BORDERLINE E ESPAÇO POTENCIAL WINNICOTTIANO

                     Publicado originalmente em meu livro "O Homem Transicional".                                            

 

Sinopse: Este trabalho busca encontrar na obra winnicottiana a figura do borderline brando(normal),- aquele que tem como contrapartida o assim chamado neurótico normal. A partir daí tenta obter um modo de abordagem dos borderlines no contexto econômico-social da atualidade. 

Palavras-chave: Borderline, espaço potencial, espaço de intimidade, criatividade.                 

 

 Não é tarefa fácil expor o pensamento de Winnicott sobre borderline. Nosso autor poucas vezes usa esse termo, e geralmente o faz em conexão com psicose, esquizoidia, esquizofrenia. Algumas citações ilustrarão essa afirmativa. Vejamos:

 

“É na análise do caso do tipo fronteiriço que se tem a oportunidade de observar os delicados fenômenos que apontam para a compreensão dos estados verdadeiramente esquizofrênicos. Pela expressão caso fronteiriço quero significar o tipo de caso em que o cerne do distúrbio do paciente é psicótico, mas onde o paciente está de posse de uma organização psiconeurótica suficiente para apresentar uma psiconeurose, ou um distúrbio psicossomático, quando a ansiedade central psicótica ameaça irromper de forma crua”.  (Winnicott, 1969, p.122).

                               

“A defesa do self falso pode ser abandonada e o self verdadeiro pode ficar exposto (com grandes riscos) na transferência psicótica. A partir daqui (e fico envergonhado por ter condensado o quero dizer quase ao ponto do absurdo), comecei a ver a esquizofrenia e, especialmente, a enfermidade do caso borderline como sendo uma sofisticada organização de defesa. Não mais experimentar a angústia impensável que está na raiz da enfermidade esquizóide”. (Winnicott, 1967a, p.154)

 

                               

“Quanto à minha experiência, aquela que mais me permitiu aprender foi a observação de regressões contínuas seguidas de progressão em casos de pacientes borderline, ou seja, de indivíduos que precisam chegar a um estado de doença do tipo psicótico no decorrer do tratamento  (Winnicott,  1990, p.172).

 

Freud foi capaz de descobrir a sexualidade infantil em uma nova visão porque ele a reconstruiu a partir de seu trabalho analítico com pacientes neuróticos. Ao estender seu trabalho para cobrir o tratamento de pacientes psicóticos borderline, foi possível para nós reconstruir a dinâmica da infância e da dependência infantil, e o cuidado materno que satisfaz essa dependência”.  (Winnicott, 1960, p.53).

 

Vamos pois guardar na mente que psicótico, esquizofrênico e borderline estão muito próximos no pensamento winnicottiano, o que significa que podemos, muitas vezes, tomar um termo por outro, ou considerar um desses termos uma condensação do três.

         Farei, agora, uma citação que direcionará este trabalho no sentido da idéia de um borderline “normal” que preferirei chamar de borderline brando. Diz Winnicott:

 

“Os psicanalistas experientes concordariam em que há uma gradação da normalidade não somente no sentido da neurose mas também da psicose (...) Pode ser verdade que há um elo mais íntimo entre normalidade e psicose do que entre normalidade e neurose; isto é, em certos aspectos. Por exemplo, o artista tem a habilidade e a coragem de estar em contacto com os processos primitivos aos quais o neurótico não tolera chegar, e que as pessoas sadias podem deixar passar para o seu próprio empobrecimento”. (Winnicott, 1959-1964, p.121).

 

Como Winnicott diferencia o psicótico próximo da ponta da normalidade (borderline-normal) do neurótico igualmente localizado? Garimpando seletivamente sua obra encontramos algumas preciosidades:

 

 “Se tudo que foi dito  antes pode ser dado como certo, podemos dizer, referindo-nos a um bebê total relacionado a uma mãe total, que está estabelecido o estádio no qual a posição depressiva pode ser alcançada. Se essa totalidade não pode ser levada em conta, então nada do que tenho a dizer sobre a posição depressiva é relevante. O bebê vai vivendo sem ela; e muitos conseguem [sublinhado meu]. De fato, em tipos esquizóides pode não haver uma conquista significativa da posição depressiva e, na ausência daquilo que pode ser descrito como reparação e restituição, a recriação mágica é utilizada”.(Winnicott, 1954, p.440)

 

Winnicott, ao que eu saiba, não mais falará de “recriação mágica”; tomarei então a liberdade de interpretar essa expressão. Como entender a recriação mágica sem fugir à teorização winnicottiana? A essa questão tentei responder da seguinte maneira: ao recriar magicamente o mundo, o borderline estaria lançando a sua fantasia onipotente (mitigada) no ambiente pessoal e social potencialmente receptivo. Seria a sua maneira de conseguir um relacionamento suficientemente bom com as pessoas e o social, não através da culpa e reparação, mas através da inclusão das pessoas e do social em seu mundo fantasmático, de tal maneira que eles são recriados magicamente de acordo com uma fantasia não alheia à realidade. Estou antecipando a próxima citação de Winnicott que é a seguinte: “Pode mesmo acontecer que  [o borderline] seja capaz de aceitar o que é bom no ambiente como uma projeção simples e estável de elementos emergentes que se originam de seu próprio potencial herdado” (Winnicott, 1960, p.39). Elementos emergentes cuja origem está no potencial herdado são projetados em aspectos bons do ambiente. Esses aspectos bons do ambiente estão, por assim dizer, à espera dos elementos emergentes. Há uma amálgama entre os aspectos bons do ambiente e os elementos emergentes projetados. Essa amálgama entre o dentro e o fora nos remete exatamente ao espaço potencial. Peço aos leitores que retenham na memória a idéia de “recriação mágica”.

         Winnicott:

É interessante  reparar que o artista criativo é capaz de chegar a um tipo de socialização  que obvia [em inglês “obviates”; o Michaelis traduz por “remover”, “eliminar”; em castelhano “soslaya” – “passa por alto”. No dicionário Aurélio obviar é remediar, prevenir, desviar, atalhar (seguir por um caminho mais curto)] a necessidade do sentimento de culpa e a atividade reparativa  e restitutiva associada que forma a base do trabalho construtivo habitual. O artista ou pensador criativo pode, na verdade, falhar em compreender, ou pode mesmo desprezar, o sentimento de preocupação[concern] que motiva uma pessoa menos criativa; e dos artistas se pode dizer que alguns não têm a capacidade de sentir culpa e ainda assim atingiram uma socialização através de seu talento excepcional. As pessoas habitualmente governadas pelo sentimento de culpa acham isso surpreendente; ainda assim tenho um respeito sub-reptício pela falta de piedade [ruthlessness] que leva de fato, em tais circunstâncias, a conseguir mais do que o trabalho orientado pela culpa. (Winnicott, 1958, p.28/29).

 

Obviamente o borderline e o artista estão no mesmo barco winnicottiano. Creio que não será nenhum abuso dizer que o artista talentoso recria magicamente o mundo através de sua arte, mesmo porque essa idéia permeia nossa subjetividade. Borderline e artista talentoso, quando não coincidem, encontram-se. Ambos recriam magicamente a realidade. O artista através da obra de arte e o borderline através da transformação da vida em obra de arte.

         Winnicott distinguiu os que alcançam a fase depressiva - aqueles que, em tendo a capacidade de se sentir culpados e de reparar poderão usar o mecanismo de recalque, sendo então chamados de neuróticos, daqueles que não atingem a fase depressiva e que mesmo assim conseguirão se relacionar suficientemente bem com o ambiente através da recriação mágica – os “tipos esquizóides”, os borderlines. Winnicott fala dos artistas (que numa de suas citações aparecem lado a lado com os borderlines) que obviam a culpa e que mesmo assim se socializam devido ao seu talento excepcional. Mas ele também fala dos tipos esquizóides que se relacionam com o mundo não através da culpa, mas da recriação mágica. Repetindo: A obra artística não seria uma recriação mágica da realidade? O borderline e o artista não seriam então gêmeos em sua capacidade de recriar o mundo? Poderíamos, então, a partir dessas duas citações, (é claro que elas são apenas pontas de icebergs, usadas para argumentação, demonstração e formação de juízo) pensar que o talento do borderline brando em plantar suas fantasias no social é uma estética de existência, uma construção artística? É essa mesma concepção que os sociólogos têm do homem pós-moderno. À noção de borderline sobrepõe-se a de homem pós-moderno:

 

“Dentro da nova classe média pode haver efetivamente um número maior de pessoas que aceitam a concepção de que a vida estética é a vida eticamente boa, que não existe a natureza humana nem o ‘eu’ verdadeiro, que somos uma coleção de quase-eus e que a vida se presta a uma modelagem estética”. (Featherstone, 1995, p.75).

 

Um artista é originalmente um homem que se afasta da realidade, porque não pode concordar com a renúncia à satisfação instintual que ela a princípio exige, e que concede a seus desejos eróticos e ambiciosos completa liberdade na vida de fantasia. Todavia, encontra o caminho de volta deste mundo de fantasia para a realidade fazendo uso de dons especiais que transformam suas fantasias em verdades de um novo tipo, que são valorizadas pelos homens como reflexos preciosos da realidade”. (Freud, 1911, p.284).

 

“A estetização da vida cotidiana pode designar o projeto de transformar a vida em uma obra de arte”. (Featherston, 1995, p.99).

 

É possível argumentar que setores da nova classe média, os intermediários culturais e as profissões de caráter assistencial retêm as disposições e sensibilidades necessárias que os fazem mais abertos à exploração emocional, à experiência estética, e à estetização da vida. De fato, para se produzir e apreciar a estetização do corpo, caracterizada como um elemento da arte pós-moderna, é preciso descontrole emocional.(Featherstone, 1995, p.72).

                                 

É preciso examinar desapaixonadamente a justificativa estética da vida; se isso for realizado, pode-se mostrar que o descontrole controlado das emoções e a ausência de um sistema de fé religiosa coerente e centralizado não resultam em niilismo e desintegração social; é, antes, perfeitamente possível que a mudança para critérios estéticos e conhecimento local resulte num autocontrole mutuamente esperado e no respeito para com o outro.(Featherstone, 1995, p.174)

 

 

Nessas citações o homem pós-moderno aparece como um artista da vida, uma pessoa que vive criativa e apaixonadamente a própria existência. Esse homem aproxima-se do homem winnicottiano: “Desejo examinar o lugar, utilizando a palavra em seu sentido abstrato, em que permanecemos a maior parte do tempo enquanto experimentamos a vida” (Winnicott, 1971c, p.145) E mais adiante:

 

“Onde estamos, quando fazemos o que, na verdade, fazemos grande parte de nosso tempo, a saber, divertindo-nos? (...) Observe-se que estou examinando a fruição altamente apurada do viver, da beleza, ou da capacidade inventiva abstrata humana, quando me refiro ao indivíduo adulto, e, ao mesmo tempo, o gesto criador do bebê que estende a mão para a boca da mãe, tateia-lhe os dentes, fita-lhe os olhos vendo-a criativamente” (ibid, p.147).

 

 

E na p. 137 do mesmo livro: “Poderia empregar a frase de Buffon: ‘Le style est l’homme même’. Essas colocações lembram os sociólogos que falam de um homem lúdico, esteta, criativo. O homem moderno era e é o homem do dever, da disciplina, da ordem. O homem pós-moderno – e isso está dito por Winnicott e pelos sociólogos - é o homem da criatividade, da fruição. O homem pós-moderno mais vive, mais experimenta a vida, do que a padroniza em comportamentos repetitivos e lugares estanques. O homem moderno mais pretendia viver no espaço objetivo; o homem contemporâneo winnicottiano sente-se mais à vontade no espaço potencial.

         Em minha tese de doutorado, que se transformou em livro, tentei demonstrar que homem pós-moderno e borderline brando se sobrepõem. Mas disso falarei mais adiante. Por enquanto, voltemos a Winnicott.

         Existem, pois, homens que se socializam apesar de terem atalhado o estágio da culpa. Em uma de suas citações Winnicott limita esse modo de socialização aos artistas de talento excepcional. Mas, sem dúvida, revendo a citação anterior em que fala de esquizóides capazes de uma recriação mágica, e mais, informados pelos sociólogos que fazem do homem pós-moderno um artista da vida, podemos estendê-los aos borderlines criativos em geral. Poderíamos especular que a recriação mágica (um ato onipotente) ocupa o lugar da culpa. Esta recriação mágica pode ter ou não uma função social. A próxima citação de Winnicott falará dessa função social:

 

“É costume fazer alusão ao ‘teste de realidade’ e efetuar uma distinção clara entre percepção e apercepção. Reivindico aqui um estado intermediário entre a inabilidade de um bebê e sua crescente habilidade em reconhecer e aceitar a realidade. Estou, portanto, estudando a substância da ilusão, aquilo que é permitido ao bebê e que, na vida adulta, é inerente à arte e à religião, mas que se torna marca distintiva de loucura quando um adulto exige demais da credulidade dos outros, forçando-os a compartilharem de uma ilusão que não é  própria deles. Podemos compartilhar do respeito pela experiência ilusória, e, se quisermos, reunir e formar um grupo com base na similaridade de nossas experiências ilusórias. Essa é a raiz natural dos agrupamentos humanos”. (Winnicott, 1971a, p.15).

 

Essa citação faz minha imaginação desandar:  imagino que a formação dos primeiros grupos humanos tenha exigido a presença de líderes capazes de recriar suas próprias fantasias primevas de uma forma não incompatível com a subjetividade circulante no grupo social, conseguindo apresentá-las na forma de mitos atraentes, úteis à coesão desse grupo. Certamente o grupo estaria, até certo ponto,  propenso a receber a ilusão, o mito, pois este preencheria um espaço de interrogações e necessidades. Mas também determinante seria a capacidade do líder em “vender o seu peixe”. Para isso ele teria uma sintonia fina com seus interlocutores, tato e ousadia no seu trato com eles, um certo dom encantatório, uma qualidade carismática, um charme, uma capacidade de seduzir. (Não pretendo que essa especulação corresponda a uma realidade. Eu a coloquei com o intuito de esclarecer meu pensamento a respeito da função social do borderline. Minha concepção de borderline faz dele um ser criativo apto a transformar sua subjetividade em formações transicionais). O borderline é capaz de colocar de forma palatável para a sociedade suas experiências ilusórias, suas recriações mágicas, suas fantasias primevas mitigadas[1]. E ele consegue fazê-lo quando, atravessando a camada macro, é capaz de perceber e sentir as nano-reações e os nano-acontecimentos do ser humano.

Poderíamos, à maneira de um aforismo dizer que se o borderline é o devir do mundo, o neurótico é a sua estabilidade.

         Recapitulando: se a posição depressiva não é adequadamente alcançada, a capacidade de sentir culpa fica reduzida. O sujeito poderá se relacionar com o mundo através de recursos outros que não a culpa e reparação. Winnicott fala que o borderline usa uma sofisticada organização de defesa. Isso faz com que o borderline se relacione com a realidade externa e com o semelhante de um modo diferente do neurótico. Um modo onipotente, artístico; através de uma recriação mágica da realidade. Se essa recriação mágica estiver conectada com o mundo circundante teremos uma atividade criativa cujo lócus é uma área intermediária. Por outro lado, a recriação mágica poderá ser autística se ao invés de fenômeno transicional for um fenômeno subjetivo. Estaríamos então não mais no espaço potencial, mas no espaço subjetivo, na psicose. Diferentemente do psicótico o borderline precisa de um contato razoável com a realidade compartilhada; necessita colocar as suas fantasias no social de uma maneira tal que este as aceite; e tanto mais o conseguirá quanto maior for a sua capacidade de empatia e de identificação dual-porosa e melhor souber usá-las (Armony, 1998, p.63 e seguintes)

         A normalidade perfeita é sempre um ideal impossível pois não se conhecem homens sem traços neuróticos, já que aquilo que produz neurose, estrutura o caráter, nem homens sem traços psicóticos, pois a criatividade, intuição e comunicação não verbal bebem na mesma fonte da psicose.

         De que maneira a clínica pode conservar as características desejáveis do borderline? Como deveremos proceder no tratamento do borderline de tal maneira que no decorrer do processo nos encaminhemos mais para a normalidade borderline e menos para a normalidade neurótica? Winnicott:

“Vemos portanto que na infância e no manejo dos lactentes há uma distinção muito sutil entre a compreensão da mãe das necessidades do lactente baseada na empatia, e sua mudança para uma compreensão baseada em algo no lactente ou criança pequena que indica a necessidade. Isto é especialmente difícil para as mães por causa do fato das crianças vacilarem de um estado e outro; em um minuto estão fundidas com a mãe e requerem empatia, enquanto que no seguinte estão separadas dela, e então, se ela souber suas necessidade por antecipação, ela é perigosa, uma bruxa. É muito estranho que mães que não são nada instruídas se adaptem a estas mudanças no desenvolvimento satisfatório do lactente, e sem nenhum conhecimento da teoria. Este detalhe é reproduzido no trabalho analítico com pacientes borderline, e em todos os casos em certos momentos de grande importância quando a dependência na transferência é máxima”. (Winnicott, 1960, p.50/1).

 

 

O analista, tal qual a mãe de um bebê, deverá estar apto a perceber qual a solicitação feita pelo analisando em um determinado momento, para poder responder adequadamente, ora priorizando os cuidados com o setting (que sempre vigorarão) ora dando primazia à comunicação simbólica de 2ª ordem. Assim, ele ajudará o paciente a não reprimir o seu verdadeiro self, mantendo atuantes a sua capacidade empática, a sua capacidade de identificação dual-porosa, a sua criatividade.

Winnicott destaca a primazia da criatividade/vida como uma insinuância que deverá permear o tratamento. Citação:

 

Para nós é de suma importância reconhecer que a ausência de doença psiconeurótica pode ser saúde, mas não é vida. Os pacientes psicóticos que pairam permanentemente entre o viver e o não viver, forçam-nos a encarar esse problema, problema que realmente é próprio, não dos psiconeuróticos, mas de todos os seres humanos”. (Winnicott, 1967b, p.139).

 

 

 Direi, simplificadamente, que o perigo da saúde está no empobrecimento da personalidade e o do borderline criativo, na inadequação, dispersão e fragmentação. A priorização da linha normalidade-psicose, e, portanto, do borderline, fará com que o analista tenha uma atitude diferente daquele que prioriza a linha normalidade-neurose. Na normalidade-psicose o não verbal ganhará presença encaminhando o sujeito para a manutenção da disponibilidade e capacidade para a identificação, uma das insinuâncias dos analistas dessa linha.  

Creio ter conseguido uma cabeça de ponte para o meu borderline brando na obra de Winnicott. Vou, pois, daqui para a frente, me despreocupar com essa questão dando-a, pelo menos provisoriamente, por estabelecida. 

Antes de prosseguir devo-me dedicar à tarefa de desenredar o que a seqüência de meu discurso trouxe à baila: a questão do borderline pesado (patológico) em confronto com o borderline brando (normal) e a questão das semelhanças entre o borderline brando e o homem pós-moderno.

Como a idéia de borderline brando é nova, chegarei a ela através do borderline tradicionalmente conhecido, o borderline mais ou menos severamente perturbado.

Encontra-se a palavra borderline, na forma de “borderland”, já em 1884 em Hughes, significando que o paciente vivia próximo a uma fronteira que separava a psicose da neurose, “às vezes de um lado, às vezes de outro”(apud Armony, 1998, p.91). O que em Hughes aparece na forma de alternância, logo será proferido como mistura de neurose e psicose, uma idéia que perdurará por muito tempo na literatura tanto  psiquiátrica quanto psicanalítica. Em 1938, um autor chamado Stern já faz uso de conceitos psicanalíticos para falar do borderline. É a psicanálise se apropriando da palavra, o que vai acontecer com maior intensidade a partir da década de 50. Aos poucos o borderline deixa de ser visto como uma mistura que pode ser decomposta em psicótico e neurótico e passa a se constituir em uma entidade de direito próprio, com uma dinâmica específica que tanto difere da dinâmica do psicótico quanto do neurótico. O borderline passa a ocupar um terceiro território, o que, para orelhas predispostas, lembra o espaço potencial winnicottiano, criando uma esperança de poder articular esse terceiro território com o terceiro espaço winnicottiano - o espaço potencial.

Ainda hoje há bastante controvérsia sobre o que seja um borderline. Não estou aqui falando do borderline brando, que é uma bolação minha, mas do borderline, digamos assim, patológico. Como acontece com quase todos os termos da psicanálise, borderline é também uma palavra polissêmica, permitindo diversas visões, que, de alguma maneira, se aproximam e se suplementam. Tentando fazer um resumo direi que  o borderline pesado (ou patológico) é polissintomático, ambulatório, com dificuldades nas relações interpessoais por suas susceptibilidades narcísicas exacerbadas, com problemas na área afetiva, impulsivo, usuário do dinamismo da divisão, com tendência à atuação, com questões nas áreas das identificações e da identidade, necessitando de uma circunvizinhança humana para atuar os seus fantasmas, com labilidade de humor, com tendência à exacerbada dependência afetiva muitas vezes negada reativamente, com extrema sensibilidade e susceptibilidade,   incomumente e seletivamente permeável ao próprio inconsciente,  ao inconsciente do outro e à subjetividade circulante. Confusão entre suas necessidades e as demandas do objeto: excesso de identificação projetiva. Desaparecimento de suas necessidades diante das demandas do outro: excesso de identificação introjetiva. Dificuldade de contenção dos sentimentos e pensamentos que pressionam por uma expressão imediata; tendência à atuação. Uma diminuída função egóica. Não há uma sólida fronteira egóica; trata-se de um ego plasmático que se deixa arrastar pelos acontecimentos. Confusão do interno com o externo, do inconsciente com o consciente. Confusão entre suas necessidades e as demandas do objeto. Oscilação entre intimidade e retraimento. Confusão entre fantasia e realidade. Dificuldade de distinguir figura e fundo. Concretismo. Objetos e realidade interna instáveis o que faz com que a realidade externa se apresente também instável. Depressão (Bergeret), vazio. Sentimentos de fragmentação, descontínuidade, desmoralização, humilhação, exclusão. Para Grotstein o borderline caracteriza-se por sua inabilidade em disfarçar suas tendências psicóticas e seu subjacente primitivismo sob condições não estruturadas. Para Kernberg caracteriza-se por uma divisão defensiva (não primária) e para Bergeret por uma anaclise (adesividade) proveniente  da depressão.

Se peneirarmos o borderline acima de modo a obtermos a farinha purificada do borderline brando, encontraremos a tendência à atuação, a necessidade afetivo/dinâmica de uma circunvizinhança humana para nela atuar seus fantasmas e realizar seus desejos infantis, o uso da divisão/compartimentação e da onipotência mitigada de forma não incompatível com o social, a extrema sensibilidade, a incomum permeabilidade ao próprio inconsciente, ao inconsciente do outro e à subjetividade circulante; tal permeabilidade permite-lhe identificar-se continuamente, em devir, com o que o rodeia. A essa identificação dei o nome de “identificação dual-porosa”, “identificação transital”, “identificação contínua”, e, posso agora acrescentar, “identificação em devir”.

O borderline brando tende mais à multiplicidade do que ao polissintomático, o que significa que não inibe os vários aspectos de sua criatividade em favor de um único aspecto, mantendo as suas várias capacidades disponíveis para serem usadas. No que diz respeito à sensibilidade/susceptibilidade narcísica ela apresenta-se menos como uma ferida e mais como um instrumento de conhecimento  do outro; a permeabilidade das fronteiras do eu, que poderia torná-lo vulnerável às afetações do outro mantém-se como sensibilidade que permite conhecer o outro, propiciando o desenvolvimento de afetos e sentimentos pertinentes à relação em curso. Assim, ao invés de um fechamento nas próprias fantasias, há uma abertura para o conhecimento das fantasias do outro. A permeabilidade das fronteiras, que no borderline pesado pode ser usada contra o outro ou pode dar lugar a um excesso de identificação projetiva e introjetiva, no borderline brando muda de qualidade, transformando-se em identificação dual-porosa, uma identificação que permite um regime de trocas fantasmáticas e afetivas contínuas entre os seres humanos entre si e com o mundo que o rodeia. A porosidade tanto funciona em relação ao mundo externo (a um outro humano, sim, mas também em relação à cultura, à natureza, ao planeta), quanto ao mundo interno, isto é, na percepção do próprio inconsciente. Em se tratando do borderline brando, as trocas fantasmáticas e afetivas criam um espaço potencial ou equivalente, onde o objeto subjetivamente concebido é, ao mesmo tempo, objetivamente percebido. A identificação dual-porosa mostra-se um precioso instrumento de conhecimento, relação e comunicação, permitindo surfar nas ondas do devir, possibilitando ao borderline deslizar e se enlear nas sutis e infindas variações de um mundo em constante mutação. A necessidade de dependência do borderline pesado, traduz-se no borderline brando pelo reconhecimento da necessidade afetiva de um outro também dual-poroso, de tal maneira que um regime de trocas, onde vigore tanto o subjetivamente concebido quanto o objetivamente percebido, possa ser estabelecido. 

De certa perspectiva, o borderline traz como restos/relíquias da infância mais arcaica uma insuficiência de identificações. Isso o conduz a uma busca de identificações alimentadoras mantendo-o aberto e poroso ao seu ambiente e às pessoas à sua volta. A insuficiência de identificações tanto pode se dar com a função-pai quanto com a função-mãe, e as diferentes combinações dessas suficiências/insuficiências conduzirão a resultados diversos. De uma maneira geral, pode-se distinguir dois tipos de borderline: um primeiro, com insuficiente identificação com a mãe (mas, eventualmente com uma suficientemente boa identificação com o pai) e um segundo com identificações suficientemente boas com a função-mãe e insuficientes com a função-pai. Em ambos os casos eles podem se apresentar ao terapeuta como borderlines pesados, podendo evoluir, porém para o estado de borderlines brandos.

O borderline pesado tenta tampar suas falhas identificatórias através de relações simbióticas e fusionais; suas carências, embora eventualmente preenchidas, permanecem atuantes, podendo criar cegas e excessivas exigências nos relacionamentos afetivos, sociais e profissionais, o que certamente causará transtornos. Já o borderline brando sobreleva suas lacunas através de uma identificação dual-porosa com os seres humanos e com o mundo. Aquilo que no borderline pesado se apresenta como fome de identificações por fantasmas parentais, aparece no borderline brando como uma identificação contínua em devir com os acontecimentos. É justamente esse modo de utilização de sua capacidade de identificação dual-porosa que lhe permitirá tornar-se inovador, criativo, socialmente produtivo.

 Esse borderline brando da psicanálise equivale ao homem pós-moderno dos sociólogos. Se fizermos uma sobreposição do perfil do borderline e do homem pós-moderno encontraremos características comuns. Reproduzirei aqui um trecho do 6º e último capítulo de meu livro “Borderline: uma outra normalidade”:

“O processo de superposição de rostos humanos, inventado por Galton, cuja resultante é um rosto único, é uma boa metáfora da fusão do borderline clínico com o homem pós-moderno da sociologia. A figura resultante é lúdica, curiosa, transgressora, vive um descontrole controlado das emoções, valoriza as experiências afetivas, as sensações imediatas. Usa o corpo, a mente, o movimento, a emoção para pensar. Sujeita a identificações transitórias, sua identidade é fluida, móvel, elástica. Comunica-se, relaciona-se e conhece sem mediações. Acossada pelas intensidades, impelida à ação, tenta realizar suas fantasias infantis no social, sobrepondo fantasia e realidade. Tende a esgotar suas emoções, busca o alargamento do eu, explora novas possibilidades indo à procura do inédito. Preserva o frescor infantil, a curiosidade, o interesse, a multiplicidade, a busca de prazer, a construção e expansão de si mesmo. A vida passa a ser uma arte. A porosidade de suas fronteiras promove uma variante ética na qual o outro e o mundo ficam incluídos no campo narcísico, ou melhor, no campo transicional. Este homem, tendo preservado/readquirido sua aptidão empática e sua capacidade para a identificação dual-porosa, mantém uma liberdade, flexibilidade e rapidez de deslocamento que lhe permite acompanhar a velocidade adquirida pelos acontecimentos na civilização pós-industrial. A aceleração crescente das modificações técnicas, culturais, sociais e econômicas tem, justamente, sua resposta na flexibilização das mentalidades, na capacidade para a apreensão do novo, na coragem em abandonar convicções e posições anteriores, na possibilidade de embarcar no embalo dos acontecimentos. O modo borderline de existência coloca o homem na dimensão do desafio da velocidade, da inconsistência e inconstância da pós-modernidade. (Armony, 1998, p.165).

 

De todas as possibilidades existenciais do borderline brando, a que mais nos interessa no momento é a sua capacidade de identificação contínua, dual-porosa, que justamente responde ao desafio da aceleração, incerteza e mutabilidade dos tempos atuais.  No campo inter-pessoal a identificação dual-porosa dá origem a um espaço singular comum a dois entes, espaço que denominei de íntimo. É este espaço íntimo - nem subjetivo, nem objetivo - que nos encaminha para o espaço potencial de Winnicott.

           Vamos, pois, examinar o espaço potencial para depois, de alguma maneira, articulá-lo com a identificação dual-porosa própria do modo borderline de ser/estar.

 

O ESPAÇO POTENCIAL

Começarei com uma citação de Winnicott:

“Apresentei para discussão de seu valor como idéia, a tese de que o brincar criativo e a experiência cultural, incluindo seus desenvolvimentos mais apurados têm como posição o espaço potencial existente entre o bebê e a mãe. Refiro-me à área hipotética que existe (mas pode não existir) entre o bebê e o objeto (mãe ou parte desta) durante a fase do repúdio do objeto como não-eu, isto é, ao final da fase de estar fundido com o objeto. (...)A separação [“separating-out” que traduzirei tentativamente por separação absoluta ou separação dissociada] que o bebê faz entre o mundo dos objetos e o eu (self) só é conseguida pela ausência de um espaço intermédio, sendo o espaço potencial preenchido do modo como estou descrevendo. (Winnicott, 1971b, p. 149).


 

Portanto, a ausência de um espaço potencial faz com que haja uma dissociação entre subjetivo e objetivo. Se prevalecer o primeiro, teremos a psicose. Se predominar o segundo, a personalidade “como se”. É preciso um espaço potencial para que haja ao mesmo  tempo separação e união. Quais as condições necessárias para que venha a existir um espaço potencial, um espaço em que união e separação se conjuguem? A resposta é múltipla e, evidentemente, aberta. Vejamos um aspecto da questão através de uma citação de Winnicott:

 

“A resposta pode ser a de que, na experiência  que o bebê tem da vida, na realidade em relação à mãe ou figura materna, se desenvolve geralmente certo grau de confiança na fidedignidade da mãe, ou (em outra linguagem, própria da psicoterapia), o paciente começa a sentir que o interesse do terapeuta não se origina da necessidade de um dependente, mas de uma capacidade, nesse terapeuta, de se identificar com o paciente, a partir de um sentimento do tipo ‘se eu estivesse no seu lugar’”... (Winnicott, 1971, p.150).

 

A partir desse e de outros textos de Winnicott. pode-se estabelecer uma diferença entre a fase em que a criança se encontra confundida com o meio e a fase em que a criança começa a se perceber como um eu em oposição a um não-eu[2]. Em ambas as fases a mãe, segundo Winnicott, deverá se identificar com o seu filho. Mas são identificações que apresentam diferenças. Na fase de fusão a identificação é imediata, sem barreiras, já que há uma indiferenciação mãe-filho; a mãe encontra-se na psicose “normal” da “preocupação materna primária” e identifica-se psicoticamente com o seu filho. Ao sair da fase de fusão, o bebê passa a distinguir um eu de um não-eu, preenchendo a fenda com  objetos e fenômenos  transicionais, inaugurando assim o espaço potencial; por sua vez, a mãe, saindo da psicose normal da preocupação materna primária, recupera a sua individualidade, percebe o filho como um outro, devendo agora estar em um estado de disponibilidade para a identificação para poder perceber as necessidades de seu baby. Teríamos aqui uma identificação secundária. A identificação primária se dá antes da relação de objeto.  A identificação secundária implica uma relação de objeto[3]. O objeto transicional e consequentemente o espaço potencial surgem justo no período em que a criança, saindo da fusão, começa a perceber o não-eu; o objeto transicional que então aparece, mantém a mãe ao mesmo tempo presente e ausente. E é nesse espaço potencial que a mãe e o terapeuta necessitariam de ter uma disponibilidade para a identificação para manter um alto nível de sensibilidade.

O espaço potencial é o espaço da criatividade propriamente dita. Mas existe uma criatividade anterior a esta que é a “criatividade primária”. Acontece que para Winnicott, o borderline está aquém do espaço potencial. Como então explicar teoricamente sua capacidade criativa, sua “recriação mágica” ? De onde viria a criatividade do borderline se para Winnicott a criatividade propriamente dita acontece a partir do espaço potencial, e, segundo esse autor, o borderline está pelo menos um passo aquém desse espaço, não tendo atingido a condição de integração eu-não eu. Isto nos é dito claramente por Jan Abram no seu livro “A Linguagem de Winnicott”. Segundo ela os borderlines pertencem a terceiro grupo postulado por Winnicott em seu artigo “Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão dentro do setting analítico”. Esse terceiro grupo é apresentado por Winnicott da seguinte maneira:

 

“No terceiro agrupamento coloco todos os pacientes cuja análise deve lidar com os estádios primitivos do desenvolvimento emocional, antes e até o estabelecimento da personalidade como uma entidade, e antes da aquisição do status de unidade espaço-tempo. A estrutura pessoal ainda não está fundada de forma segura”. (Winnicott, 1954/5, p.460) 

 

A propósito desse terceiro agrupamento Winnicott nos remete a uma analisanda borderline. Por isso Jan Abram pode afirmar:

 

 O terceiro grupo consiste daqueles indivíduos que sofreram as conseqüências de uma falha da adaptação do ambiente nos primeiros estágios da vida, quando eram absolutamente dependentes. Esses pacientes são geralmente classificados como regredidos e rotulados como borderlines, esquizóides, esquizofrênicos, e assim por diante(Abram, 1996, p.209).

 

Portanto, para Winnicott/Abram, a origem da situação borderline encontra-se antes do aparecimento do objeto transicional e do espaço potencial. Ao mesmo tempo, ao falar da “recriação mágica” do borderline, ele está falando de um borderline criativo. Mas, evidentemente, não está se referindo à criatividade propriamente dita, aquela que aparece no espaço potencial. Só podemos então adjudicar ao borderline àquilo que Winnicott chamou de “criatividade primária”, uma criatividade que antecede a criatividade tout-court. Existe pois um espaço para a manifestação da criatividade do borderline, que não é o espaço potencial, mas que pode ser considerado um equivalente do espaço potencial. Esse equivalente ao espaço potencial eu chamei  -- a partir de minhas especulações sobre o borderline --  de espaço de intimidade. São essas semelhanças e diferenças entre esses espaços que veremos a seguir.

 

ESPAÇO POTENCIAL E ESPAÇO DE INTIMIDADE

IDENTIFICAÇÃO DUAL-POROSA

 

Vejamos as diferenças, semelhanças e equivalências existentes entre o espaço potencial e o espaço íntimo conceitualmente atrelado à identificação dual-porosa.

Iniciarei com uma citação de Winnicott:   

 

“O espaço potencial acontece apenas em relação a um sentimento de confiança por parte do bebê, isto é, confiança relacionada à fidedignidade da figura materna ou dos elementos ambientais, com a confiança sendo a prova da fidedignidade que se está introjetando” (Winnicott, 1967, p.139).

 

A confiança depende da disponibilidade e capacidade de identificação dual-porosa da mãe-ambiente. O pensamento winnicottiano leva-nos a supor que o espaço potencial só pode se desenvolver e ser ocupado por aqueles que tiveram uma suficientemente boa maternagem primitiva. Quero propor aqui um equivalente do espaço potencial: o espaço íntimo. Este espaço é freqüentado por aqueles que não tiveram uma maternagem primitiva suficientemente boa e que puderam superar essa desvantagem através da utilização da identificação dual-porosa. Em outras palavras: mesmo não tendo realizado uma identificação suficientemente boa com a mãe primeva poderá o borderline criar para si um equivalente ao espaço potencial, onde a mãe pessoa é substituída pela mãe-cultura, ou, se preferirmos, pela mãe-natureza, no  sentido espinoziano  de natureza. E é a abertura em leque infinito da identificação dual-porosa que permite criar esse espaço equivalente ao espaço potencial winnicottiano. André Martins (Martins, 1998, p.6) distingue a mãe restrita da mãe ampliada para a Natureza. Ele se pergunta a respeito do ventre materno:

 

“Mas qual ventre? O de uma simples regressão paralisadora? Acho que não. O ventre que nos convém seria o ventre da vida em nós. [E cita Nietzsche:] ‘No dionisíaco, é  com sua voz não camuflada que a Natureza nos fala: ‘Sejam tais como eu sou ! Eu, a mãe originária, que cria eternamente a partir da incessante variação dos fenômenos, que força eternamente à existência e que, eternamente, jubilo-me destas metamorfoses!’ (O nascimento da tragédia, parágrafo 16). [E Martins prossegue:] O sentimento de acolhimento por esta ‘mãe originária’ não se confundiria, portanto, com o sentimento oceânico de que nos fala Freud no “Mal estar na cultura”, como um substitutivo para a angústia de castração (...)  [Comentário meu: não se trata pois, de regredir para o estado de dependência absoluta.]  A mãe originária, vista como Natureza, no sentido espinosiano, traria já dentro de si a idéia de variação, metamorfoses, transitoriedade. Mas ao mesmo tempo de acolhimento... (Martins, 1998, p.6)

 

O borderline insuficientemente identificado com a mãe primeva usaria a sua fome de identificações para se identificar com a Natureza, com a Cultura, com o Mundo, com o Universo, um Universo em constante mutação, exercendo produtivamente a sua capacidade de identificação dual-porosa.

         Aqui, um adendo clínico: nas condições econômicas e sociais atuais torna-se difícil estabelecer um setting que facilite uma regressão à dependência absoluta. Temos então de contar com a sede de identificações que subsiste.

         Portanto, mesmo aqueles borderlines que não tivessem tido, nem uma maternagem suficientemente boa na passagem da indiferenciação absoluta para a diferenciação relativa (do um ao eu/não-eu), nem tivessem possibilidade de regredir a essa condição primitiva para reviver e refazer o vínculo materno-filial, poderiam abrir para si um espaço que se assemelharia ao espaço potencial. As pessoas que não tiveram a dádiva de uma maternagem primeva satisfatória podem enveredar pelo caminho de busca de mães substitutas através da vida; mas podem também, através do uso da identificação dual-porosa, encontrar um acolhimento na mãe-natureza (no sentido espinosiano de natureza) que os capacita a entrar em íntimo contato com as pessoas, os acontecimentos, a subjetividade circulante, a cultura. Esse seria um equivalente do espaço potencial ao qual proponho o nome de espaço íntimo. Nesse espaço vigoraria a criatividade primária e não a criatividade propriamente dita, já que esta última é própria do espaço potencial, aonde o borderline não teria adequadamente chegado.

         Haveria, então, sob o ponto de vista de utilização do espaço potencial, dois tipos de borderline brandos: um que tendo tido uma relação suficientemente boa com a mãe na passagem da dependência absoluta para a dependência relativa, pôde alcançar o espaço potencial, e outro que não tendo tido uma passagem satisfatória da relação fusional à relação alteritária simbiótica, consegue, nessas circunstâncias, criar um espaço equivalente ao espaço potencial – o espaço de intimidade, onde vige a criatividade primária.

         Se nós, terapeutas, tivermos em mente a equivalência proposta acima, melhor e mais facilmente poderemos encaminhar a terapia do borderline pesado. Não só poderemos acolhê-lo em uma regressão personificada, como também será possível entender e acolher o dinamismo de transmutação de seu vazio em identificação contínua – dual-porosa – com o mundo circundante. Uma combinação dessas duas insinuâncias tornará menos espinhoso o caminho a ser percorrido pelo borderline pesado e seu terapeuta, rumo ao borderline brando – o homem pós-moderno.

 

                                                        Rio, março de 2000
                                                                  Nahman  Armony

 

Bibliografia

 

ABRAM, J. A linguagem de Winnicott. Rio: Revinter, 2000.

 

ARMONY, N. Borderline, uma outra normalidade. Rio: Revinter, 1998

 

FEATHERSTON, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.

 

FREUD, S.(1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol.XII. Rio: Imago, 1969

 

MARTINS, A. O medo de ousar: entre  a hiperaceleração contemporânea e a tendência à conservação. Cópia xerocada de uma conferência realizada no CPRJ. Junho de 1998.                 

 

WINNICOTT, D.W. (1954) A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal. In: Da pediatria à psicanálise. Rio: Francisco Alves, 1982, 2ª edição.

 

------------------------- (1954/5) Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão dentro do setting analítico. Ibid. 

 

------------------------- (1958) Psicanálise do sentimento de culpa. In: O ambiente e os  processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

 

------------------------- (1960)  Teoria do relacionamento paterno-infantil. In: O ambiente                                               e os processos de maturação. Porto Alegre:Artes Médicas, 1983.                             

 

-----------------------  (1964) Classificação: existe uma contribuição psicanalítica à classificação psiquiátrica? In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

 

----------------------- (1967a) O conceito de regressão clínica comparado com o de organização defensiva. In: Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

 

---------------------- (1967b) A localização da experiência cultural. In: O brincar e a  realidade. Rio: Imago, 1975.

 

---------------------- (1969) O uso de um objeto e relacionamento através de identificações. In: O brincar e a realidade. Rio: Imago, 1975.

 

---------------------- (1971a) Objetos transicionais e fenômenos transicionais. Ibid.

 

---------------------- (1971b) Criatividade e suas origens. Ibid.

 

---------------------- (1971c) O lugar em que vivemos. Ibid.          

 

---------------------- Natureza Humana. Rio: Imago, 1990.

 

                                                       




[1] Usei originalmente a palavra mitigada em referência à onipotência da fase de dependência relativa, onde o objeto é transicional, em contraste com a fase de dependência absoluta, onde o objeto é subjetivo. A materialidade do objeto transicional faz com que a onipotência absoluta não possa ser vivida, fazendo aparecer a experiência de onipotência mitigada. 
[2] “Duas pessoas separadas podem-se sentir-se em união, mas aqui, nessa área que examino, o bebê e o objeto são um. O termo identificação primária talvez tenha sido usado para designar exatamente isto que descrevo...”(Winnicott, 1971b, pag.114).
[3] “No crescimento do bebê humano, à medida que o ego começa a organizar-se, isso que chamo de relação de objeto do elemento feminino puro estabelece o que é talvez a mais simples de todas as experiências, a experiência de ser (...) Em contraste, a relação de objeto do elemento masculino com o objeto pressupõe uma separação. Assim que se acha disponível a organização do ego, o bebê concede ao objeto a qualidade de ser não-eu, ou separado (...) tratando-se do elemento masculino, a identificação necessitas basear-se em mecanismos mentais complexos, aos quais se tem de conceder tempo para surgirem, se desenvolverem e se estabelecerem como parte da aparelhagem do novo bebê. Tratando-se do elemento feminino, contudo, a identidade exige tão pouca estrutura mental, que essa identidade primária pode constituir uma característica desde muito cedo, e o alicerce para o simples ser pode ser lançado (digamos assim) a partir da data do nascimento (...)”. (Winnicott, 1971b, p.114/5). 

POEMA DA EMOÇÃO DEMAIS

Este manto de emoção que me envolve
Ora camisa de força
Contida em si mesma
Ora luz penetrante
Irradiação solar
Som liberto

Este manto
Com o qual tenho de viver
E conviver
É meu êxtase
E meu tormento.
                                    Nahman Armony.

LUTA PELO PODER



Muitos casais que se amam e desejam permanecer unidos vêm-se perplexos quando percebem que a relação está deteriorada. O que poderia ter acontecido? é a pergunta que se fazem. Eles querem permanecer juntos, mas, acontecimentos inapreensíveis levaram-nos àquela situação indesejada. O que será que podemos, como observadores não envolvidos, apreender do inapreensível? Os fatores de discórdia são tantos que se torna impossível abarcá-los. Mas podemos selecionar uma dinâmica bastante encontrada na relação de casal. Trata-se de uma dinâmica darwiniana pois se apóia numa emoção atávica existente desde o aparecimento da vida animal. Numa das partes mais primitivas de nossos circuitos cerebrais está de plantão um sistema de defesa/medo que se desencadeia quando está em jogo a hierarquia social, o domínio de um bicho por outro da mesma espécie. É a luta pela liderança cujo prêmio é ter o melhor quinhão, seja de comida seja de fêmeas. Ser líder tem sua importância na luta pela sobrevivência individual e na permanência para as futuras gerações de seus genes. Isto está incrustado em todos os seres vivos, inclusive no homem. Neste último a civilização produziu modificações. Um casal não pretende estragar seu convívio, sua mútua atração e seu amor por disputas de poder. E, no entanto, em um plano subterrâneo, fora do conhecimento consciente do casal elas existem e podem ser justamente um dos fatores da ruína da relação. Aqui estou-me referindo às dinâmicas implícitas. No explícito ouvimos frequentemente o homem do casal dizer: “minha mulher é quem manda”. Há uma admissão explícita de que o poder é exercido pela mulher. Além de ter um caráter jocoso esta afirmação refere-se a questões de natureza objetiva tais como escolha de móveis, decoração da casa, organização do dia a dia da família, etc. A disputa pelo poder ao qual me refiro ocorre em outro nível. Por exemplo: em um casal a discussão de um tópico qualquer lido em um jornal ou revista gera uma discussão interminável sendo-lhes impossível chegar a um acordo ou à admissão que existem dois pontos de vista. O que há por trás da ardor com que se lançam a esse tipo de discussão é a idéia de que aquele que tem a verdade está mais qualificado, é superior ao parceiro, e, portanto detém o poder. Pode ser que um dos dois ceda, mas nele provavelmente permanecerá um traço de ressentimento que, se acumulado, o afastará do parceiro. A desvalorização constante e sutil do companheiro em várias situações de vida também provoca ressentimentos. Instruções no trânsito como se soubesse dirigir melhor, apontamento constante de defeitos realizado não com o intuito de corrigir, mas de diminuir o outro fazendo com que se sinta inferior e garantindo o poder ou a fantasia de poder para si. Não se trata de mais ou menos amor, mas de um traço de personalidade que exige a ocupação de uma posição superior para sentir-se mais poderoso que o parceiro. É um traço de personalidade que se apóia em um desejo atávico que tinha a sua função em épocas pré-históricas e em outros momentos da História, mas que hoje já não é necessário à sobrevivência. Um exemplo desse anacronismo nós o vemos na adoção de crianças geneticamente diferentes dos pais adotivos. Por outro lado os efeitos práticos de uma luta de poder na família é desestruturante. É, pois uma disputa que já não se justifica. Sendo implícita, o casal não se dá conta do que está acontecendo. A ajuda de um terapeuta de casal porá a descoberto as fontes de mútuos ressentimentos possibilitando a evitação de comportamentos e verbalizações sutis que diminuam o companheiro e evitando o desencadeamento de uma guerra surda que só se manifestará claramente quando a aversão já tiver ido longe demais.

                                                                                                      Nov./11

                                                                                              Nahman Armony

                                   Primeira publicação na revista CARAS.