AS SUTILEZAS ENCANTATÓRIAS DO AMOR


                                                               

Uma caricatura: imaginemos um inglês do século XIX fazendo a corte a uma dama: nada de baboseiras românticas como luares, flores, pequenos mimos, palavras doces, etc. Não! Tudo objetivo, sempre uma conversa razoável sobre algum assunto concreto. E, subitamente, após muito colóquio a dois, num assomo de coragem, o cavalheiro, titubeante diz: “Quer casar comigo?” e diante da reação de falsa surpresa da dama gagueja um “eu te amo”. A dama, que já esperava com certa impaciência este episódio, num desmaio, diz: “oh, sim”. Consumado o ritual a dama passa a pertencer ao cavalheiro como um troféu, um móvel, uma serviçal que deverá administrar a sua casa e prontamente atender aos desejos de seu amo. É claro que esta é a atitude subjetiva do cavalheiro. A dama certamente tem outros planos e recursos para pô-los em prática. Mas o que está nos interessando aqui é a mentalidade do cavalheiro e logo saberemos por quê. Um razoável exemplo e uma aceitável introdução para o que se segue é a figura de Mr. Higgins do musical “My fair lady”, por sua vez baseada na peça Pigmalião de Bernard Shaw que se inspirou num relato da mitologia romana. Mr. Higgins pode ser tomado como o extremo do homem puramente masculino, objetivo, direto, lacônico, definitivo, irrecorrível. O musical termina com uma expressiva fala de Higgins: “Eliza, traga-me os chinelos”.

Características semelhantes tinha o namorado de uma cliente minha. Quando ela reclamava uma manifestação de afeto ele respondia: “Mas eu já não disse uma vez que te amo? Para que repetir algo que já está estabelecido, que já sabemos?” Ele evidentemente não se dava conta da insegurança que por vezes acometia a sua namorada, nem de sua necessidade de reafirmação do amor, nem da importância de se sentir cortejada, do que isto significava para o reflorescimento de um modo de viver a vida estética e poeticamente, própria do feminino. Os olhos da mulher embelezam e arredondam a vida que os olhos do homem esquematizam. Evidentemente esta é uma situação que vem mudando. Já não estamos na época vitoriana onde Mr. Higgins não precisava se importar com os sentimentos de Eliza Doolittle que, embora paupérrima, inculta, com modos grosseiros, guardava uma potencial sensibilidade feminina. Naquela época, a dependência da mulher era determinada pela institucionalização social, e o homem não precisava se preocupar em entendê-la, percebê-la, senti-la, para mantê-la atrelada a si. Hoje a situação é outra. Cada vez mais mulheres exigem ser compreendidas em sua sensibilidade feminina para permanecer ao lado do companheiro. Elas necessitam de pequenas atenções, elogios sinceros, precisam ser percebidas em seus detalhes, em suas faceirices, em suas variações, em sua potência. No filme “Nova York, eu te amo” ainda em cartaz (estou escrevendo na 2ª semana de 2010) há um episódio em que uma mulher sai de um restaurante, encontra um homem numa calçada adjacente e reclama que é invisível para o marido, pois este não percebe os recursos de sedução que ela emprega para chamar a sua atenção. Na cena seguinte temos o mesmo casal --- e agora sabemos que o homem da calçada é na realidade seu marido --- na mesa do restaurante com o esposo prestando atenção nas vibrações sensuais da mulher, entrando no clima erótico proposto por ela. A mulher vitoriana, transformada em objeto definitivamente conquistado e possuído ficava invisível na sua condição feminina, o que hoje é cada vez menos admitido. O homem, na necessidade de compreender o universo da mulher, acaba por adquirir parte da riqueza do feminino, ficando muito mais ligado no sensível, mais atento às minudências estéticas do mundo, mais tocado pela beleza das coisas, da terra, do universo. Há um equilíbrio maior na união do homem e da mulher, ela desenvolvendo o masculino e ele o feminino.

                            Nahman Armony 
 
 Primeira publicação na revista CARAS.                 

TRANSFORMAÇÕES AMOROSAS NA PASSAGEM DO MILÊNIO (do livro "O Homem Transicional")


        

            Almodovar e Bertolucci são cineastas visionários. O que não significa que devamos nos descartar de suas alucinações fílmicas. Pelo contrário, respeitando as proporções, podemos colocá-los na série de fantásticos visionários como Nietzsche, Van Gogh, Marx, Freud e outros. Fica a lição de que a função das visões antecipatórias não é cumprirem-se integralmente, mas sim indicar uma direção de pensamento/realização, influindo na própria afeiçoamento desta direção, apresentando pois um valor de idealidade inalcançácel e um valor pragmático de combate.

            O filme de Almodovar explicita a sua questão no próprio título: “A lei do desejo”. Embora de um modo diferente, esta é também a questão de Bertolucci. Ambos cinematografam os seus próprios desejos de ultrapassamento das barreiras impedientes da renovação dos avatares do desejo. No mundo ficcional fílmico, estas barreiras, embora presentes, são transpostas, para alegria da imaginação daqueles que comungam do desejo de um mundo aberto a todas as realizações ecologicamente singulares.

            As sensíveis antenas destes artistas captam as múltiplas direções dos ventos de transformação. Mesmo que estranhemos tais direções, trata-se de uma estranheza que entranha um familiar, pois estas mesmas antenas existem em todos nós, mais ou menos ocultas, recolhidas, desativadas seja por desatenção, medo, insuficiente élan, ou o que mais. Muito ganharíamos com a ativação e reativação destes radares. E esta, creio eu, é uma das funções da obra de arte. Veremos, pois o que estes dois realizadores de cinema podem despertar em nós.

            “A lei do desejo” de Pedro Almodovar contracena com a família tradicional, composta de marido, esposa e filhos; “Beleza roubada” de Bertolucci tem por interlocução a setorização impermeável e dura das várias manifestações do afeto: sexualidade, amorosidade, afeição, paixão, sedução, encantamento, jogo amoroso. Esta setorização impede o deslizamento fluido, a mistura líquida, o entrelaçamento, o entremeiamento destes aspectos afetivos, situação da qual Lucy escapa inserindo-se no devir.

            Na “Lei do desejo”, realizado em 1986, o personagem central é Pablo, diretor de cinema e homossexual. Tem um amante, Juan, e está sendo assediado por Antônio que acaba por se tornar seu amante. Seus sentimentos por ambos e por cada um deles, são deslizantes, obedecem à lei do desejo, à mutável cartografia dos afetos. Mudam e se transformam como muda o tempo. Sua paixão escorrega de um para outro. Estas manifestações amorosas\sexuais de sua afetividade, marcadas por uma variação contínua, nós as podemos colocar, apesar de sua importância, na periferia de sua vida, quando consideramos um outro aspecto de seu viver: refiro-me aos afetos não-sexualizados de suas relações familiares. Aqui está a maior originalidade do filme. Pedro Almodovar constrói uma família absolutamente insólita, composta por um homossexual, por sua irmã trans-sexual (originalmente um irmão) e por uma menina de 11 anos. Apesar de sua estranha constituição, é uma família amorosa ligada por fortes laços de afeto, companheirismo, compreensão e apoio mútuo. A menina, tempos  atrás, tinha sido deixada pela mãe com este peculiar casal. Há uma cena em que a mãe verdadeira vem buscar a filha, e esta prefere, apesar da insistência autoritária da mãe, continuar com sua família adotada que, pelas qualidades já expostas, tornou-se sua família desejada, sua verdadeira família. O exagero na construção dos personagens, onde se inclui uma relação incestuosa prévia do irmão trans-sexual com o pai, é exemplar da  liberdade imperativa (aporia) pós-moderna do desejo, e dos possíveis direcionamentos a serem dados à lei do desejo. A chance de alcançar um equilíbrio, capaz de tornar a vida mais leve, torna-se maior quanto temos à nossa disposição várias formas de organizar a vida e os afetos. É interessante observar os caminhos de realização e equilibração de afetos encontrados por Pablo: parte de sua amorosidade, a não sexualizada, está colocada na família, onde o pêndulo tende mais para a estabilidade, e parte colocada na sua relação com os amantes, onde o pêndulo inclina-se para o deslizamento. Pablo realizou uma dissociação entre o afeto tranquilo, seguro, estável, previsível,  colocando-o na extraordinária família que se constituiu, e a paixão tórrida, instável e aventureira, ligada ao inesperado, à surpresa, colocada nos seus amores homossexuais, que embora indispensáveis se apresentam mais periféricos que centrais. Este o modo singular de Pablo de distribuir seus afetos, de tentar realizar a façanha de ser e estar-no-mundo em equilíbrio possível. A amorosidade que numa  sociedade tradicional tem por ideal sua concentração no casal e na família, um ideal dificilmente realizável, apresenta-se em Pablo  dicotomizado entre uma família esquisita, e dois (que poderiam ser mais) homossexuais. Este foi o seu modo de distribuir seu desejo, seu afeto, sua amorosidade, preservando ao mesmo tempo um equilíbrio e uma possibilidade de realização no seu meio social. Teríamos aí razoavelmente respeitadas as singularidades e as possibilidades de convivência  social.

            O enamoramento, periférico no filme de Almodovar, torna-se vital, difuso, penetrante, insinuante, em “Beleza roubada” de Bertolucci. Nesta película, realizada em 1996, Lucy, uma jovem americana de 19 anos, virgem, volta, após 4 anos, a uma região campestre da Itália à procura de um amor de namorado e de um amor de pai, pois lá ela tinha sido tocada em seu coração por um mancebo e lá tinha sido concebida 19 anos atrás. Lá ela se depara com muitos homens e mulheres e se coloca aberta ao desenvolvimento de toda e qualquer relação afetiva, tendo como limite apenas o seu desejo, as suas singularidades. Com isso, em suas diversas relações, surgem variados afetos: carinhosos, sensuais, ternos, lúdicos, sexuais, etc., apresentando cada relação uma mistura particular desses vários componentes e de outros indizíveis. Finalmente ela encontra o seu pai e também aquele que será o seu primeiro amor, o jovem que a inicia e se inicia na sexualidade terna, apaixonada e amorosa, um homem que se sente ligado a ela por laços que ultrapassam o acontecimento sexual. Em sua maior profundidade, lá onde as diversas correntes subterrâneas se confundem, estes dois acontecimentos - encontro com o pai e encontro  com o amor pleno - se entrelaçam, não podendo existir um sem o outro. É preciso que o pai reconheça na filha uma feminilidade, que doe esta feminilidade ao mundo, para que ela possa exercê-la. Torna-se necessária assim uma ambigüidade, onde a sexualidade latentemente lateja, fazendo-se presente  sem se explicitar. Lembremo-nos, a propósito de duas cenas: na primeira, Lucy, na expectativa de sua primeira relação sexual, passa pelo quarto de Alex, um doente terminal, um homem que assumira, ao conhecê-la, um papel sedutor e iniciador; não uma sedução e iniciação dela para si - sua condição física tornava-o incapacitado para isso - mas de iniciação dela para a vida. Ele assume o papel de mestre do amor e da vida. É como se, de alguma maneira, ele dissesse que gostaria de ser aquele a lhe abrir os portais do mundo, do amor, da sexualidade, mas, em não podendo ele próprio, a ajudaria a encontrar este caminho de expansão. Por isso, Lucy o visita no momento que deveria anteceder a sua primeira relação sexual que, finalmente, não se realiza. Naquele momento Alex, ciumento e invejoso, mostra-se reticente; porém, mais tarde, quando de seu transporte para o hospital, ao sair do cenário do filme, despedindo-se de Lucy e, provavelmente, da vida, ele explicitamente aprova a relação sexual que julgara ter acontecido, não deixando que Lucy esclareça o que realmente acontecera. Agora, ela traz dentro de si, o olhar permissivo desse homem que não é seu pai, mas que, sem dúvida, está exercendo a função paterna de reconhecimento de sua sexualidade, e de doação dessa sexualidade à vida.

            Em outra cena do filme, aquele que será posteriormente reconhecido como pai, está exercendo as funções de pintor, tendo como modelo aquela que será, futuramente, reconhecida como filha. Dentro desta atmosfera artística o pai aproxima-se da filha, olha-a intensamente quase encostando o seu rosto e os seus lábios nos dela. A jovem sustenta o olhar sem escape, devolvendo-o na mesma medida, numa tensa e vibrante expectativa do que virá a seguir. Uma corrente intensiva, carregada de afetos, circula entre pai e filha, fazendo crescer a energia erótica que, finalmente, tem seu descenso no desnudamento de um  dos seios da filha. O pai afasta-se para pintar o quadro que agora, certamente, estará pleno da sensualidade e sexualidade explosiva da jovem. Esta cena é emblemática da disposição de Lucy em viver intensivamente todas as experiências possíveis de afeto, sem pré-determinações do que pode e do que não pode ser feito. Ela encontra-se aberta para toda espécie de afeto, dá-se a liberdade de experimentar, até o limite de seu desejo, tudo o que possa surgir em matéria de amor, sensualidade, sexualidade, carinho, ternura, etc. Abertura que poderíamos ver como um acontecimento do milênio que está ali em uma das prováveis esquinas,  à nossa espera.

            Podemos confrontar esta atitude com aquela prevalecente em uma subjetividade que a precede e que, ao mesmo tempo, lhe é contemporânea, uma subjetividade clássica/moderna e que no filme está representada por Niccolo, a quem Lucy havia beijado quando de sua primeira estadia no sítio aos 15 anos, e com quem sonhara nos quatro anos seguintes, antes de desiludir-se. Também Richard, Miranda, e a cena das prostitutas na estrada vistas ao longe pela câmera, são conotativas da subjetividade clássica/moderna. A atitude do homem no clássico e moderno dá-se em uma linha curta percorrida pela “cantada” ou, alternativamente, pelo “respeito”, e que tem em uma de suas extremidades a “trepada” e, na outra, a dessexualização da mulher. Ou a mulher não tinha sexo ou então tratava-se de uma mulher para ser “comida”. Na contemporaneidade observa-se uma outra série, justamente a série percorrida por Lucy. O homem se posiciona na linha do afeto, uma linha longa que comporta amizade, compreensão, companheirismo e também sexo. Tentarei me explicar melhor. Nas relações atuais é possível um homem ter afeto por uma mulher e manifestá-lo sem que esteja implicada a idéia de uma futura relação sexual. Melhorando: é possível, hoje em dia, ter um comportamento afetivo com uma mulher sem que este comportamento afetivo seja encarado como uma “cantada”. Tal comportamento afetivo está aberto dos dois lados, tanto para o lado da amizade quanto para o lado do amor sexualizado. Não há uma proibição nem de uma coisa nem de outra e, eventualmente, a relação pode sofrer variações. Trata-se de uma outra série, diferente da anterior. Na anterior só havia duas possibilidades: “respeito” que implicava em uma dessexualização absoluta (mulher de amigo é homem) ou “cantada”. Era uma linha curta limitada por dois extremos absolutos que, por assim dizer, davam fim abrupto, nas duas extremidades, à série. Na série da pós-modernidade temos uma linha de afeto longa, suportando gradações sutis, múltiplas e reversíveis, o que justamente a encomprida. Uma série a ser percorrida em todas as direções e que acumula, de diferentes maneiras, os pontos percorridos em uma espessura de relação. Já não se trata de cantada ou respeito, mas de relação humana entre dois seres abertos à vida e aos afetos. Teremos então uma série que passará pelo carinho, atenção, papo, amizade, amor, sensualidade, sexualidade, entendimento, compreensão, aliança, cumplicidade, compartilhamento. Uma série, que, à diferença da outra, comporta ambigüidades. Por esta razão, um casal amoroso que conserve mais ou menos intactos o modo infantil exclusivista de relacionamento - em outras palavras, um casal que, por ter colocado na sua relação um narcisismo excessivo tenha um ciúme exacerbado, terá dificuldade em admitir o trânsito do parceiro por essa série ambígua. Ambígua porque ela comporta toda a espécie de afeto, estando alguns explícitos e outros apenas insinuados, diluídos ou velados. Os seres humanos do futuro terão de lidar com estes sentimentos surgidos a partir dessa nova maneira de se colocar na linha do afeto. Não estou me referindo a uma liberdade sexual que levaria todos a transar com todos, mas a uma liberdade amorosa que admite a possibilidade de qualquer acontecimento afetivo, inclusive sexual, mesmo que ele nunca ocorra. Estou aqui opondo uma “moda” - a transa de todos com todos como modelo -, ao desejo de se relacionar afetivamente com alguém, onde a relação sexual não é obrigatória e poderá ou não acontecer. O componente sexual que existe nas mistura de afetos que é Lucy nos é mostrada quando, no início do filme a câmera surpreende sua mão repousando próxima ao seu sexo, e mais tarde, quando Lucy se debate voluptuosamente na solidão noturna de seu quarto e ainda, na sua busca vigil desejante ao mesmo tempo cega e lúcida de algo que ela sabe e não sabe o que é, de algo que tem a ver com o pai e com o namorado, mas que ultrapassa a ambos.

            A fragmentação inicial das imagens realizada por cortes rápidos da câmera, dá um significado especial à sensualidade que, desde sua abertura, percorre todo o filme, Esta fragmentação aparece no percurso que ela realiza dos Estados Unidos, seu país de origem, ao sítio bucólico no interior da Itália. Rápidas imagens logo substituídas por outros, nos remetem a um estilhaçamento do tempo, lançando-nos na pontualidade do devir. E é justamente este deixar-se levar pelo devir que possibilita uma integralidade de sentimento/pensamento/ação. O decidido mergulho no devir, o seu deixar-se levar pelas ondas fortuitas ou quase-fortuitas dos acontecimentos internos e externos em interação, a abertura de Lucy permitiu-lhe uma autenticidade que dificilmente existiria se ela se propusesse calculadamente a alguma coisa. Havia um sentido no seu comportamento: encontrar. Este sentido estava preenchido pelo encontrar o pai e encontrar o seu primeiro amor, mas não se constituia em um plano, em um cálculo,  não perturbando pois a fluidez do devir. Creio  que o diretor expressa bem o paradoxo devir/sentido/não-cálculo quando coloca um fotógrafo desconhecido - que mais tarde aparecerá no sítio revelando-se um amigo da mãe de Lucy - fragmentando fotograficamente momentos vividos por Lucy na viagem e oferecendo-os a ela sem nada pedir em troca. Temos aí representada a possibilidade de uma acumulação de momentos pontuais do devir reunindo-os em uma série que lhes dá sentido, impedindo que eles desapareçam no vazio. Não há uma raiz prendendo-a a coisa nenhuma, mas também sua experiência não se perde em uma dispersão sem sentido. Ao contrário, sua procura rizomática confere um sentido ao seu devir, tornando-o um devir de eterno retorno, onde cada momento é significativo por estar gravado para sempre. É desta maneira que podemos interpretar a fixação fotográfica de pontualidades da viagem. Lucy, líquida e transparentemente aberta para qualquer espécie de acontecimento e sentimento, aberta a tudo e a todos, pode assim integrar pensamento, sentimento e ação, num gesto unificado de autenticidade monolítica. Esta autenticidade leva-a a recusar algumas das relações sexuais e afetivas propostas e a aceitar aquelas que se coadunavam com o seu desejo, com as suas singularidades, com o seu devir. Nas suas relações com o moribundo - pai adotado, e com o pai biológico, nós a encontramos percorrendo a linha longa do afeto em cuja espessura não explícita encontram-se a sensualidade e a sexualidade, que por vezes se insinuam no comportamento manifesto de um modo vaporoso e sutil.

            Niccolo, o rapaz com quem Lucy havia sonhado por quatro anos, revelou-se um conquistador inveterado, manifestando um desejo apenas epidérmico pela jovem. Aceito até um certo limite mas, em última instância, repelido, desisitiu dela e foi exercer sua atividade donjuanesca em outro terreiro. Podemos tomar este rapaz como exemplo da linha curta e dura em contraste com a linha suave e longa do afeto que a protagonista nos presenteia. A primeira pode ser relacionada a identificações permanentes, a identidades fixas e a segunda à identificação contínua, dual-porosa, uma identificação que resulta em uma identidade fluida, mutável. A primeira ligada a modelos de comportamento e a segunda advinda da atividade criativa de um verdadeiro self que busca o seu lugar afetivo no mundo, sem prévias determinações. Digo, de propósito, um lugar afetivo, para contrastá-lo com um lugar de dever. Houve um tempo em que não se acreditava no afeto como capaz de participar da organização do mundo social; ao contrário, o fluir do afeto seria desorganizador enquanto que o carimbo do dever, este sim, marcaria positivamente a organização social. Hoje, cada vez mais, acredita-se na sabedoria da espontaneidade afetiva. É claro que esta espontaneidade deve ocorrer em um contexto mais amplo, um contexto que inclui a subjetividade do outro e a subjetividade circulante no social e que não exclui o contrato.

            Voltemos à linha curta e dura do afeto. O que é, nas relações amorosas, ser homem no clássico/moderno? Respeitar a mulher dos amigos e conquistar as outras mulheres. Dessexualizar a mulher proibida. Sexualizar obrigatoriamente todas as outras mulheres. Não entra em questão, pelo menos não prioritariamente, a atração pessoal e sexual. Se era mulher, e se não era mulher de amigo, então era para ser comida. Quanto à mulher ela tinha de guardar uma compustura, um comportamento desestimulante da sexualidade. Tinha de ser fiel ao seu marido e manter sua sexualidade, mesmo na intimidade do quarto, em limites de decência. Nada de grandes entusiasmos ou de grandes criatividades. A mulher tinha de ser discreta em suas manifestações sexuais. É claro que este é um modelo que tem tudo para ser transgredido pois ele impõe freios a uma força muito maior que atua em homens e mulheres. Uma força que impele os seres humanos para o relacionamento, para o reconhecimento, para a fuga da solidão, para a realização de suas potencialidades, para a aventura, para a abertura, para a novidade, para a renovação, para a curiosidade.

            O homem pós-moderno - o borderline “normal” - tem mais probabilidades de transitar na linha longa e suave do afeto. Na atualidade o homem, assim como a mulher, deixam de ser Homem (ou Mulher) para serem Pessoa. Uma pessoa que, desconsiderando modelos sociais, pode deixar aparecer o masculino ou o feminino que irrompe de seu verdadeiro self, fazendo parte de seu conjunto pessoa. Uma pessoa que se relaciona com outras pessoas. Uma pessoa que ao se relacionar com alguém do sexo oposto (em se tratando de um heterossexual) ou do mesmo sexo (em se tratando de homossexual) poderá acrescentar mais ingredientes à relação: a sensualidade e a sexualidade. Uma pessoa que ao se relacionar com outra pessoa pode fazê-lo de maneira ambígua. Uma pessoa heterossexual que ao se relacionar com alguém do mesmo sexo poderia aceitar o aparecimento de afetos e afetações homossexuais que não precisariam obrigatoriamente se realizar, permanecendo como elemento oculto ou recatado da mescla. Teríamos uma situação semelhante a algumas situações transferenciais em análise, onde a sensualidade e a sexualidade estão presentes de uma forma não explícita, impelindo a relação para o desdobramento. No cotidiano, certamente isso também acontece, assim como também acontecia na época clássica/moderna, não sendo, porém, reconhecido nem aceito pelas pessoas e, por isso mesmo, produzindo uma culpa inconsciente. Lucy, a jovem do filme, uma mulher em estado de identificação dual-porosa, deixa aberta a possibilidade de uma realização sensual/amorosa/sexual mesmo quando esta nunca virá a se concretizar. É algo que fica como pano de fundo e que contribui para a riqueza da ambigüidade. Não se trata mais de uma Mulher, que tem um modelo de comportamento, mas de uma pessoa sujeita e aberta a todas as eventualidades, e que, a priori, não fecha nenhuma porta de relacionamento.
 
                                                                                       Nahman Armony
 
 
 

           

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DIVULGAÇÃO

 

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A Sobepi divulga o Seminário Livre:

'A Psicanálise e a subjetividade humana: perspectivas para o século XXI'

 



 

Temas:

1.      Transformações da pessoa
2.      Transformações da família
3.      Transformações do tratamento

 

 

"Estamos deixando para trás uma visão de mundo otimista e triunfalista, regida por um ideal de domínio e escravização da natureza, e caminhando para outra - onde o homem perde sua posição central e torna-se um ente penetrado e cercado por forças que escapam ao seu controle e, mesmo, conhecimento".


Docente:
Nahman Armony (médico psiquiatra, psicanalista membro efetivo da SPID e do Círculo Psicanalítico, filiado à International Federation of Psychoanalytic Societies)



Datas: 01 e 29 de Junho; 20 de Julho (sempre às 4as feiras)
Horário: 19h30 às 21h.

 

 

Investimento: 3 parcelas de R$ 90 (Público externo)

                        3 parcelas de R$ 54 (Membros da Sobepi)

 

 

Informações e inscrições:

Sobepi, (21) 2275-8205 / sobepi@sobepi.org.br

 (R. Elvira Machado, 06 - Botafogo, Rio de Janeiro)

 




 


 




 

 

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A MÃO ESTENDIDA

A mão estendida
Nunca definitivamente guardada
Finalmente percebe
Foi recusada.

Faz-se então o vácuo.

A queda interminável
Só se detém
No saber da ignorância
Dos acontecimentos ímpares

Os pares são analisados,
Moídos, triturados,
E a mão estendida
Espantada
Não entende os fragmentos
Que sobraram.

Como fragmentos?
Se aquilo foi alguém!
Se aquilo foi algo...

Uma cola, rápido!
Que é preciso colar
Antes que a humanidade morra de sede
Por falta de carvão
Locomotor.


A obrigação espalhada
Nas moléculas do corpo
Unidas em desespero
E em compromisso
De atender
E ter a quem amar

Responsável pelas famílias
Que se espalham alegres
Pelas ruas e praias
Pelas praças e jardins

A grande fita Durex
Segurando a humanidade
Dando laços e lacinhos
Em volta de crianças lindas, amorosas e chatas,
Sadias, gostosas e briguentas.

Crianças, criancinhas, criançonas...
Canção de meus dias de outono


Ah, moléculas impregnadas de dever.
Chega! Nada mais há a dizer.
É simplesmente fazer uma escolha:
Ou eu me entendo com minhas moléculas, 
Ou...ou...
                                  Nahman Armony


UM QUADRILÁTERO PROBLEMÁTICO


ATORES: 1- HOMEM CASADO PELA 2a. VEZ COM UM FILHO DO PRIMEIRO CASAMENTO. 2- ESPOSA ATUAL 3- EX-ESPOSA.

         Esta é uma configuração problemática. Se uma simples relação amorosa não complicada por fatores extras já traz problemas relacionais ---- considerando-se a dinâmica de cada um e o encontro destas dinâmicas ----- imagine-se então uma relação amorosa sobrecarregada pela presença de uma ex-esposa presente na figura de um filho que deverá estar periodicamente com o pai e com sua nova esposa. Em primeiro lugar a criança é para a nova esposa, a representação viva da ex-mulher e isto criará uma atmosfera de desconforto, por mais que as atitudes tomadas sejam adequadas. A necessidade de comunicação entre o marido e a ex-esposa é outra fonte de perturbação. Estará ele dando atenção exagerada à ex-esposa? Seu tom de voz não está demasiadamente meloso? Não cede ele um espaço excessivo à ex em detrimento do espaço da atual? Não estará ele sendo dominado pela grande inimiga (a ex) numa dominação que repercute nas relações maritais?

         O confronto muitas vezes se faz diretamente entre marido e esposa com questionamentos racionais e irracionais. Em outras ocasiões o confronto é feito através do filho do primeiro casamento. “Ele está malvestido. A ex cuida mal dele e sou eu --- a esposa atual --- quem tem de corrigi-la. Ele está sendo mal-educado e sou eu quem tem de sofrer as consequências disto. Ela usa a criança para te manipular atrapalhando as nossas atividades.”

         No início o mal-estar despertado pela criança na esposa atual aparece como confuso, não sabendo ela discriminar a mistura de sentimentos que a criança desperta. Aos poucos ela vai discriminando os diversos sentimentos e passa a poder trabalhar com eles. Entre estes está o de ciúme da criança com o marido. Ela quer ser a única e exclusiva para o marido, mas ele tem também o filho a quem dá boa parte de sua atenção. Nesta situação a esposa, sem ter consciência disto, reivindica um atendimento de pai e mesmo de mãe do marido. É claro que isto vem disfarçado por racionalizações de uma lógica adulta, racionalização esta que esconde o desejo infantil inconsciente de fusão e simbiose. Enfim, é preciso lidar com esse quadrilátero potencialmente explosivo com muita cautela: distinguir fantasia de realidade;  não se deixar levar por excessos de emoção que podem levar ao cometimento de atos exagerados e mesmo perigosos, à impermeabilidade de comunicação e à radicalidade.
                                                                Nahman Armony