrillard) e acompanhando o espírito da época elocubra
sobre o real, reconsidera o estatuto do Grande Outro tornando-o barrado,
pensa a pulsão de morte, introduz o
objeto "a" causa de desejo. Este objeto "a" nos interessa
particularmente, pois é como o feminino se manifesta na clínica lacaniana; o
analista colocado na posição de objeto causa de desejo remete-nos a um feminino
misterioso, um feminino excitante que nunca se deixa capturar e por isso mesmo
gerador de um movimento incessante na análise; ao mesmo tempo mantém uma
distância, facilitadora de idealizações, o que põe em xeque a concepção teórica
do analista como resto-rebotalho. Não é o mesmo feminino da corrente
não-lacaniana; este outro, suplemento do anterior, é um feminino maternal,
acolhedor, doador, continente, amoroso, capaz de empatizar, de estabelecer
identificações homólogas e complementares, um feminino que se deixa alcançar
realizando fusões e simbioses, vivendo separações e individuações,
experienciando uma variada gama de sentimentos fortes e sutis, que passam pelo
amor, raiva, medo, inveja, ciúme, um
feminino que se une ao paciente possibilitando
crescimento, permitindo experiências básicas não vivenciadas na época
própria, colmatando lacunas, desfazendo excessos.
Maternal
é uma palavra estigmatizada em psicanálise. Lembra "passar a mão na
cabeça", pieguice, sentimentalismo. Podemos pensar que esta fachada é
persistentemente evocada pelos analistas "anti-maternais" pelo temor
ao poder intrusivo e devorador da mãe. Realmente, quem garante que a
mãe-analista usará o seu poder em favor do filho? E, no entanto, se o
analisando não corre este risco, ( e ele o teme devido às suas fantasias
arcaicas) não poderá usufruir dos benefícios de uma relação que poderá chegar
às bases de seu devir-pessoa. Para além da fachada desvalorizativa, maternal
significa o uso dos meios femininos de comunicação, relação e conhecimento - a
empatia, a identificação homóloga e complementar, a simbiose,etc. Pode-se então
ampliar o mundo que nos é apresentado pelos sentidos e pela razão, pela
representação e pela palavra, vivendo intensidades, experimentando uma ampla e
sutil gama de afetos, mergulhando em fantasias ainda não verbalizadas. É o
mundo das singularidades, do aprendizado
das trocas afetivas, do exercício da sensibilidade somato-psíquica e dos afetos
sutis que fazem parte de um pensamento e conhecimento holísticos, é onde se plantam
os alicerces da confiança e segurança básicas, os cimentos da criatividade e
espontaneidade que sempre poderão respirar e palpitar mesmo quando soterradas
por montanhas de regras, leis e teorias. A função materna tem a ver com a
singularidade aqui entendida como princípio de atividade e como possibilidade
de expressão e expansão de forças em devenir.
Este
feminino-maternal permite, no campo psicanalítico a ultrapassagem da dicotomia
sujeito/objeto, observador/observado, pensamento/ação, possibilitando um estado
de comunhão e de integração. Sua função holística faz-nos reconhecer sua
pertenencia ao movimento ecológico que, diante da situação catastrófica dos vários meios-ambientes
(físico, social, mental) busca a superação das dicotomias.
O
progresso da sociedade ocidental está inextricavelmente ligado a um pensamento
que valoriza a compartimentização, a racionalidade desfantasmatizante, as
dicotomias. Durante muitos séculos os benefícios advindos deste pensamento
foram de tal monta que o preço em sofrimento e destruição que a humanidade
pagava parecia valer a pena. Hoje, a ameaça de aniquilamento que pesa sobre o
homem em conseqüência desta mesma visão de mundo propiciadora dos avanços de
nossa sociedade exige uma mudança de mentalidade; a reversão do platonismo, a
superação das dicotomias estão entre as transformações necessárias. A distância
homem-mundo, sujeito-objeto, distância esta que cria um hiato, um vazio, uma
falta entre os dois termos da dicotomia, necessita ser superada e
reposicionada. Este é um trabalho demorado e penoso de subjetivação pois de tal
maneira o pensamento dicotômico-faltoso imperou produtivamente durante séculos
no universo ocidental que terminou por se entranhar no cerne mesmo da idéia de
homem; a dicotomia e a falta passaram a ser vistas como inerentes à própria
condição humana. Só com muita dificuldade damo-nos conta de que
dicotomia-falta, é uma formação
subjetiva datada.
Falta
é uma palavra onipresente na psicanálise de hoje. Tem porém significados
diversos. Para a corrente lacaniana a falta
é parte inerente da constituição do homem seja pelo "assassínio da
coisa" ao advir o símbolo (Escritos, pag.184), seja pela alienação do
sujeito no Outro. Citações: "Assim o
símbolo se manifesta primeiro como assassínio da coisa, e essa morte constitui
no sujeito a eternização do seu desejo".(Escritos, pag. 184). "É preciso supor nele (no homem) uma
certa hiância biológica, aquela que tento definir quando lhes falo do estádio
do espelho. A captação total do desejo, da atenção, já pressupõe a falta. A
falta já está aí quando falo do desejo do sujeito humano no que se refere à sua
imagem, quando falo desta relação imaginária extremamente geral que se denomina
narcisismo."(Seminário 2, pag.402/3). Para Lacan, símbolo, falta e
desejo estão entranhadamente ligados e impelem o homem a produzir sempre e cada
vez mais. As infindas máscaras das identificações imaginárias deverão ser
desveladas até que o analisando defronte-se com a falta e a aceite como parte
inevitável do viver. A falta assim desmascarada deixará de ser tamponada pelo
sintoma, e será o motor de uma produção simbólica.
Para
a corrente não-lacaniana o motor da atividade humana está em um impulso
inerente ao viver e que Winnicott chamou de criatividade potencial,
criatividade primária, verdadeiro self
e Kohut de self nuclear. Segundo
esses autores o impulso para a atividade não depende de um vazio a ser rodeado,
mas de um desdobramento do ser. Neste sentido mais primitivo não existiria um
vazio, uma falta, um hiato, mas uma potencialidade de desenvolvimento que se
faz independentemente da existência ou não de uma falta. A semente de um
vegetal pode nos servir de exemplo para esta noção; ela busca o seu
desdobramento por uma premência interna; é de sua natureza desenrolar-se em caule,
folhas e flores, assim como é do homem expandir-se em seus processos de
criação. Enquanto em processo de criação o ser humano sente-se pleno e possuído
por uma alegria oceânica. Logo, porém surge o obstáculo, a alteridade, o outro,
o diferente que oferece resistência à expansão de seu ser. Passa a ter então
uma aguda consciência de sua limitação. A plenitude cede seu lugar à
incompletude. Correlativa à falta lacaniana que remete ao código simbólico e à
totalidade paranóica, a incompletude tem seu horizonte na relação afetiva. É
nessa perspectiva que se pode viver uma solidão sem abandono. Plenitude e
incompletude fazem parte de um devir permanente que nunca se coagula em uma
única posição.
Quando,
na função auto-nomeada de porta-voz da corrente não-lacaniana falo de falta,
não me refiro nem a uma falta filosófica, nem a uma falta biológica, nem ao
sentimento de incompletude que surge no processo de separação-individuação.
Enquanto Lacan nos fala de uma falta estrutural, biológica e/ou filosófica, eu distingo
falta de incompletude, reservando a palavra falta a um pensamento/sentimento
que decorre de uma relação afetivo-empático-identificatória excessivamente
problemática com os genitores e mais especialmente com a função-mãe. Em
decorrência surgem problemas na área de identificação provocando uma vivência
de falta que nos remete a um certo conceito de falta; à idéia de conflito,
apanágio das neuroses estruturadas, acrescenta-se a idéia de falta, própria dos
borderlines.
O paciente "difícil" fala ao analista
ou diretamente ou por aproximações, de sua vivência de falta: ausência de
finalidade da vida, futilidade da
existência, desorientação, vazio, falta.
Outros se distanciam desta vivência através de uma ansiedade estilhaçadora, de
uma dispersão, falando compulsivamente, pulando de um assunto para outro,
desinteressados de uma resposta verbal do analista; a função desta fala não é
comunicar pensamentos mas sim provocar sentimentos e estabelecer modos de
relação. Aqui, a vivência de falta, eclipsada pela fragmentação ansiosa é
sentida pelo analista. Este percebe a busca de algo que lhes falta, a procura
desesperada de um ancoradouro, de um continente, de um anteparo, de uma figura
benigna a ser internalizada para acalmar receios de fragmentação, dispersão e
aniquilamento.
O
aumento do contingente de analisandos "faltosos" pode ser
compreendido dentro de um contexto histórico.
Na
modalidade disciplinar a família apresentava-se sólida, estável e com papéis
bem definidos. A mãe cuidava do lar e tinha condições de fornecer à criança uma
atenção constante e cuidadosa; o pai era a autoridade inconteste do grupo
familiar, portador das regras e leis da
cultura, respeitado, reverenciado e a
quem se devia obediência. Esta situação foi se modificando. Em nossa civilização
pós-industrial a mulher ocupa um lugar no mercado de trabalho sendo forçada a
ele retornar o mais rapidamente possível, diminuindo assim seu período de
dedicação ao filho; mesmo o seu tempo de cuidado com o bebê está permeado de
preocupações que antes eram assumidas, especialmente neste período, pelo homem.
Creches e babás entram rapidamente em cena para liberar a mãe de parte das
injunções maternas. O pai perde sua posição não somente por uma diluição do
poder pela família como também pela invasão dos poderes técnicos e da moral
maciçamente divulgada pela mídia. Questionado pela companheira e pelos filhos o
pai deixa de ser o representante da sociedade no seio da família. A atitude
reverencial em relação ao pai desaparece. Perdem-se assim sólidas e
persistentes referências identificatórias, tanto na relação com o pai quanto na
relação com a mãe, daí resultando problemas na área das identificações e da
identidade.
Estamos
numa sociedade em mudança. As identificações dispersas e diluídas são parte de
nosso cotidiano. Um contingente destas pessoas busca o terapeuta em estado de
sofrimento, de inquietude; não sabe o que fazer com a "falta". Para o
terapeuta que acredita ser o sentimento de falta uma decorrência das
experiências históricas da pessoa torna-se importante distinguir quais as
identificações em jogo: se as maternas ou as paternas. Vários autores
distinguem duas áreas funcionais do psiquismo: uma área edípica ligada à
concepção estrutural do psiquismo, às neuroses clássicas, ao modelo social
veiculado pelo superego-ideal de ego, e uma outra área que recebe diversos
nomes: Winnicott a chama de espaço transicional ou potencial, Balint de falta
básica e "primary love", Kohut de zona do self habitada pelo self e
pelos objetos- do-self, Melanie Klein fala de mecanismos de defesa primitivos
em contraposição a mecanismos de defesa maduros. Eu mesmo, em um artigo
anterior distingui dinamismos básicos referidos à função-mãe de dinamismos
secundários ligados à função-pai. Todos estes autores priorizam a função-mãe no
processo de humanização e afirmam uma insistência, uma perseverança, uma
duração funcional através de toda existência
destes padrões mentais precocemente adquiridos. No artigo de Félix
Guattari "Linguagem, consciência e sociedade" encontro o seguinte
trecho: Nessa mesma via de uma
compreensão polifônica e heterogenética da subjetividade encontraremos a
vantagem de seus aspectos etológicos e ecológicos serem levado em consideração.
Daniel Stern em "The Impersonal World of the Infant", explorou de
modo notável as formações subjetivas pré-verbais da criança....ele valoriza o
caráter de conjunto transubjetivo das experiências precoces da criança que não
dissocia o sentimento de si do sentimento do outro. É uma dialética entre os
"afetos partilháveis" e os afetos "não-partilháveis" que
estruturam dessa forma a subjetividade
emergente. Subjetividade em estado nascente que não cessaremos de
reencontrar no sonho, no delírio, na exaltação criadora, no sentimento
amoroso..."(pag.6).
Uma
conseqüência importante desta concepção que reconhece duas funções, uma
maternal e outra paternal, pode ser assim expressa: ao se desmoronarem as
identificações referidas ao modelo social, ao superego, à personificação do
pai, os padrões mentais adquiridos na relação simbiótica com a função-mãe
ganham relevo. As conseqüências das falhas vivenciais da relação mãe-infans que
poderiam passar desapercebidas caso persistissem as identificações
superegóicas, tornam-se dolorosamente visíveis quando estas se desagregam. A
função-mãe ganha uma ainda maior proeminência.
As
sociedades matricentradas da aurora da humanidade foram substituídas pelas
sociedades patriarcais. A mulher oprimida criou o movimento feminista; este,
porém, capturado pelos sistemas de poder, nada mais fez senão reforçar o modo
masculino de pensamento. O aspecto do feminino que se tornou aceito pela
sociedade masculina é o feminino sexuado, o feminino misterioso, "la femme
fatale", um feminino explicitamente assustador; porém não tão terrível
quanto o implicitamente assustador feminino maternal. Deste pouco se fala
porquanto nos remete à criança fraca, vulnerável, inerme, que nos habita e que
eternamente deseja retornar ao colo da Grande Mãe. O feminino maternal é muito
mais perigoso que o feminino sexual pois enquanto o segundo tenta devorar uma
pessoa adulta que se pode defender, o primeiro evoca o infante que não teria
meios de defesa em relação aos desejos invasores, devoradores, devastadores,
colonizadores da Mãe. Mais fácil, pois, aceitar o feminino sexual que o
feminino maternal. Tornou-se porém necessário trabalhar com instrumentos
feminino-maternos de conhecimento, relação e comunicação sob pena de não
sairmos dos impasses de nossa civilização. Um feminino a ser desenvolvido tanto
no homem quanto na mulher. Reabilitar o feminino, e mais especialmente o
feminino-maternal representa a possibilidade de darmos mais um giro na voluta
da história, afastando-nos dos perigos resultantes dos desequilíbrios
ecológicos. Isto não significa que as aquisições do pensamento masculino e o
próprio pensamento masculino devam ser abandonados. Pensamento masculino e
feminino deverão conviver harmoniosamente possuindo cada um o seu espaço, o seu
momento. Haverá ocasiões próprias para uma separação sujeito/objeto,
homem/mundo e outras em que esta dicotomia será inoportuna. O comportamento
interpretativo, a postura enigmática de intenção interpretativa, a postura
simbionte/comportamento covivencial, todas têm, neste momento da história, o
seu lugar. Possivelmente estamos descobrindo uma outra postura terapêutica onde
masculino e feminino se interpenetram. Mas isto já seria matéria para um novo
trabalho.
Nahman
Armony
[1] Artigo
publicado em “A psicanálise e seus destinos” – “II Fórum Brasileiro de
Psicanálise. Organizadores: José D.C. Albuquerque e Edson Lannes, outubro de
1991.