Agradeço
a interlocução e apoio de Odette Wildhagen
A filosofia, desde o seu
aparecimento pretendeu, a partir de suas especulações, servir de guia, implícita
ou explicitamente, para o viver humano. Neste sentido, ela é, de certo modo, um
ancestral remoto da psicanálise. Na “Hermenêutica do sujeito” Foucault diz que
“tudo nos indica que na história da filosofia – mais amplamente ainda, na
história do pensamento ocidental – o gnôthi
seautón [ conhece-te a ti mesmo ] é, sem dúvida, fórmula fundadora da
questão das relações entre sujeito e verdade...”.
Sabemos todos que esta máxima atribuída por Platão a Sócrates é de grande
relevância na filosofia platônica assim como é a pedra de toque nos primórdios
e no desenvolvimento da psicanálise. Têm, porém significações diferentes. O
“conhece-te a ti mesmo” socrático-platônico refere-se a alcançar um
conhecimento de universais virtualmente existentes em cada humano. O mito que
corresponde a este preceito é o da alma que, antes de sua união com o corpo,
passeia entre as verdades absolutas e eternas, conhecendo-as, e delas se
esquecendo (aléthea) ao se encarnar
em um corpo mortal. O homem, este misto de matéria e forma, procurará rememorar
a verdade que está esquecida dentro de cada um, tarefa impossível, pois a idéia
pura e perfeita está fora do alcance de qualquer mortal que só conseguirá ter
uma pálida cópia da idéia eterna. Para alcançar tal conhecimento o indivíduo
deve praticar uma ascese apoiado em Eros, o que significa que deve “cuidar de
si” (epiméleia heautoû) e para cuidar
de si deve conhecer a si mesmo. Temos já aí um princípio recorrente que será o
chão da psicanálise, especialmente nos seus primeiros cinqüenta anos (Mais
adiante veremos que a este princípio se agregará um outro pano de fundo.) O
“conhece-te a ti mesmo” de Freud é, porém, como indiquei acima diferente do de
Sócrates. O filósofo grego afirma que as idéias verdadeiras universais
encontram-se esquecidas na alma de cada ser humano e que ao relembrá-las
encontrará os modelos para sua ação moral. Já para Freud conhecer a si mesmo é
desvelar as motivações inconscientes dos sintomas e das ações para “transformar um sofrimento neurótico em
sofrimento comum”. O conhecimento socrático almeja alcançar as essências
universais para estabelecer uma organização racional na pólis; o freudiano pretende iluminar o irracional latente humano
com uma luz racional para livrá-lo do sofrimento patológico. São duas éticas e
dois modos de subjetivação. A semelhança existente quando olhamos estes dois
gigantes a partir de um plano geral, mostra suas divergências ao examiná-las em
close-up.
Voltando a Platão e às
suas verdades eternas. Entre elas estavam as idéias de Bem, Justiça e Virtude,
modelos a serem copiados pelos homens em sua conduta na polis. Temos, pois, desde esses inícios uma ligação íntima de ética
e subjetivação. Os homens ao cuidarem de si (processo de subjetivação)
encontrariam dentro deles próprios as cópias das verdades eternas
transcendentes passando então a agir virtuosamente (eticamente) na polis.
O tratamento
psicanalítico é um processo de subjetivação para o analisando, sim, mas também
para o analista cuja subjetividade vai-se transformando em sua interação com o
analisando. Mas estou-me adiantando, pois isto que pode hoje ser dito não o
poderia nos primeiros tempos da psicanálise. Naquela época a cultura dicotômica
vigente produzia uma relação analista-analisando na qual o analista aparecia
como um ser idealizado intocável na sua perfeição, um observador inatacável e
inatingível estudando um sujeito observado que, significativamente era (e ainda
é por inércia, descuido, um laissez faire
lingüístico, um vício cultural) chamado de objeto. Dentro da dicotomia então
prevalente que separava razão e emoção desvalorizando a segunda e
supervalorizando a primeira, o analista deveria obedecer às regras do
incógnito, da neutralidade, do autoapagamento, da distancia, ficando fora do
alcance do olhar do analisando. Apenas uma voz imparcial e portentosa deveria
estar em cena realizando interpretações que falavam a verdade dos sintomas,
sonhos e atos falhos do analisando. Na subjetividade da época as
personificações de excelência psicanalítica e de fidalguia intelectual eram
colocadas em um pedestal, ficando fora do alcance dos questionamentos de
criaturas inferiores que ainda engatinhavam na busca da verdade e que, portanto
deveriam aceitar sem discussão as verdades daqueles que já tinham chegado ao Olimpo
do conhecimento. O analista e analisando penetrados por esta subjetividade
colocavam o primeiro como capaz de dizer a verdade do inconsciente do segundo;
a não aceitação desta verdade proclamada era chamada ou de resistência -- uma
espécie de má-vontade do inconsciente em conhecer a verdade – ou de reação
terapêutica negativa -- uma oposição maliciosa ao trabalho analítico. O
psicanalista aparecia como dono e sabedor da verdade do inconsciente do
analisando. Esta era a ética da época, uma ética que tinha a ver com a
subjetividade da qual a sociedade estava impregnada. Não se trata de julgar se
era uma boa ou má ética, mas sim de compreender que esta era a ética compatível
com as condições sociais e culturais dominadas pela dicotomia sujeito-objeto,
pelo cientificismo (que além de exigir exatidão, dividia o mundo em
observadores e observados), pela repressão e autoritarismo.
Na conduta kleiniana
hiperbólica o desrespeito pela subjetividade do analisando atinge o seu
ápice. A técnica kleiniana levada ao exagero
caracteriza-se por interpretações diretas de inconsciente que passam por cima
das defesas dos analisandos, não as levando em consideração. Se o analisando
não aceitava as interpretações de inconsciente estaria ou resistindo ou tendo
uma reação terapêutica negativa. As alegações do analisando não eram levadas em
conta. Ou ele se submetia às verdades do analista ou, em não agüentando,
abandonava a análise. Os que permaneciam regrediam a uma situação infantil
vivendo o papel de crianças incapazes, necessitadas de serem orientadas e
protegidas por analistas que necessariamente se tornavam figuras idealizadas. O
resultado desta situação era que ou o analisando permanecia eternamente
regredido ou, para receber sua alta, identificava-se com as verdades e principalmente
com a onipotência e onisciência do analista. O destino desta “cura” dependia do
analisando ser ou não candidato a analista. Se candidato, ao receber com a alta
analítica, autorização para clinicar, reproduzia agora como psicanalista o modo
todo-poderoso do seu mentor dando origem e prosseguimento a uma árvore
genealógica, perpetuando uma hierarquia onde se dava extremo valor à
ancestralidade e à filiação.
De que processos de
subjetivação, falamos acima? Do ponto de vista freudiano e kleiniano, as
mudanças subjetivas eram resultado de interpretações que provocavam insigths transformadores. Do que eles
não falavam, e talvez não pudessem então perceber dentro da episteme vigente
era que paralelamente aconteciam processos de internalização que promoviam
subjetivações.
Examinemos os processos
de subjetivação implicados na descrição desta técnica. Aparentemente as
interpretações produziriam um insight, uma conscientização daquilo que
pertencia ao inconsciente, promovendo uma mudança subjetiva. É possível que algo
desta ordem acontecesse, mas não como alicerce da subjetivação. Os indícios
sugerem que o suporte desta pseudo cura está relacionado a uma internalização
global e maciça do analista idealizado.
Aqui se coloca uma
questão contemporânea. Como a psicanálise atua? Seria apenas através das
interpretações? Ou também através de vivências propiciadoras de processos de
internalização não representacionais? Vários autores e escolas analíticas
enfatizam a importância da interação analítica em nível psicossomático. Entre eles
encontramos Winnicott com seus conceitos de holding, handling, mutualidade,
identificações cruzadas; Searles com o seu conceito de simbiose terapêutica;
Stolorow com a teoria da intersubjetividade enfatizando a formação de novos
“princípios organizadores da experiência” decorrentes da relação
analista-analisando. Precisamos, pois acrescentar aos processos de subjetivação
derivados da interpretação (e aqui estão entre outros a interpretação mutativa,
a ocupação provisória do id pelo ego, a conscientização das motivações
inconscientes, a parte explicativa da internalização transmutadora) outros
dependentes da relação direta dos psiquessomas das partes envolvidas (que chamo
de co-vivência), onde a palavra-representação, um símbolo que substitui, que
fica no lugar de, cede sua primazia à apresentação de coisa, ao interjogo
psicossomático analista/analisando; a palavra é então parte da corporeidade, um
símbolo de 1ª ordem que pertence ao conjunto do comportamento e da comunicação
expressiva, contrastando com a comunicação da palavra-símbolo de 2ª ordem, uma
representação afastada do corpo.
Como sempre essas transformações pertencem a um contexto cultural global:
des-hierarquização; superação das dicotomias sujeito-objeto, corpo-alma,
observador-observado; desidealização das figuras de autoridade; queda dos
modelos; relativização da importância da representação; quebra da necessidade
de unidade e unificação.
Precisei me adiantar para
poder examinar um modo de subjetivação impossível de ser admitido nos primeiros
50 ou 60 anos de psicanálise. Refiro-me aos processos de internalização
dependentes do aspecto de vivência psicossomática compartilhada (co-vivencial)
na relação analista-analisando. Como se trata de uma questão atual de ética e
subjetivação serei mais minucioso. Utilizarei o léxico winnicottiano para expor
minhas idéias, começando, porém, com uma concepção de Freud que certamente
facilitará a compreensão dos conceitos winnicottianos de introjeção e
incorporação. Quero relembrar que não estaremos mais no terreno da
interpretação representacional, mas sim na comunicação psicossomática vivencial
mais pertinente à pós-modernidade.
No artigo de Freud “Sobre
o narcisismo: uma introdução” lemos a seguinte frase: “Ele pode ter desviado inteiramente o seu interesse sexual dos seres
humanos; contudo pode tê-lo sublimado num interesse mais elevado pelo divino,
pela natureza, ou pelo reino animal, sem que sua libido tenha sofrido
introversão até suas fantasias ou retorno ao seu ego[sublinhado meu]”.
Por esta frase vemos que Freud admite a existência de um “lócus” egóico (retorno
ao ego) e de uma “lócus” de fantasia (introversão até as suas fantasias). Ao retornar
ao ego o objeto internalizado é canibalizado, assimilado, desaparecendo como
objeto e passando a fazer parte da pessoa. Retornando à zona de fantasia o
objeto se mantém como tal, destacado do ego, podendo ser reconhecido como um
objeto interno.
Confrontando as
colocações de Winnicott com a concepção acima de Freud entendo que a
incorporação ocorre quando o objeto é assimilado pelo self, desaparecendo como
objeto, enquanto que introjeção refere-se a uma internalização em nível de
fantasia, permanecendo como um objeto interno não incorporado. Para facilitar
nossa reflexão vou concretizá-la imaginando uma topografia onde a incorporação
se dá na zona do ego e a introjeção se dá na zona dos objetos que sendo
internos, são objetos da fantasia. No artigo “Child Analysis in the Latency
Period” (estou usando o original inglês, pois há um pasmoso erro de tradução na
edição brasileira de 1983, da Editora Artes Médicas, onde latency é traduzido
por lactência, e não por latência) Winnicott distingue claramente introjeção de
incorporação: “The latency child is ready
for introjecting, but not for incorporating – ready to take in whole elements
from chosen persons but not ready to eat or be eaten, or merge in a intimate
relationship involving instinct”.
Traduzindo: “A criança na latência está
preparada para introjetar, mas não para incorporar – pronta para apropriar-se
de elementos inteiros de pessoas escolhidas, mas não para comer ou ser comida
ou se fundir em um relacionamento íntimo envolvendo instinto”. Comer, ser
comido, fundir, referem-se a uma assimilação pelo psiquessoma enquanto que
introjeção significa interiorizar figuras em sua globalidade sem assimilá-las.
Não é difícil associar a introjeção a uma operação de falso self que é o que
Winnicott nos diz em outro artigo seu:
“Através deste falso self o lactente constrói um conjunto de
relacionamentos falsos (um cenário falso de relacionamentos), e por meio de
introjeções pode chegar até uma aparência de ser real, de modo que a criança
pode crescer se tornando exatamente como a mãe, ama-seca, tia, irmão ou quem
quer que no momento domine o cenário.”
Este falso self,
resultado de introjeção, não tem suas raízes no corpo, no psiquessoma, no âmago
do ser, sendo assim sentido como
irreal. A introjeção aqui tem um caráter de permanência produzindo uma pessoa
falso self que assim permanecerá
durante sua vida. Podemos também encontrar introjeções transitórias. Um púbere
que assista a um filme de mocinho e bandido poderá sair do cinema sentindo-se
forte, poderoso e benévolo como o mocinho. Esta sensação perdurará por algum
tempo e depois se dissolverá. Quando fizemos o exame da dinâmica da relação
analítica kleiniana extremada, encontramos uma introjeção de caráter
permanente, produtora de um falso self.
Existem, porém introjeções que se apóiam em incorporações anteriores e que têm
uma função positiva no funcionamento do psiquismo. Winnicott:
“O que queremos então? Queremos ser comidos, não magicamente
introjetados. E não há masoquismo algum neste ponto. Ser comida é o desejo e na
verdade a necessidade de uma mãe nos primeiros estágios da criação de um bebê.
Isto significa que os que não são canibalisticamente atacados tendem a
sentir-se fora do alcance dos atos reparadores e restituidores dos demais, ou
seja, fora da sociedade. Se formos usados até o fim, devorados e roubados,
somente então poderemos aceitar minimamente que nos introjetem de modo mágico,
e que sejamos colocados na prateleira de conservas do mundo interno de alguém.”
Winnicott está falando do
incômodo do analista, mas não tenho dúvida de que a “mínima aceitação” do
analista em ser introjetado pode ser considerada da ordem do saudável. Esta
idéia mais ou menos se confirma no trecho que cito a seguir: “Materiais percebidos como bons,
introjetados para fins de enriquecimento e estabilização da personalidade
(conjunto C). Material percebido como mau, introjetado no intuito de ser
controlado (conjunto C)”.
Falar de enriquecimento e estabilização da personalidade é falar de uma
introjeção boa. Podemos relacionar esta introjeção boa ao falso self produzido
pelo verdadeiro self para protegê-lo. Aqui, o maestro da identificação
introjetiva é o verdadeiro self o que dá uma raiz corporal ao falso self,
mantendo sua subordinação ao verdadeiro self. O ambiente terapêutico deve
propiciar estes processos de incorporação e de introjeção self-sintônicos. Para
isso o analista deve favorecer o aparecimento de um clima em que a relação
co-vivencial se torne possível. As concepções éticas de dois filósofos da
atualidade, Levinas e Buber, podem nos ajudar a compor este clima.
Para Levinas
a ética precede a ontologia. O encontro com o outro é inaugural e anterior a
qualquer fala. Este outro é radicalmente outro, pura diferença, um rosto
infinitamente incognoscível, em relação ao qual o eu tem uma responsabilidade
primária, imediata, antes de qualquer conhecimento. Sou responsável pelo rosto
que, emergindo em meu mundo, me olha. Não interessa quem ele é, o que pensa, o
que sente. Sua simples existência me torna responsável. É no exercício desta
responsabilidade que se estabelece a proximidade. Uma responsabilidade que não
exige reciprocidade. Ao contrário, sou também responsável pela sua própria
responsabilidade. Trata-se de uma responsabilidade total e absoluta.
Sem querer simplificar o
pensamento de Levinas, mas usando-o para enriquecer os conceitos analíticos que
estou apresentando posso pensar que um bebê (e um analisando regredido) é um
ser radicalmente outro para a mãe (Regina Orth de Aragão inventa a palavra
“estrangeiridade”). Por mais que ela sonhe com seu futuro filho e por mais que
se excite alegremente nas sessões de ultra-som, ainda assim, ao nascer, será um
E.T. jamais visto anteriormente que precisará ser aceito, acolhido e amado
incondicionalmente, independentemente de suas formosuras e fealdades, de suas
perfeições e deficiências. Esta
aceitação incondicional e essa assunção de uma responsabilidade total criarão
uma proximidade necessária ao seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo colocará o
Cuidador em posição privilegiada: uma mãe (analista) suficientemente boa
permite que seu filho (analisando) realize suas potencialidades no social, mas
mantém uma posição de poder, de superioridade, de credora dos agradecimentos do
filho mesmo que nunca venha a reivindicá-los.
Em Martim Buber
encontraremos uma ética que nos permite pensar em uma relação co-vivencial que,
ao contrário da anterior, é igualitária, não-hierárquica. Ele enfatiza aqueles
encontros em que o eu está aberto “com todos os poros de meu corpo” a toda
“recepção” e “percepção” que vem do “tu”. Citação:
“Nenhum daqueles dois
precisa renunciar à sua opinião; só que fazendo eles algo de improviso e
acontecendo-lhes de improviso este algo que se chama união, eles penetram num
reino onde não é mais válida a lei da opinião... O encontro já se tinha dado
anteriormente quando, cada um em sua alma, voltou-se para-o-outro, de maneira
que, daqui por diante, cada um, tornando o outro presente, falava-lhe e a ele
se dirigia verdadeiramente. (...) Assim
sendo, mesmo que se possa prescindir da fala, da comunicação, há contudo um
elemento que parece pertencer indissoluvelmente à constituição mínima do
dialógico, de acordo com seu próprio sentido: a reciprocidade da ação interior.
Dois homens que estão dialogicamente ligados devem estar obviamente voltados
um-para-o-outro.”
A ética de Buber é
compatível com a idéia de uma relação co-vivencial sem hierarquia. Nesta
modalidade o analista deixa de ser a mãe suficientemente boa que proporciona um
ambiente facilitador da expansão do self, para tornar-se um ser humano comum
que simplesmente interage com o analisando em nível de igualdade, podendo ter
sentimentos, emoções e fantasias, permitindo-se mesmo expô-los quando de sua
emergência. Naturalmente que há um timing a ser respeitado, que é o que faz do
analista o guardião da relação terapêutica. Porém, este cuidado não coloca o
analista numa posição hierarquicamente superior, pois não há modelos a serem
seguidos nem posições a serem ocupadas. A posição em que o analista se encontra
é simétrica à do analisando. A diferença é que, ao invés de vigorarem modelos
na zona psíquica dos objetos e fantasias, subsistem insinuâncias
incorporadas ao psiquessoma (lembremo-nos da zona freudiana do ego) impregnando
todo o psiquismo e cuja ação é imanente, não dependendo de uma reflexão.
Evidentemente a relação
simétrica passível de acontecer no momento do relacionamento intersubjetivo
está envolta por uma relação assimétrica objetiva, chamada por Searles de real,
que se estabelece no contrato, quando ao analista --- com suas credenciais
profissionais reconhecidas ---- é delegada a responsabilidade de ajuda na
resolução dos problemas e atenuação dos sofrimentos do analisando. Esta
responsabilidade objetiva do analista precisará ser transformada em
insinuâncias subjetivas no momento da relação co-vivencial para não perturbar a espontaneidade da relação..
Octávio Souza em seu artigo Defesa e criatividade em Klein, Lacan
e Winnicott realiza uma intensa pesquisa
especialmente em torno dos conceitos de trauma, defesa, ego, criatividade,
desejo e necessidade. Enquanto as teorias kleiniana e lacaniana convidam o
analista a exercer uma ética da responsabilização, a teorização winnicottiana
induz uma outra ética, a ética do holding e do cuidado. Tentando transmitir
aquilo que me assaltou como mais essencial no artigo de Octávio (e pedindo a
ele desculpas por deixar de apresentar aspectos importantíssimos de suas
reflexões que, no entanto podem ser lidas no artigo original) direi que só se
pode responsabilizar o analisando (e o bebê) pela sua escolha quando a
capacidade de desejar (que inclui defesas) está presente. Citando Octávio de
Souza:
“Firmar pé na noção de escolha para compreender a dinâmica defensiva
entre sujeito e outro convida a uma apreciação do sujeito em termos de
ajuizamento do valor daquilo que ele faz e daquilo que não faz. Nesta
perspectiva, a condução do tratamento psicanalítico é orientada pelo que se
pode chamar de uma ética da responsabilidade que visa a chamar o sujeito a se
responsabilizar por suas escolhas.”
Winnicott fala de uma
fase do desenvolvimento em que ainda não há desejo, mas sim necessidades (não
existem defesas, mas sim desamparo) que precisam ser acolhidas para que possa
surgir a capacidade de desejar. Mesmo então persiste o plano da necessidade que
continua pedindo do analista holding e handling provocando uma atitude ética de
cuidado. Diz Octávio:
“Na prática analítica, antes que a escolha defensiva do analisando entre
em linha de consideração, há uma outra escolha que deve ser feita: a escolha do
analista entre a insistência no reconhecimento do desejo com vistas à responsabilização
do sujeito, por um lado, e, por outro lado, a dedicação ao cuidado que a
aproximação empática do sofrimento pode propiciar. É importante que ele esteja
sempre apto a realmente escolher entre as duas sem se deixar nortear por
mandamentos éticos excessivamente rígidos. A ética do psicanalista deve ser a
ética da situação clínica que encontra.”
Esta concepção ética
aplicada à situação analítica corresponde a uma ética filosófica abrangente
contemporânea, tal como é exposta por Carneiro Leão:
“O desafio da ética hoje não está em
uma abstração nevoenta. O desafio concreto da ética está em entregar-se toda à
espera do inesperado. Uma espera que vive e vivifica a vida do pensamento.
Pois, pensar, como pensam os pensadores, não é saber, como sabem os conhecedores.
É, perseverando na “espera do inesperado”, deixar-se transformar pelo vigor
originário do não saber.”
Qual o meu despretencioso
aporte? É acrescentar uma ética da igualdade às duas anteriores. Chegarei lá
ordenando, revisando e acrescentando:
Ética da responsabilidade
(responsabilização) – referida à concepção edípica, ao homem culpado da
modernidade, à idéia de psiquismo e mente isolados, ao comportamento
interpretativo, é evidentemente dicotômica já que o analista entrega ao
analisando a responsabilidade de seus sintomas, condutas e desejos. Faz parte
de uma episteme que, mesmo ao internalizar as concepções teóricas, o faz na
zona dos objetos da fantasia, onde age como imperativo categórico (idéias
interiores transcendentais) no trabalho do psicanalista.
No comportamento
co-vivencial encontramos duas éticas. Na primeira, exposta por Octávio Souza, o
analista se apresenta como possuidor da capacidade de criar um ambiente
suficientemente bom para o desenvolvimento do verdadeiro self do analisando. Em
termos de identificação, o que é incorporado e/ou introjetado é uma relação
assimétrica em que o analisando ocupa uma posição inferior. Não há uma troca
entre dois sujeitos de mesma hierarquia, mas uma relação intersubjetiva de
Cuidador para Cuidado. Esta ética tem uma evidente inspiração em Winnicott
especialmente nos conceitos de holding, handling, concern. Darei um exemplo da
própria clínica winnicottiana. Trata-se de uma mulher de 40 anos:
“O detalhe que escolhi para descrição tem a ver com a necessidade
absoluta que esta paciente tinha, de tempos em tempos, de ficar em contato
comigo(...)Uma variedade de intimidades foi tentada, principalmente aquelas que
dizem respeito à alimentação e ao manejo de bebês. Houve episódios violentos, e
acabou por ela e eu ficarmos juntos, eu com a cabeça dela em minhas mãos. Sem
uma ação deliberada por parte de qualquer de nós, desenvolveu-se um ritmo de
embalo. O ritmo era bastante rápido cerca de 70 por minuto (cf. batimentos
cardíacos) e tive algum trabalho para adaptar-me a tal ritmo. Sem embargo, lá
nos achávamos com a mutualidade expressa em termos de um leve, mas persistente
movimento de embalo. Sem palavras, estávamos nos comunicando um com o outro, e
isto estava se dando em um nível de desenvolvimento que não exigia que a
paciente tivesse maturidade mais avançada daquela que se descobrira possuindo
na regressão à dependência da fase da sua análise” (p. 200).
Aqui Winnicott age como
se mãe fora da paciente numa clara posição assimétrica, necessária para aquele
momento da terapia.
A outra ética que por
falta de melhor inspiração chamarei de “ética da igualdade hierárquica no campo
intersubjetivo” produz uma relação na qual analista e analisando encontram-se
num mesmo patamar hierárquico, por mais que a experiência analítica e o
conhecimento teórico pendam para o lado do analista. Estão ali emparelhados
frente a frente, dois seres humanos de mesmo coturno, com as mesmas
prerrogativas, com o mesmo alvará para o acesso à subjetividade do outro, com
palavras de mesma legitimidade, com o mesmo direito a dúvidas e
questionamentos. O analista renuncia aos seus signos e rituais de poder e
torna-se um ser humano comum capaz de, por sua experiência e conhecimento,
oferecer um auxílio mais o menos pertinente ao momento que o analisando está
vivendo. Winnicott não está alheio a esta ética, apesar de nele predominar a
ética do cuidado. Já Searles aproxima-se mais da ética da igualdade:
“Não é demais dizer que, em resposta à transferência do paciente
esquizofrênico, o terapeuta não só se comporta como os adultos significativos
da infância do paciente, mas experimenta muito intimamente, dentro de si
próprio, ativada pela transferência do paciente, a verdadeira espécie de
profundos e intensos sentimentos conflitivos que estavam em jogo, embora
reprimidos, nos adultos do passado, assim como experimenta, através dos
mecanismos de projeção e introjeção na relação entre si próprio e o paciente,
as intensas e conflituosas emoções que formaram a base seminal da psicose na
criança, anos antes.”
Aqui persistem as figuras
do Cuidador e do Cuidado distribuídas entre analista e analisando. O analista é
geralmente o Cuidador, mas poderá ser concomitantemente ou sucessivamente o
Cuidado, assim como o analisando geralmente Cuidado poderá também ser o
Cuidador. Aproximando-se ainda mais da paridade Searles fala do entroncamento
da relação real com a relação transferencial:
“...e eu sugiro que uma segunda e saudável fonte de sentimentos
partilhados pelo terapeuta é o gradual desenvolvimento da relação real, a qual
tem seu próprio curso relacionado e paralelo, porém não inteiramente abrangido
pelo gradual desenvolvimento da relação transferencial através dos anos de
trabalho conjunto.”
A teoria psicanalítica da
intersubjetividade de Stolorow coloca ainda mais claramente a igualdade das
posições de analista e analisando:
“A psicanálise procura iluminar o fenômeno que emerge num campo
psicológico especifico constituído pela interseção de duas subjetividades, a do
paciente e a do psicanalista. Portanto, por essa perspectiva, a psicanálise é
vista como sendo uma ciência da intersubjetividade, que volta sua atenção para
o entrelaçamento entre os mundos subjetivos diferentemente organizados do
observador e observado (...) a psicanálise é a única entre as ciências na qual
o observador é também o observado.”
Reapresentarei com
algumas alterações atualizadoras um trecho de meu livro “Borderline: uma outra
normalidade”, onde exponho a relação de intersubjetividade que tem como
sustentáculo a ética da paridade:
“O psicanalista disponível para uma relação analítica
intersubjetiva permite-se ser guiado pelo seu sentir-pensar (ver o conceito de
feeling-orientation).
Quando em sessão, abdica de colocar-se em um locus privilegiado, despindo-se de
seus paramentos e insígnias para tornar-se um igual ao analisando, deixando-se
afetar pelo seu comportamento verbal e não-verbal e afetando-o com o seu. O
analista interage com o cliente em mão dupla, compartilhando homóloga e
complementarmente fantasmas e afetos.
Desaparece o espaço entre ambos; as palavras e ações repercutem imediatamente
dentro do psiquismo do parceiro sem passar pela etapa intermediária da
representação. O terapeuta não ‘examina’ o material psicanalítico mas vive o
impacto das emoções e fantasias dentro de si mesmo, sem que nenhuma distância
atenue a força do acontecer; não se coloca na sessão nem mesmo na posição de
criador de condições para o desabrochar do ‘verdadeiro self’, mas se despoja de
todo o seu saber e de todos os seus brasões, expondo o seu psiquismo ao psiquismo do analisando
tanto para dar quanto para receber. Com isto, consegue-se viver no consultório
uma relação intersubjetiva e sobre ela se conversa, especialmente no que se
refere aos dinamismos que se formam entre analista e analisando”.
Tenho o registro de uma
terapia, parte de um artigo não publicado, que apresentarei como ilustração:
“Flávia está há 6 anos comigo. Inteligente e criativa sofria de angústias
e inibições. Gosta de curtir a vida e tem uma veia artística que se manifesta
nas atividades de seu tempo de lazer, no cuidado sensível com que presenteia
pessoas e prepara festas. O episódio que será narrado ocorreu após cerca de um
ano e meio de tratamento. Naquela época fiz o seguinte apontamento:
"Flávia é controladora e onipotente. Tudo tem de acontecer segundo os seus
desejos. Isto já tinha lhe sido verbalmente apontado sem qualquer efeito
aparente. Alguns cuidadosos ensaios de tangenciamento de aspectos infantis de
Flávia tinham resultado em veladas ameaças de pesadas críticas a certos
comportamentos meus, provocando a damocliniana sensação de que qualquer mínimo
deslize seria cuidadosamente armazenado como falha a oportunamente se tornar
falta grave e imperdoável numa futura possível ocasião de perigo à sua dinâmica
psíquica. Este sentimento de estar sendo submetido a um escrutínio crítico
secreto provocava em mim uma certa tensão. Eu a achava uma pessoa interessante,
apreciava trabalhar com ela, gostava dela e, no entanto, por ocasião da
despedida, freqüentemente anunciava erradamente a data da sessão seguinte,
adiando-a, revelando minha ambivalência em um ato falho recalcitrante e
incômodo. Estes atos falhos eram por ela levados "numa boa", e dariam
a impressão de não afetá-la não fosse o aparecimento, na sessão seguinte, de
uma lentificação no fluxo verbal e de um maior distanciamento em relação a mim.
Ao invés de tentar controlar meu comportamento de despedida, evitando o ato
falho, resolvi analisá-lo para a díada terapêutica. Que pensamentos me levaram
a esta decisão? Flávia era refratária a interpretações que, centradas na sua
pessoa, revelassem certos aspectos de
sua dinâmica psíquica; o apontamento de
seu desejo de controle do outro não só não tinha produzido nenhum efeito
de transformação como também provocara distanciamento e dificuldade de
verbalização. Meu engano ao falar "até tal dia" fazia parte da
dinâmica analista/analisando que havíamos construído durante nossa experiência/vivência de relação analítica.
Meu ato apontava para uma vivência da analisanda. Para ser ainda mais preciso
em referência à minha decisão, posso dizer que meu comportamento, como reflexo
de seu comportamento era parte de seu próprio comportamento; interpretar meu
comportamento e minhas fantasias era, ao mesmo tempo, interpretá-la, pois o que
estava sendo interpretado era a área transferencial/contratransferencial. Não
podendo a relação ser analisada pelo pólo analisando tentar-se-ia analisá-la
pelo pólo analista; as vantagens desta abordagem é que, em não afetando o seu
narcisismo, minhas palavras não encontrariam a barreira de um ego ansioso e
defendido. Creio também que ao deslocar o acento interpretativo para mim ela
sentiu-se menos ameaçada na sua continuidade (estrutura) pessoal; a mudança, se
viesse a ser realizada, dar-se-ia a partir de um plano relacional estando pois,
eu mesmo incluído nesta mudança o que a acalmava no seu narcisismo e na sua
solidão: havia alguém que era o seu duplo homólogo e complementar, com quem ela
se identificava e que ao mudar mudava à ela e à relação, e que certamente não se disporia a mudanças se uma catástrofe
estivesse à vista. Por outro lado, em não me dividindo em pessoa que sente e terapeuta que fala, em
não me dicotomizando em intelecto e emoção, facilitava-se a permeabilização das
barreiras que a separavam de seus sentimentos e emoções, propiciando um
processo de integração. Estou aqui falando de processos de identificação
homóloga que jogam um tão importante papel nas modificações do funcionamento
psíquico e que habitualmente são pisoteados e desconsiderados, como se ou não
existissem, ou não devessem existir, ou como se sua existência não tivesse
nenhuma importância nas transformações próprias de um tratamento psicanalítico.
Foram estes os pensamentos que me levaram a realizar uma análise da relação
pela via da análise das emoções e fantasias que haviam surgido em mim a partir
da própria relação. Voltemos à sessão clínica: Tendo decidido desvelar para a
díada as motivações do ato falho senti-me finalmente preparado para fazê-lo:
disse-lhe que na despedida anterior havia novamente me enganado quanto à data
da sessão próxima e mais uma vez
estranhara tal engano, já que me aprazia tratar dela. Perguntei-me então
- continuei falando - do por quê do ato falho. Na investigação introspectiva
pude perceber que a sessão com ela produzia em mim uma certa tensão, origem
provável de meus enganos. Mas, qual a fonte da tensão? foi a pergunta que
naturalmente se apresentou. Pude então perceber que em minha mente Flávia
aparecia como extremamente exigente, demandando um comportamento pessoal e
psicanalítico não menos que perfeito, o que quer que isso significasse,
fazendo-me "pisar em ovos". A esta colocação seguiu-se um silêncio ao
mesmo tempo tenso e relaxado, um silêncio de expectativa e assimilação. Finalmente
Flávia disse que ela também se sentia controlada por mim no sentido de ter de
dizer sempre coisas psicanaliticamente interessantes para me comprazer, pois se
assim não fizesse a mandaria embora. Explicitada a dupla exigência em
retroalimentação houve uma descontração. A sessão tornou-se mais leve e a
terapia tomou um rumo produtivo”.”
Este posicionamento
igualitário suscita uma questão: como pode o analista manter-se como guardião
da relação terapêutica, estando nela imerso por inteiro e no mesmo nível do
analisando? Não haveria o perigo de deixar-se levar por desejos, fantasias e
emoções inconvenientes e incontroláveis? No quadro do comportamento
interpretativo poderíamos contar com um controle superegóico para evitar
transgressões perigosas. Mas no caso do comportamento co-vivencial, não seria a
ética igualitária propiciadora de um desempenho incestuoso, só confiavelmente
evitável na ética do cuidado?
São duas questões. Na
primeira, modelos transcendentes externos ou transcendentais internalizados se
confrontam com princípios imanentes. Vantagens e riscos dos dois lados: os
modelos tendem a tornar rígidas as posições morais e éticas do analista dando a
sensação de um maior controle superegóico sobre os impulsos inconscientes do
analista, mais confiáveis que regulações imanentes. Mesmo que pudéssemos
concordar com o mérito desta afirmação, que é discutível, temos de admitir uma
contrapartida: a internalização de uma relação de dominação. A outra questão é
o confronto entre dois princípios imanentes. Na ética do cuidado o analista
está impregnado do sentimento de mãe suficientemente boa, estando pois
protegido do incesto, sim, mas criando um relacionamento dual protetor,
desigualdade que o analisando incorporará e carregará como identificação ao se
despedir do analista. Na ética da igualdade, o analista não estando resguardado
por uma postura que exclui o incesto, precisará lançar mão do recurso das
insinuâncias,
princípios orientadores imanentes que impregnam o psiquismo. As duas
insinuãncias protetoras são as idéias de “finalidade terapêutica da relação” e
“preservação de si mesmo em nível social e individual”. Se por um lado, a ética
paritária apresenta um risco específico, por outro permite que o sujeito, ao
deixar seu analista, leve incorporado em seu self uma outra experiência: a de
uma relação igualitária onde não há um abaixo/acima.
Todas as experiências
identificatórias acima relatadas – a de dominação/dominado, a de
cuidador/cuidado, a de igual/igual – têm a sua importância. Todas elas terão certamente,
em algum momento, um lugar na vida de cada um.
Assim, à ética da
responsabilidade e à ética do cuidado, acrescento a ética da paridade,
multiplicando os pontos de referência do analista, habilitando-o a agir com
mais flexibilidade. Cada uma destas éticas abre campos de reflexão que estão
enriquecendo e continuarão a enriquecer a nossa psicanálise.
Para que o analista possa
exercer a ética da igualdade, especialmente considerando a origem de sua
subjeitividade, dever cuidar de si mesmo.
Com isso voltamos ao princípio deste artigo onde encontramos referências ao cuidar de si mesmo de Foucault. Cada
época e cada escola tem uma certa concepção do cuidado de si mesmo tendo em
vista a ética a ser alcançada. No caso do analista atual o cuidado de si mesmo
estará referido ao desenvolvimento da percepção de seus movimentos afetivos com
seus componentes corporais, inclusive os mais sutis, o despojamento narcísico e
o refinamento da capacidade de responder à vibração psicossomática do
analisando com sua própria vibração.
.
Rio, julho de 2006.
Nahman Armony
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