O AMOR TEM SUAS ARMADILHAS


 
        Uma das armadilhas prediletas do amor é a exigência de dedicação incondicional ao outro. De início, o predestinado a este papel resiste, colocando seus desejos, discutindo, fazendo acordos. Porém, ao se deparar com uma pessoa ardilosa, que astutamente e inconscientemente exibe um enorme sofrimento diante das frustrações causadas pelos atos afirmativos do namorado, e que ao mesmo tempo assegura não querer manipulá-lo --- apenas não quer sofrer ---- poderá conseguir que em nome do sofrimento e do amor ele vá cedendo aos desejos dela, desistindo de seus valores e de sua postura autônoma e independente para finalmente transformar-se em servo. Uma parte do que era atraente ---  a força da personalidade, a diferença, o desafio, a incerteza, o risco do retraimento ---- desaparece. Uma imagem bastante conhecida exprime bem esta situação: chupar a fruta até tirar dela todos os elementos nutritivos e depois cuspir o bagaço. A dobradinha admiração/aprovação faz parte da composição amorosa. A pessoa sente-se valorizada quando é amada por alguém que admira e a aprovação e o aceite desta pessoa torna-se um elemento fundamental no equilíbrio da relação. Os conflitos muitas vezes surgem do sentimento de que a pessoa não está sendo devidamente apreciada e são resolvidos mediante um acordo entre iguais. Se o parceiro torna-se um nada, um zero à esquerda, se já não tem vontade própria, se concorda com tudo  que o outro deseja, desaparece como pessoa, e já não pode mais ser admirado. Sua aprovação ou desaprovação deixa de ser relevante: já não serve para a autoestima, para o orgulho de ter um companheiro altivo e brioso; já não é um companheiro de luta pois sua personalidade e força desapareceram. Onde deveria haver dois a enfrentar o mundo ficam reduzidos a apenas um com a sua rabeira: um carbono, uma repetição, uma sombra sem força de realização.  

        É uma situação paradoxal: deseja-se uma pessoa forte, mas se tem medo de que justamente esta fortaleza atraia outros e o abandono ocorra. Faz-se então um esforço para dominá-lo por completo e ele se torna uma criatura fraca indigna do amor e incapaz de realizar uma parceria produtiva. Isto nos leva a pensar que em um certo número de casos a insegurança vem a ser um dos componentes que mantém o amor.

        Estas considerações baseiam-se em um caso acontecido na minha clínica. Um rapaz inicialmente tímido, tinha-se tornado autoafirmativo adquirindo charme e densidade, usando sua inteligência para estabelecer relações amorosas e eróticas. Tinha romances que duravam algum tempo e que ao terminarem provocavam um sofrimento que não chegava a atrapalhar o curso da vida. A autoestima e o garbo se mantinham. Até que ao se apaixonar por uma mulher que ele considerava especial, idealizando-a, passou a ter um medo excessivo de perdê-la como se dela não fosse merecedor. Diferentemente das situações anteriores em que se sentia em plano de igualdade ou mesmo de superioridade, ele se pôs em situação de inferioridade e passou a atender às solicitações da namorada mesmo quando contrariavam sentimentos e princípios básicos seus. Em pouco tempo perdeu sua individualidade e como isso desapareceu seu charme, seu mistério, sua essência. Deixou de existir como pessoa e finalmente foi descartado pela namorada ficando num estado de extremo sofrimento e desvalorização. Sua autoestima desapareceu e foi preciso um longo tempo e muito trabalho para que ele entrasse no caminho de recuperação de sua identidade e potência.

        Sem dúvida o amor exige concessões de parte a parte. Mas certos princípios e sentimentos básicos pessoais não podem ser abandonados sob pena de um desenvolvimento desfavorável da relação e, pior, uma transformação de um ser humano consistente para uma inconsistência perigosa para o próprio viver.

 

                                Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS

 

LIMIAR (do livro "O Anverso e o Verso")

No emaranhado das palavras
Busco uma brecha
Sorvo profundamente
O ar rarefeito
Cambaleio no espaço
Seguro-me nos corrimões
Vejo as plantações
De seres
Unidos perna a perna
Até o infinito

Já não existo
Já não encontro
Aquilo que fui
E o que sou
Não se é
Se foi
Ou se não é

Enredo-me nas teias
Sofro a distância
Empedra-me o sofrimento
E busco
Por entre as palavras
A força vital
O impulso primevo
Tão diluído
No labirinto das leis e deveres.

Mulambo, balaio, rede
Quente, dia, rente
Moleza.

Sou Eu?
Ou é Ele?

                  Nahman  Armony  

UM OLHAR ÉTICO ATUAL PRODUTOR DE ANTIGOS E CONTEMPORÂNEOS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO


                                                                          Agradeço a interlocução e apoio de Odette Wildhagen

 

A filosofia, desde o seu aparecimento pretendeu, a partir de suas especulações, servir de guia, implícita ou explicitamente, para o viver humano. Neste sentido, ela é, de certo modo, um ancestral remoto da psicanálise. Na “Hermenêutica do sujeito” Foucault diz que “tudo nos indica que na história da filosofia – mais amplamente ainda, na história do pensamento ocidental – o gnôthi seautón [ conhece-te a ti mesmo ] é, sem dúvida, fórmula fundadora da questão das relações entre sujeito e verdade...”[1]. Sabemos todos que esta máxima atribuída por Platão a Sócrates é de grande relevância na filosofia platônica assim como é a pedra de toque nos primórdios e no desenvolvimento da psicanálise. Têm, porém significações diferentes. O “conhece-te a ti mesmo” socrático-platônico refere-se a alcançar um conhecimento de universais virtualmente existentes em cada humano. O mito que corresponde a este preceito é o da alma que, antes de sua união com o corpo, passeia entre as verdades absolutas e eternas, conhecendo-as, e delas se esquecendo (aléthea) ao se encarnar em um corpo mortal. O homem, este misto de matéria e forma, procurará rememorar a verdade que está esquecida dentro de cada um, tarefa impossível, pois a idéia pura e perfeita está fora do alcance de qualquer mortal que só conseguirá ter uma pálida cópia da idéia eterna. Para alcançar tal conhecimento o indivíduo deve praticar uma ascese apoiado em Eros, o que significa que deve “cuidar de si” (epiméleia heautoû) e para cuidar de si deve conhecer a si mesmo. Temos já aí um princípio recorrente que será o chão da psicanálise, especialmente nos seus primeiros cinqüenta anos (Mais adiante veremos que a este princípio se agregará um outro pano de fundo.) O “conhece-te a ti mesmo” de Freud é, porém, como indiquei acima diferente do de Sócrates. O filósofo grego afirma que as idéias verdadeiras universais encontram-se esquecidas na alma de cada ser humano e que ao relembrá-las encontrará os modelos para sua ação moral. Já para Freud conhecer a si mesmo é desvelar as motivações inconscientes dos sintomas e das ações para “transformar um sofrimento neurótico em sofrimento comum”. O conhecimento socrático almeja alcançar as essências universais para estabelecer uma organização racional na pólis; o freudiano pretende iluminar o irracional latente humano com uma luz racional para livrá-lo do sofrimento patológico. São duas éticas e dois modos de subjetivação. A semelhança existente quando olhamos estes dois gigantes a partir de um plano geral, mostra suas divergências ao examiná-las em close-up.

Voltando a Platão e às suas verdades eternas. Entre elas estavam as idéias de Bem, Justiça e Virtude, modelos a serem copiados pelos homens em sua conduta na polis. Temos, pois, desde esses inícios uma ligação íntima de ética e subjetivação. Os homens ao cuidarem de si (processo de subjetivação) encontrariam dentro deles próprios as cópias das verdades eternas transcendentes passando então a agir virtuosamente (eticamente) na polis.

O tratamento psicanalítico é um processo de subjetivação para o analisando, sim, mas também para o analista cuja subjetividade vai-se transformando em sua interação com o analisando. Mas estou-me adiantando, pois isto que pode hoje ser dito não o poderia nos primeiros tempos da psicanálise. Naquela época a cultura dicotômica vigente produzia uma relação analista-analisando na qual o analista aparecia como um ser idealizado intocável na sua perfeição, um observador inatacável e inatingível estudando um sujeito observado que, significativamente era (e ainda é por inércia, descuido, um laissez faire lingüístico, um vício cultural) chamado de objeto. Dentro da dicotomia então prevalente que separava razão e emoção desvalorizando a segunda e supervalorizando a primeira, o analista deveria obedecer às regras do incógnito, da neutralidade, do autoapagamento, da distancia, ficando fora do alcance do olhar do analisando. Apenas uma voz imparcial e portentosa deveria estar em cena realizando interpretações que falavam a verdade dos sintomas, sonhos e atos falhos do analisando. Na subjetividade da época as personificações de excelência psicanalítica e de fidalguia intelectual eram colocadas em um pedestal, ficando fora do alcance dos questionamentos de criaturas inferiores que ainda engatinhavam na busca da verdade e que, portanto deveriam aceitar sem discussão as verdades daqueles que já tinham chegado ao Olimpo do conhecimento. O analista e analisando penetrados por esta subjetividade colocavam o primeiro como capaz de dizer a verdade do inconsciente do segundo; a não aceitação desta verdade proclamada era chamada ou de resistência -- uma espécie de má-vontade do inconsciente em conhecer a verdade – ou de reação terapêutica negativa -- uma oposição maliciosa ao trabalho analítico. O psicanalista aparecia como dono e sabedor da verdade do inconsciente do analisando. Esta era a ética da época, uma ética que tinha a ver com a subjetividade da qual a sociedade estava impregnada. Não se trata de julgar se era uma boa ou má ética, mas sim de compreender que esta era a ética compatível com as condições sociais e culturais dominadas pela dicotomia sujeito-objeto, pelo cientificismo (que além de exigir exatidão, dividia o mundo em observadores e observados), pela repressão e autoritarismo.

Na conduta kleiniana hiperbólica o desrespeito pela subjetividade do analisando atinge o seu ápice.  A técnica kleiniana levada ao exagero caracteriza-se por interpretações diretas de inconsciente que passam por cima das defesas dos analisandos, não as levando em consideração. Se o analisando não aceitava as interpretações de inconsciente estaria ou resistindo ou tendo uma reação terapêutica negativa. As alegações do analisando não eram levadas em conta. Ou ele se submetia às verdades do analista ou, em não agüentando, abandonava a análise. Os que permaneciam regrediam a uma situação infantil vivendo o papel de crianças incapazes, necessitadas de serem orientadas e protegidas por analistas que necessariamente se tornavam figuras idealizadas. O resultado desta situação era que ou o analisando permanecia eternamente regredido ou, para receber sua alta, identificava-se com as verdades e principalmente com a onipotência e onisciência do analista. O destino desta “cura” dependia do analisando ser ou não candidato a analista. Se candidato, ao receber com a alta analítica, autorização para clinicar, reproduzia agora como psicanalista o modo todo-poderoso do seu mentor dando origem e prosseguimento a uma árvore genealógica, perpetuando uma hierarquia onde se dava extremo valor à ancestralidade e à filiação.

De que processos de subjetivação, falamos acima? Do ponto de vista freudiano e kleiniano, as mudanças subjetivas eram resultado de interpretações que provocavam insigths transformadores. Do que eles não falavam, e talvez não pudessem então perceber dentro da episteme vigente era que paralelamente aconteciam processos de internalização que promoviam subjetivações.

Examinemos os processos de subjetivação implicados na descrição desta técnica. Aparentemente as interpretações produziriam um insight, uma conscientização daquilo que pertencia ao inconsciente, promovendo uma mudança subjetiva. É possível que algo desta ordem acontecesse, mas não como alicerce da subjetivação. Os indícios sugerem que o suporte desta pseudo cura está relacionado a uma internalização global e maciça do analista idealizado.

Aqui se coloca uma questão contemporânea. Como a psicanálise atua? Seria apenas através das interpretações? Ou também através de vivências propiciadoras de processos de internalização não representacionais? Vários autores e escolas analíticas enfatizam a importância da interação analítica em nível psicossomático. Entre eles encontramos Winnicott com seus conceitos de holding, handling, mutualidade, identificações cruzadas; Searles com o seu conceito de simbiose terapêutica; Stolorow com a teoria da intersubjetividade enfatizando a formação de novos “princípios organizadores da experiência” decorrentes da relação analista-analisando. Precisamos, pois acrescentar aos processos de subjetivação derivados da interpretação (e aqui estão entre outros a interpretação mutativa, a ocupação provisória do id pelo ego, a conscientização das motivações inconscientes, a parte explicativa da internalização transmutadora) outros dependentes da relação direta dos psiquessomas das partes envolvidas (que chamo de co-vivência), onde a palavra-representação, um símbolo que substitui, que fica no lugar de, cede sua primazia à apresentação de coisa, ao interjogo psicossomático analista/analisando; a palavra é então parte da corporeidade, um símbolo de 1ª ordem que pertence ao conjunto do comportamento e da comunicação expressiva, contrastando com a comunicação da palavra-símbolo de 2ª ordem, uma representação afastada do corpo[2]. Como sempre essas transformações pertencem a um contexto cultural global: des-hierarquização; superação das dicotomias sujeito-objeto, corpo-alma, observador-observado; desidealização das figuras de autoridade; queda dos modelos; relativização da importância da representação; quebra da necessidade de unidade e unificação.    

Precisei me adiantar para poder examinar um modo de subjetivação impossível de ser admitido nos primeiros 50 ou 60 anos de psicanálise. Refiro-me aos processos de internalização dependentes do aspecto de vivência psicossomática compartilhada (co-vivencial) na relação analista-analisando. Como se trata de uma questão atual de ética e subjetivação serei mais minucioso. Utilizarei o léxico winnicottiano para expor minhas idéias, começando, porém, com uma concepção de Freud que certamente facilitará a compreensão dos conceitos winnicottianos de introjeção e incorporação. Quero relembrar que não estaremos mais no terreno da interpretação representacional, mas sim na comunicação psicossomática vivencial mais pertinente à pós-modernidade.

No artigo de Freud “Sobre o narcisismo: uma introdução” lemos a seguinte frase: “Ele pode ter desviado inteiramente o seu interesse sexual dos seres humanos; contudo pode tê-lo sublimado num interesse mais elevado pelo divino, pela natureza, ou pelo reino animal, sem que sua libido tenha sofrido introversão até suas fantasias ou retorno ao seu ego[sublinhado meu]”[3]. Por esta frase vemos que Freud admite a existência de um “lócus” egóico  (retorno ao  ego) e de uma “lócus” de fantasia (introversão até as suas fantasias). Ao retornar ao ego o objeto internalizado é canibalizado, assimilado, desaparecendo como objeto e passando a fazer parte da pessoa. Retornando à zona de fantasia o objeto se mantém como tal, destacado do ego, podendo ser reconhecido como um objeto interno.

Confrontando as colocações de Winnicott com a concepção acima de Freud entendo que a incorporação ocorre quando o objeto é assimilado pelo self, desaparecendo como objeto, enquanto que introjeção refere-se a uma internalização em nível de fantasia, permanecendo como um objeto interno não incorporado. Para facilitar nossa reflexão vou concretizá-la imaginando uma topografia onde a incorporação se dá na zona do ego e a introjeção se dá na zona dos objetos que sendo internos, são objetos da fantasia. No artigo “Child Analysis in the Latency Period” (estou usando o original inglês, pois há um pasmoso erro de tradução na edição brasileira de 1983, da Editora Artes Médicas, onde latency é traduzido por lactência, e não por latência) Winnicott distingue claramente introjeção de incorporação: “The latency child is ready for introjecting, but not for incorporating – ready to take in whole elements from chosen persons but not ready to eat or be eaten, or merge in a intimate relationship involving instinct”[4]. Traduzindo: “A criança na latência está preparada para introjetar, mas não para incorporar – pronta para apropriar-se de elementos inteiros de pessoas escolhidas, mas não para comer ou ser comida ou se fundir em um relacionamento íntimo envolvendo instinto”. Comer, ser comido, fundir, referem-se a uma assimilação pelo psiquessoma enquanto que introjeção significa interiorizar figuras em sua globalidade sem assimilá-las. Não é difícil associar a introjeção a uma operação de falso self que é o que Winnicott nos diz em outro artigo seu:

“Através deste falso self o lactente constrói um conjunto de relacionamentos falsos (um cenário falso de relacionamentos), e por meio de introjeções pode chegar até uma aparência de ser real, de modo que a criança pode crescer se tornando exatamente como a mãe, ama-seca, tia, irmão ou quem quer que no momento domine o cenário.”[5]

 

Este falso self, resultado de introjeção, não tem suas raízes no corpo, no psiquessoma, no âmago do ser, sendo assim sentido como irreal. A introjeção aqui tem um caráter de permanência produzindo uma pessoa falso self que assim permanecerá durante sua vida. Podemos também encontrar introjeções transitórias. Um púbere que assista a um filme de mocinho e bandido poderá sair do cinema sentindo-se forte, poderoso e benévolo como o mocinho. Esta sensação perdurará por algum tempo e depois se dissolverá. Quando fizemos o exame da dinâmica da relação analítica kleiniana extremada, encontramos uma introjeção de caráter permanente, produtora de um falso self. Existem, porém introjeções que se apóiam em incorporações anteriores e que têm uma função positiva no funcionamento do psiquismo. Winnicott:

“O que queremos então? Queremos ser comidos, não magicamente introjetados. E não há masoquismo algum neste ponto. Ser comida é o desejo e na verdade a necessidade de uma mãe nos primeiros estágios da criação de um bebê. Isto significa que os que não são canibalisticamente atacados tendem a sentir-se fora do alcance dos atos reparadores e restituidores dos demais, ou seja, fora da sociedade. Se formos usados até o fim, devorados e roubados, somente então poderemos aceitar minimamente que nos introjetem de modo mágico, e que sejamos colocados na prateleira de conservas do mundo interno de alguém.” [6]

 

Winnicott está falando do incômodo do analista, mas não tenho dúvida de que a “mínima aceitação” do analista em ser introjetado pode ser considerada da ordem do saudável. Esta idéia mais ou menos se confirma no trecho que cito a seguir: “Materiais percebidos como bons, introjetados para fins de enriquecimento e estabilização da personalidade (conjunto C). Material percebido como mau, introjetado no intuito de ser controlado (conjunto C)”[7]. Falar de enriquecimento e estabilização da personalidade é falar de uma introjeção boa. Podemos relacionar esta introjeção boa ao falso self produzido pelo verdadeiro self para protegê-lo. Aqui, o maestro da identificação introjetiva é o verdadeiro self o que dá uma raiz corporal ao falso self, mantendo sua subordinação ao verdadeiro self. O ambiente terapêutico deve propiciar estes processos de incorporação e de introjeção self-sintônicos. Para isso o analista deve favorecer o aparecimento de um clima em que a relação co-vivencial se torne possível. As concepções éticas de dois filósofos da atualidade, Levinas e Buber, podem nos ajudar a compor este clima.

Para Levinas[8] a ética precede a ontologia. O encontro com o outro é inaugural e anterior a qualquer fala. Este outro é radicalmente outro, pura diferença, um rosto infinitamente incognoscível, em relação ao qual o eu tem uma responsabilidade primária, imediata, antes de qualquer conhecimento. Sou responsável pelo rosto que, emergindo em meu mundo, me olha. Não interessa quem ele é, o que pensa, o que sente. Sua simples existência me torna responsável. É no exercício desta responsabilidade que se estabelece a proximidade. Uma responsabilidade que não exige reciprocidade. Ao contrário, sou também responsável pela sua própria responsabilidade. Trata-se de uma responsabilidade total e absoluta.

Sem querer simplificar o pensamento de Levinas, mas usando-o para enriquecer os conceitos analíticos que estou apresentando posso pensar que um bebê (e um analisando regredido) é um ser radicalmente outro para a mãe (Regina Orth de Aragão inventa a palavra “estrangeiridade”). Por mais que ela sonhe com seu futuro filho e por mais que se excite alegremente nas sessões de ultra-som, ainda assim, ao nascer, será um E.T. jamais visto anteriormente que precisará ser aceito, acolhido e amado incondicionalmente, independentemente de suas formosuras e fealdades, de suas perfeições e deficiências.  Esta aceitação incondicional e essa assunção de uma responsabilidade total criarão uma proximidade necessária ao seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo colocará o Cuidador em posição privilegiada: uma mãe (analista) suficientemente boa permite que seu filho (analisando) realize suas potencialidades no social, mas mantém uma posição de poder, de superioridade, de credora dos agradecimentos do filho mesmo que nunca venha a reivindicá-los.

Em Martim Buber[9] encontraremos uma ética que nos permite pensar em uma relação co-vivencial que, ao contrário da anterior, é igualitária, não-hierárquica. Ele enfatiza aqueles encontros em que o eu está aberto “com todos os poros de meu corpo” a toda “recepção” e “percepção” que vem do “tu”. Citação:

“Nenhum daqueles dois precisa renunciar à sua opinião; só que fazendo eles algo de improviso e acontecendo-lhes de improviso este algo que se chama união, eles penetram num reino onde não é mais válida a lei da opinião... O encontro já se tinha dado anteriormente quando, cada um em sua alma, voltou-se para-o-outro, de maneira que, daqui por diante, cada um, tornando o outro presente, falava-lhe e a ele se dirigia verdadeiramente. (...)  Assim sendo, mesmo que se possa prescindir da fala, da comunicação, há contudo um elemento que parece pertencer indissoluvelmente à constituição mínima do dialógico, de acordo com seu próprio sentido: a reciprocidade da ação interior. Dois homens que estão dialogicamente ligados devem estar obviamente voltados um-para-o-outro.”[10]

 

A ética de Buber é compatível com a idéia de uma relação co-vivencial sem hierarquia. Nesta modalidade o analista deixa de ser a mãe suficientemente boa que proporciona um ambiente facilitador da expansão do self, para tornar-se um ser humano comum que simplesmente interage com o analisando em nível de igualdade, podendo ter sentimentos, emoções e fantasias, permitindo-se mesmo expô-los quando de sua emergência. Naturalmente que há um timing a ser respeitado, que é o que faz do analista o guardião da relação terapêutica. Porém, este cuidado não coloca o analista numa posição hierarquicamente superior, pois não há modelos a serem seguidos nem posições a serem ocupadas. A posição em que o analista se encontra é simétrica à do analisando. A diferença é que, ao invés de vigorarem modelos na zona psíquica dos objetos e fantasias, subsistem insinuâncias[11] incorporadas ao psiquessoma (lembremo-nos da zona freudiana do ego) impregnando todo o psiquismo e cuja ação é imanente, não dependendo de uma reflexão.

Evidentemente a relação simétrica passível de acontecer no momento do relacionamento intersubjetivo está envolta por uma relação assimétrica objetiva, chamada por Searles de real, que se estabelece no contrato, quando ao analista --- com suas credenciais profissionais reconhecidas ---- é delegada a responsabilidade de ajuda na resolução dos problemas e atenuação dos sofrimentos do analisando. Esta responsabilidade objetiva do analista precisará ser transformada em insinuâncias subjetivas no momento da relação co-vivencial para não perturbar a espontaneidade da relação.[12].    

Octávio Souza em seu artigo Defesa e criatividade em Klein, Lacan e Winnicott[13] realiza uma intensa pesquisa especialmente em torno dos conceitos de trauma, defesa, ego, criatividade, desejo e necessidade. Enquanto as teorias kleiniana e lacaniana convidam o analista a exercer uma ética da responsabilização, a teorização winnicottiana induz uma outra ética, a ética do holding e do cuidado. Tentando transmitir aquilo que me assaltou como mais essencial no artigo de Octávio (e pedindo a ele desculpas por deixar de apresentar aspectos importantíssimos de suas reflexões que, no entanto podem ser lidas no artigo original) direi que só se pode responsabilizar o analisando (e o bebê) pela sua escolha quando a capacidade de desejar (que inclui defesas) está presente. Citando Octávio de Souza:

“Firmar pé na noção de escolha para compreender a dinâmica defensiva entre sujeito e outro convida a uma apreciação do sujeito em termos de ajuizamento do valor daquilo que ele faz e daquilo que não faz. Nesta perspectiva, a condução do tratamento psicanalítico é orientada pelo que se pode chamar de uma ética da responsabilidade que visa a chamar o sujeito a se responsabilizar por suas escolhas.”[14]

 

Winnicott fala de uma fase do desenvolvimento em que ainda não há desejo, mas sim necessidades (não existem defesas, mas sim desamparo) que precisam ser acolhidas para que possa surgir a capacidade de desejar. Mesmo então persiste o plano da necessidade que continua pedindo do analista holding e handling provocando uma atitude ética de cuidado. Diz Octávio:

“Na prática analítica, antes que a escolha defensiva do analisando entre em linha de consideração, há uma outra escolha que deve ser feita: a escolha do analista entre a insistência no reconhecimento do desejo com vistas à responsabilização do sujeito, por um lado, e, por outro lado, a dedicação ao cuidado que a aproximação empática do sofrimento pode propiciar. É importante que ele esteja sempre apto a realmente escolher entre as duas sem se deixar nortear por mandamentos éticos excessivamente rígidos. A ética do psicanalista deve ser a ética da situação clínica que encontra.”[15]

 

Esta concepção ética aplicada à situação analítica corresponde a uma ética filosófica abrangente contemporânea, tal como é exposta por Carneiro Leão:

“O desafio da ética hoje não está em uma abstração nevoenta. O desafio concreto da ética está em entregar-se toda à espera do inesperado. Uma espera que vive e vivifica a vida do pensamento. Pois, pensar, como pensam os pensadores, não é saber, como sabem os conhecedores. É, perseverando na “espera do inesperado”, deixar-se transformar pelo vigor originário do não saber.”[16]

 

Qual o meu despretencioso aporte? É acrescentar uma ética da igualdade às duas anteriores. Chegarei lá ordenando, revisando e acrescentando:

Ética da responsabilidade (responsabilização) – referida à concepção edípica, ao homem culpado da modernidade, à idéia de psiquismo e mente isolados, ao comportamento interpretativo, é evidentemente dicotômica já que o analista entrega ao analisando a responsabilidade de seus sintomas, condutas e desejos. Faz parte de uma episteme que, mesmo ao internalizar as concepções teóricas, o faz na zona dos objetos da fantasia, onde age como imperativo categórico (idéias interiores transcendentais) no trabalho do psicanalista.

No comportamento co-vivencial encontramos duas éticas. Na primeira, exposta por Octávio Souza, o analista se apresenta como possuidor da capacidade de criar um ambiente suficientemente bom para o desenvolvimento do verdadeiro self do analisando. Em termos de identificação, o que é incorporado e/ou introjetado é uma relação assimétrica em que o analisando ocupa uma posição inferior. Não há uma troca entre dois sujeitos de mesma hierarquia, mas uma relação intersubjetiva de Cuidador para Cuidado. Esta ética tem uma evidente inspiração em Winnicott especialmente nos conceitos de holding, handling, concern. Darei um exemplo da própria clínica winnicottiana. Trata-se de uma mulher de 40 anos:

“O detalhe que escolhi para descrição tem a ver com a necessidade absoluta que esta paciente tinha, de tempos em tempos, de ficar em contato comigo(...)Uma variedade de intimidades foi tentada, principalmente aquelas que dizem respeito à alimentação e ao manejo de bebês. Houve episódios violentos, e acabou por ela e eu ficarmos juntos, eu com a cabeça dela em minhas mãos. Sem uma ação deliberada por parte de qualquer de nós, desenvolveu-se um ritmo de embalo. O ritmo era bastante rápido cerca de 70 por minuto (cf. batimentos cardíacos) e tive algum trabalho para adaptar-me a tal ritmo. Sem embargo, lá nos achávamos com a mutualidade expressa em termos de um leve, mas persistente movimento de embalo. Sem palavras, estávamos nos comunicando um com o outro, e isto estava se dando em um nível de desenvolvimento que não exigia que a paciente tivesse maturidade mais avançada daquela que se descobrira possuindo na regressão à dependência da fase da sua análise” (p. 200).[17]

 

Aqui Winnicott age como se mãe fora da paciente numa clara posição assimétrica, necessária para aquele momento da terapia.

A outra ética que por falta de melhor inspiração chamarei de “ética da igualdade hierárquica no campo intersubjetivo” produz uma relação na qual analista e analisando encontram-se num mesmo patamar hierárquico, por mais que a experiência analítica e o conhecimento teórico pendam para o lado do analista. Estão ali emparelhados frente a frente, dois seres humanos de mesmo coturno, com as mesmas prerrogativas, com o mesmo alvará para o acesso à subjetividade do outro, com palavras de mesma legitimidade, com o mesmo direito a dúvidas e questionamentos. O analista renuncia aos seus signos e rituais de poder e torna-se um ser humano comum capaz de, por sua experiência e conhecimento, oferecer um auxílio mais o menos pertinente ao momento que o analisando está vivendo. Winnicott não está alheio a esta ética, apesar de nele predominar a ética do cuidado. Já Searles aproxima-se mais da ética da igualdade:

“Não é demais dizer que, em resposta à transferência do paciente esquizofrênico, o terapeuta não só se comporta como os adultos significativos da infância do paciente, mas experimenta muito intimamente, dentro de si próprio, ativada pela transferência do paciente, a verdadeira espécie de profundos e intensos sentimentos conflitivos que estavam em jogo, embora reprimidos, nos adultos do passado, assim como experimenta, através dos mecanismos de projeção e introjeção na relação entre si próprio e o paciente, as intensas e conflituosas emoções que formaram a base seminal da psicose na criança, anos antes.”[18]

 

Aqui persistem as figuras do Cuidador e do Cuidado distribuídas entre analista e analisando. O analista é geralmente o Cuidador, mas poderá ser concomitantemente ou sucessivamente o Cuidado, assim como o analisando geralmente Cuidado poderá também ser o Cuidador. Aproximando-se ainda mais da paridade Searles fala do entroncamento da relação real com a relação transferencial:

“...e eu sugiro que uma segunda e saudável fonte de sentimentos partilhados pelo terapeuta é o gradual desenvolvimento da relação real, a qual tem seu próprio curso relacionado e paralelo, porém não inteiramente abrangido pelo gradual desenvolvimento da relação transferencial através dos anos de trabalho conjunto.”[19]

 

A teoria psicanalítica da intersubjetividade de Stolorow coloca ainda mais claramente a igualdade das posições de analista e analisando:

“A psicanálise procura iluminar o fenômeno que emerge num campo psicológico especifico constituído pela interseção de duas subjetividades, a do paciente e a do psicanalista. Portanto, por essa perspectiva, a psicanálise é vista como sendo uma ciência da intersubjetividade, que volta sua atenção para o entrelaçamento entre os mundos subjetivos diferentemente organizados do observador e observado (...) a psicanálise é a única entre as ciências na qual o observador é também o observado.”[20]

 

Reapresentarei com algumas alterações atualizadoras um trecho de meu livro “Borderline: uma outra normalidade”, onde exponho a relação de intersubjetividade que tem como sustentáculo a ética da paridade:

“O psicanalista disponível para uma relação analítica intersubjetiva permite-se ser guiado pelo seu sentir-pensar (ver o conceito de feeling-orientation).[21] Quando em sessão, abdica de colocar-se em um locus privilegiado, despindo-se de seus paramentos e insígnias para tornar-se um igual ao analisando, deixando-se afetar pelo seu comportamento verbal e não-verbal e afetando-o com o seu. O analista interage com o cliente em mão dupla, compartilhando homóloga e complementarmente fantasmas e afetos.[22] Desaparece o espaço entre ambos; as palavras e ações repercutem imediatamente dentro do psiquismo do parceiro sem passar pela etapa intermediária da representação. O terapeuta não ‘examina’ o material psicanalítico mas vive o impacto das emoções e fantasias dentro de si mesmo, sem que nenhuma distância atenue a força do acontecer; não se coloca na sessão nem mesmo na posição de criador de condições para o desabrochar do ‘verdadeiro self’, mas se despoja de todo o seu saber e de todos os seus brasões, expondo  o seu psiquismo ao psiquismo do analisando tanto para dar quanto para receber. Com isto, consegue-se viver no consultório uma relação intersubjetiva e sobre ela se conversa, especialmente no que se refere aos dinamismos que se formam entre analista e analisando”[23].

Tenho o registro de uma terapia, parte de um artigo não publicado, que apresentarei como ilustração:

“Flávia está há 6 anos comigo. Inteligente e criativa sofria de angústias e inibições. Gosta de curtir a vida e tem uma veia artística que se manifesta nas atividades de seu tempo de lazer, no cuidado sensível com que presenteia pessoas e prepara festas. O episódio que será narrado ocorreu após cerca de um ano e meio de tratamento. Naquela época fiz o seguinte apontamento: "Flávia é controladora e onipotente. Tudo tem de acontecer segundo os seus desejos. Isto já tinha lhe sido verbalmente apontado sem qualquer efeito aparente. Alguns cuidadosos ensaios de tangenciamento de aspectos infantis de Flávia tinham resultado em veladas ameaças de pesadas críticas a certos comportamentos meus, provocando a damocliniana sensação de que qualquer mínimo deslize seria cuidadosamente armazenado como falha a oportunamente se tornar falta grave e imperdoável numa futura possível ocasião de perigo à sua dinâmica psíquica. Este sentimento de estar sendo submetido a um escrutínio crítico secreto provocava em mim uma certa tensão. Eu a achava uma pessoa interessante, apreciava trabalhar com ela, gostava dela e, no entanto, por ocasião da despedida, freqüentemente anunciava erradamente a data da sessão seguinte, adiando-a, revelando minha ambivalência em um ato falho recalcitrante e incômodo. Estes atos falhos eram por ela levados "numa boa", e dariam a impressão de não afetá-la não fosse o aparecimento, na sessão seguinte, de uma lentificação no fluxo verbal e de um maior distanciamento em relação a mim. Ao invés de tentar controlar meu comportamento de despedida, evitando o ato falho, resolvi analisá-lo para a díada terapêutica. Que pensamentos me levaram a esta decisão? Flávia era refratária a interpretações que, centradas na sua pessoa, revelassem certos aspectos de  sua dinâmica psíquica; o apontamento de  seu desejo de controle do outro não só não tinha produzido nenhum efeito de transformação como também provocara distanciamento e dificuldade de verbalização. Meu engano ao falar "até tal dia" fazia parte da dinâmica analista/analisando que havíamos construído durante nossa  experiência/vivência de relação analítica. Meu ato apontava para uma vivência da analisanda. Para ser ainda mais preciso em referência à minha decisão, posso dizer que meu comportamento, como reflexo de seu comportamento era parte de seu próprio comportamento; interpretar meu comportamento e minhas fantasias era, ao mesmo tempo, interpretá-la, pois o que estava sendo interpretado era a área transferencial/contratransferencial. Não podendo a relação ser analisada pelo pólo analisando tentar-se-ia analisá-la pelo pólo analista; as vantagens desta abordagem é que, em não afetando o seu narcisismo, minhas palavras não encontrariam a barreira de um ego ansioso e defendido. Creio também que ao deslocar o acento interpretativo para mim ela sentiu-se menos ameaçada na sua continuidade (estrutura) pessoal; a mudança, se viesse a ser realizada, dar-se-ia a partir de um plano relacional estando pois, eu mesmo incluído nesta mudança o que a acalmava no seu narcisismo e na sua solidão: havia alguém que era o seu duplo homólogo e complementar, com quem ela se identificava e que ao mudar mudava à ela e à relação, e que certamente  não se disporia a mudanças se uma catástrofe estivesse à vista. Por outro lado, em não me dividindo  em pessoa que sente e terapeuta que fala, em não me dicotomizando em intelecto e emoção, facilitava-se a permeabilização das barreiras que a separavam de seus sentimentos e emoções, propiciando um processo de integração. Estou aqui falando de processos de identificação homóloga que jogam um tão importante papel nas modificações do funcionamento psíquico e que habitualmente são pisoteados e desconsiderados, como se ou não existissem, ou não devessem existir, ou como se sua existência não tivesse nenhuma importância nas transformações próprias de um tratamento psicanalítico. Foram estes os pensamentos que me levaram a realizar uma análise da relação pela via da análise das emoções e fantasias que haviam surgido em mim a partir da própria relação. Voltemos à sessão clínica: Tendo decidido desvelar para a díada as motivações do ato falho senti-me finalmente preparado para fazê-lo: disse-lhe que na despedida anterior havia novamente me enganado quanto à data da sessão próxima e mais uma vez  estranhara tal engano, já que me aprazia tratar dela. Perguntei-me então - continuei falando - do por quê do ato falho. Na investigação introspectiva pude perceber que a sessão com ela produzia em mim uma certa tensão, origem provável de meus enganos. Mas, qual a fonte da tensão? foi a pergunta que naturalmente se apresentou. Pude então perceber que em minha mente Flávia aparecia como extremamente exigente, demandando um comportamento pessoal e psicanalítico não menos que perfeito, o que quer que isso significasse, fazendo-me "pisar em ovos". A esta colocação seguiu-se um silêncio ao mesmo tempo tenso e relaxado, um silêncio de expectativa e assimilação. Finalmente Flávia disse que ela também se sentia controlada por mim no sentido de ter de dizer sempre coisas psicanaliticamente interessantes para me comprazer, pois se assim não fizesse a mandaria embora. Explicitada a dupla exigência em retroalimentação houve uma descontração. A sessão tornou-se mais leve e a terapia tomou um rumo produtivo”.”[24]

 

Este posicionamento igualitário suscita uma questão: como pode o analista manter-se como guardião da relação terapêutica, estando nela imerso por inteiro e no mesmo nível do analisando? Não haveria o perigo de deixar-se levar por desejos, fantasias e emoções inconvenientes e incontroláveis? No quadro do comportamento interpretativo poderíamos contar com um controle superegóico para evitar transgressões perigosas. Mas no caso do comportamento co-vivencial, não seria a ética igualitária propiciadora de um desempenho incestuoso, só confiavelmente evitável na ética do cuidado?

São duas questões. Na primeira, modelos transcendentes externos ou transcendentais internalizados se confrontam com princípios imanentes. Vantagens e riscos dos dois lados: os modelos tendem a tornar rígidas as posições morais e éticas do analista dando a sensação de um maior controle superegóico sobre os impulsos inconscientes do analista, mais confiáveis que regulações imanentes. Mesmo que pudéssemos concordar com o mérito desta afirmação, que é discutível, temos de admitir uma contrapartida: a internalização de uma relação de dominação. A outra questão é o confronto entre dois princípios imanentes. Na ética do cuidado o analista está impregnado do sentimento de mãe suficientemente boa, estando pois protegido do incesto, sim, mas criando um relacionamento dual protetor, desigualdade que o analisando incorporará e carregará como identificação ao se despedir do analista. Na ética da igualdade, o analista não estando resguardado por uma postura que exclui o incesto, precisará lançar mão do recurso das insinuâncias[25], princípios orientadores imanentes que impregnam o psiquismo. As duas insinuãncias protetoras são as idéias de “finalidade terapêutica da relação” e “preservação de si mesmo em nível social e individual”. Se por um lado, a ética paritária apresenta um risco específico, por outro permite que o sujeito, ao deixar seu analista, leve incorporado em seu self uma outra experiência: a de uma relação igualitária onde não há um abaixo/acima.

Todas as experiências identificatórias acima relatadas – a de dominação/dominado, a de cuidador/cuidado, a de igual/igual – têm a sua importância. Todas elas terão certamente, em algum momento, um lugar na vida de cada um.  

Assim, à ética da responsabilidade e à ética do cuidado, acrescento a ética da paridade, multiplicando os pontos de referência do analista, habilitando-o a agir com mais flexibilidade. Cada uma destas éticas abre campos de reflexão que estão enriquecendo e continuarão a enriquecer a nossa psicanálise.

Para que o analista possa exercer a ética da igualdade, especialmente considerando a origem de sua subjeitividade, dever cuidar de si mesmo. Com isso voltamos ao princípio deste artigo onde encontramos referências ao cuidar de si mesmo de Foucault. Cada época e cada escola tem uma certa concepção do cuidado de si mesmo tendo em vista a ética a ser alcançada. No caso do analista atual o cuidado de si mesmo estará referido ao desenvolvimento da percepção de seus movimentos afetivos com seus componentes corporais, inclusive os mais sutis, o despojamento narcísico e o refinamento da capacidade de responder à vibração psicossomática do analisando com sua própria vibração.    

  

                .                          

Rio, julho de 2006.

 

Nahman Armony

                                                       

                           

 

 

REFERÊNCIAS                                               

 

 

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[1] Foucault, 2004, p. 5.
[2] Armony, 1998, p. 40-42.
[3] Freud, 1914,  p.  97.  
[4] Winnicott, 1996, p. 121.
[5] Winnicott, 1982, p. 134.
[6] Winnicott, 2000, p. 373.
[7] Ibidem, p. 369.
[8] Levinas, 1988.
[9] Buber, 1982.
[10] Ibidem, p. 39-41.
[11] Armony, op. cit., p. 18 e seguintes.
[12] Victer et al. Inédito, a ser apresentado no XXVI Congreso Latino-Americano de Psicoanalisis no Peru..
[13] Souza. Defesa e criatividade em Klein, Lacan e Winnicott IN: Winnicott e seus interlocutores. Bezerra, B. e Ortega, F.  (Org.) Rio de Janeiro: Ediouro/Relume Dumará, no prelo.
[14] Ibidem.
[15] Ibidem.
[16]Carneiro Leão; Kosovski,1995,  p. 20.
[17] Winnicott, 1944.
[18] Searles, 1965, p. 522.
[19] Ibidem The evolution of the mother transference in psychotherapy with the schizophrenic patient, p. 378.
[20] Atwood; Storolow, 1984.
[21] Searles.  op.  cit.  p. 525.
[22] Vale a pena citar o artigo de Félix GUATTARI, (Linguagem, consciência e sociedade, 1990, p. 7), que fala de um campo próximo à psicanálise, a terapia familiar: “O terapeuta engaja-se, assume riscos, não hesita em colocar na balança seus próprios fantasmas e em criar um clima paradoxal de autenticidade existencial e, no entanto, de liberdade de jogo”. 
[23] Armony. op .cit., p. 47.  
[24] Armony, artigo inédito.
[25] Ibidem, p. 18