VIVER SÓ OU ACOMPANHADO


        Este meu novo ofício de cronista do amor tem-me levado a ficar atento aos acontecimentos pertinentes a essa área. Em recente programa de televisão depoimentos de uma maioria de mulheres na faixa dos 30 anos dava como causa de separação as diferenças de gostos: enquanto ela apreciava a paisagem bucólica das montanhas ele preferia divertir-se na praia. Podemos multiplicar estas diferenças: gostar ou não de cinema, de ar-condicionado, de ficar em ou sair de casa, etc. Gostos que, na verdade, não são fundamentais para a vida de cada um.
        O apaixonamento passa por cima de todos os gostos. É um impulso tsunâmico avassalador que leva tudo de roldão na ânsia de abraçar e se fundir com a outra pessoa. Mas a paixão tem vida limitada. Se duas pessoas pretendem criar uma história em comum necessitam de se amar. Amor é carinho, companheirismo, ternura, confiança mútua, divisão de tarefas, satisfação de estarem juntos, mútuo amparo e outras coisas deste jaez. O sexo da paixão explode na ânsia de entredevoramento: o sexo do amor surge do carinho, da ternura, do sentimento de gratidão.
        O ideal é que paixão e amor possam caminhar juntos. Sendo a paixão um sentimento mais fugaz, a base de um relacionamento estável só poderá ser o amor. Para que paixão e amor convivam é preciso que a linha levemente sinuosa do amor seja periodicamente invadida por picos de paixão. Céu claro do amor e céu tempestuoso da paixão. Choque cósmico de estrelas espalhando brilhos fascinantes nos corações e luz mansa das auroras e vésperas enchendo as almas de calmas belezas.
        Se a paixão é irresistível, o amor está sujeito a temperaturas e temperamentos. Voltamos então ao depoimento das mulheres de 30. São mulheres socialmente e financeiramente realizadas que podem escolher entre viver sozinhas ou com um companheiro.
        A vida de casal é potencialmente mais rica e confortável. Pesquisas têm demonstrado que casados vivem mais que solteiros; os casados (ou equivalentes), podem melhor relaxar na presença de um companheiro amoroso, íntimo e confiável, recuperando-se melhor dos estresses da vida.
        Por que então, nesta amostra, a maioria dispensou o companheiro por uma banal questão de gosto? Certamente que a divergência poderia ser resolvida democraticamente, ora satisfazendo o prazer de um, ora de outro. Ou então um poderia ir ao futebol e outro ao teatro sem perturbar o básico da convivência de um casal.
        Esta pergunta merece pelo menos duas respostas. Pareceu-me que por trás da teimosia em não abrir mão em hipótese alguma de um gosto estava a necessidade de afirmação da individualidade. Ceder ao desejo do outro seria abdicar de si mesmo, da essência de sua personalidade, transformando-se em capacho, um nada, um zero à esquerda. A questão deixa de ser aquilo de que se gosta ou não e passa a ser a conservação ou não da própria essência pessoal.

        A segunda resposta está estreitamente ligada à primeira. Estamos mergulhados em uma cultura individualista. O modo de criação dos filhos da geração que agora chega aos 30 anos foi não opor obstáculos aos seus desejos. As crianças desde cedo se acostumaram a impor suas vontades aos pais. E quando adultos não conseguem conviver com desejos que limitem os seus. Com isso privam-se da delícia da íntima convivência amorosa.
        É verdade que alguns procuram vencer o individualismo e lutam por aceitar restrições às suas vontades. Alguns são bem sucedidos, outros não.
        Não quer dizer que um modo de vida seja melhor que o outro. Enquanto Tom Jobim nos diz que “é impossível ser feliz sozinho” outros dizem que amor é ilusão que só traz sofrimento. Cada um escolhe o caminho que quer e que pode. Mas não posso deixar de notar que a grande maioria das letras poéticas canta o amor e lamentam a sua perda.   
                                        Nahman Armony  

   Primeira publicação na revista CARAS

WINNICOTT, INOVADOR


        Winnicott, tendo produzido sua obra no início e durante o desenvolvimento de um período tumultuado (1950-1970) (1896-1971), dá uma importante contribuição teórica e prática para mudar a situação, criando novos paradigmas. Diante de um mundo à beira da desorganização ele encontra conceitos a partir de suas observações e de suas práticas indicando um caminho de restauração das relações humanas.
        Para melhor compreendê-lo precisamos colocá-lo em um contexto histórico. Para isso usarei o artifício de uma dialética hegeliana. Teríamos então como tese a Repressão do período vitoriano onde Freud é a figura psicanalítica proeminente; como antítese a permissividade excessiva; e para a síntese apresento paradoxalmente Winnicott e seus paradoxos um dos quais é a combinação de limites com liberdade. Exp. da folha. Nos limites da folha a liberdade é máxima.        
        Vamos rapidamente passar os olhos por esses vários períodos.
        Período repressor vitoriano. Modelos de comportamento. Estritas regras de convivência. A boa educação; o "gentleman". Autoritarismo. Verticalidade. Freud, a repressão sexual e a repressão. Recalque. Limites colocados duramente. Castração. Culpa. Medo. O limite é vivido como imposição imperativa. Desconsideração pela subjetividade e intersubjetividade; objetivação do mundo.
        Período permissivo pós-moderno. Permissividade radical. "É proibido proibir". Falta de limites. Desconsideração, violência, drogas, desordem, caos, desrespeito, desestruturação.
        Em direção à síntese. Muitos pensadores, especialmente sociólogos procuram caminhos para uma síntese. Eu não diria que Winnicott tentou propositadamente encontrar este caminho. Ele não era sociólogo. Mas sua atividade clínica especialmente com bebês levou-o a extrair vários conceitos que são novos paradigmas sendo os mais importantes, em minha opinião o conceito de "holding" e o de espaço intermediário.
        Listarei as várias mudanças de paradigma.  
        Mudança de paradigma - pulsão x relação de objeto (Fairbairn).  Na pulsão: o aparelho psíquico, pressionado por suas pulsões internas precisa descarregá-las; vai então à busca de um objeto adequado para isto. Na relação de objeto: um ser humano busca outro ser humano para se relacionar. Na linguagem de Winnicott- pulsão freudiana (instintos do id) e relação afetiva mãe-bebê (instintos do ego). Mãe-objeto e Mãe-ambiente. Maior importância à mãe-ambiente (atmosfera de afeto) que à mãe-objeto (alvo do instinto). Importância da mãe-ambiente no desenvolvimento do bebê. Importância do ambiente no desenvolvimento do ser humano. Em direção ao paradigma holístico. "Não existe esta coisa chamada bebê".
        Na relação mãe-filho o holding. Holding é uma mudança de paradigma. Nem está no paradigma do autoritarismo, nem no paradigma da permissividade.
        Paradigma holding- sustentação física e psicológica. Acolhimento. Compreensão.
Holding e limites. Limites colocados com carinho. Dos braços da mãe aos braços da lei. Atitude: firme e carinhosa. O limite é vivido como contenção necessária que não afeta a liberdade. Na castração freudiana limite como muro contra o qual a criança bate a cabeça e no holding winnicottiano como cortina que demarca o limite com flexibilidade e sem machucar. Citação de Winnicott: "... a criança provoca as reações totais do ambiente, como se buscasse uma moldura cada vez mais ampla, um círculo que teria como seu primeiro exemplo os braços ou o corpo da mãe. É possível perceber aqui uma série - o corpo da mãe, seus braços, o relacionamento dos pais, o lar, a família, incluindo os parentes próximos, a escola, o bairro com a sua delegacia, o país e suas leis". (p.411 do artigo "Tendência antissocial"). Holding é muito mais que sustentação física; é sustentação afetiva; é a percepção e mesmo a intuição das necessidades da criança e o seu atendimento
        Paradigma "mãe suficientemente boa". O conceito mãe-suficientemente boa deixa um espaço para a falha, para a falta, para o erro. O atendimento ao bebê jamais poderá ser perfeito. Mas basta que a mãe seja suficientemente boa para possibilitar o crescimento do bebê e da criança. Este conceito tem interessantes repercussões filosóficas e epistemológicas. Estamos falando de uma mãe que na maior parte do tempo, tem a sensibilidade necessária para compreender e atender as necessidades afetivas do bebê, mas que nem sempre, por uma razão ou outra, está sensível ou disponível para atender o filho. O conceito de mãe-suficientemente-boa tem repercussões filosóficas e epistemológicas influindo numa mudança paradigmática mais geral, pois a modernidade tinha como meta a busca da perfeição. Com este conceito Winnicott coloca-se fora da transcendência, pois a perfeição só lá existe. Ele nos traz para a realidade humana, isto é para a imanência. Aqui se faz necessário interrogar um outro conceito winnicottiano: o "erro necessário". É preciso que o cuidador erre para que o bebê e a criança possam se diferenciar e evoluir. Muitas vezes, diz-nos Winnicott, o analisando se empenha e faz com que o analista erre. O conceito "erro necessário" poderia nos confundir em relação à sua imanência. Mas não devemos usá-lo como pretexto para voltar a falar da Perfeição transcendente, não só porque o erro é conscientemente involuntário não estando referido a uma perfeição, como também existem erros desnecessários. Mas, mesmo estes, podem ser eventualmente aproveitados para o crescimento da díade mãe-filho ou da díade terapêutica. (Estou falando do paralelismo mãe-filho e terapeuta-cliente).
Exemplos: Simon Grolnick escreve no seu livro "O trabalho e o brinquedo": "Um dia, quase ao final da sessão estávamos tendo o que parecia uma sessão comum. Eu tinha ficado acordado até tarde, na noite anterior, e estava também evidenciando os primeiros sintomas de uma doença viral. Adormeci e tirei uma soneca durante a qual teria ocupado alguns segundos. No início, o paciente começou a conversar, enquanto eu cochilava: mais tarde, no entanto, reuniu a coragem para enfrentar-me, perguntando se a mudança de meu ritmo respiratório devia-se ao fato de eu ter adormecido. Ao mesmo tempo em que minha primeira reação seria de tentar defender-me e dar-me uma oportunidade de pensar numa estratégia, pedindo ao paciente que relacionasse ao que ele ouvira e sentira, decidi assumir a acusação e contar a ele acerca de minha ida tarde para a cama, na noite anterior, bem como acerca da sensação de estar ficando doente. Após certa hesitação, ele desandou a chorar. Quando conseguiu se conter, falou que tinha certeza de que eu não lhe contaria a verdade e que eu tentaria, tal como eu o pensara, proteger-me. Ele explicou suas lágrimas como um sinal de gratidão e de aproximação para comigo. E continuou, estabelecendo associações com o incidente. Ambos os pais haviam sempre tentado encobrir suas falhas pessoais de inúmeras maneiras. Isso o fizera sentir que teria de ser perfeito para ganhar seu amor. Estava evidente que a parte dele que poderia apresentar falhas teria que ser enterrada, e não receberia validação de parte de seus pais. Ele sentiu que eu atingira uma área que não tinha sido atingida durante sua psicoterapia anterior. Seu primeiro terapeuta não admitia erros" (ps.120-121). Outro exemplo: “Uma analisanda muito emocionada, não contendo o choro falou-me de um paciente seu que a tinha afetado profundamente. A intensidade do sentimento de minha analisanda fez com que eu me comovesse e deixa-se escapar lágrimas que ela notou. Eu disse que a intensidade de seus sentimentos tinha-me tocado. Na sessão seguinte ela apresentou duas reações: disse que se sentiu aliviada e confortada com minhas lágrimas, pois ela percebeu a dificuldade que estava tendo de, na sua tese de doutorado, fazer uma liga entre o intelectual e a vida. Por outro lado teve sonhos estranhíssimos, sonhos dentro de sonhos dos quais apresentarei alguns elementos dispersos: no sonho ela havia adormecido e ao acordar tudo estava fora de lugar em sua casa. Tinha cortado seu cabelo. Pombos invadiram sua casa e sua mãe a olhava pela janela. No sonho ela adormeceu de novo e sonhou com um cabeleireiro, com uma cabeleireira, com uma faxineira e comigo. Eu falei da dificuldade mas também da possibilidade de ultrapassar preconceitos”.
Dificilmente poderemos falar de erros em psicanálise. Talvez caiba falar em erro quando uma intervenção do psicanalista provoca situações irreversíveis como desistência de tratamento. Mas se adotarmos um ponto de vista não onipotente e holístico poderemos dizer que cada terapeuta devido ao seu temperamento e personalidade tem áreas de atuação que vão de extremamente adequadas a extremamente inadequadas. Se um tratamento não progride ou nele se criam situações irreconciliáveis podemos pensar que aquele terapeuta não era o adequado para aquele analisando e que o melhor que pode acontecer é mudar de terapeuta. Imaginemos que os psicanalistas formem uma comunidade. Dentro desta comunidade haverão aqueles mais apropriados, menos apropriados, e os inapropriados para tratar de certa pessoa. Assim, se não tivermos uma visão individualista, mas sim holística será escolhido um terapeuta apropriado. Ora, um analisando desistir de um tratamento pode ter exatamente este sentido: de buscar um terapeuta apropriado. É claro que esta é uma situação utópica impossível de existir em um sistema capitalista.   

13-   Outro paradigma - o antissocial como esperança e pedido de socorro. Uma criança que não tem um atendimento suficiente bom na fase de dependência absoluta sofre uma privação (privation - ausência [Dicionário Michaelis]), uma privação que para ela não tem rosto; é simplesmente um acontecimento da natureza assim como o terremoto, as enchentes, etc. Isso é assim porque nessa fase ainda não há uma diferenciação eu---não-eu. Já na fase da dependência relativa a criança reconhece a mãe como um não-eu e a responsabiliza pelo comportamento que a faz sofrer. Um bebê que teve um atendimento suficientemente bom e deixou de tê-lo sofre de uma deprivação (deprivation - perda). Em relação à deprivação ele pode ter reações anti-sociais que vão desde a mentira, ao roubo e à agressividade destrutiva. Com o ato anti-social ele tenta chamar a atenção para si, na esperança de voltar a ter um atendimento suficientemente bom. A agressividade destrutiva pode ser um resultado do fracasso, mas é ao mesmo tempo um repto para que se ponham limites à sua ação. A criança, o adolescente e o adulto durante um certo tempo são recuperáveis. A partir de certo ponto o comportamento anti-social se estrutura e dificilmente é reversível. De qualquer maneira, este ponto de vista estabelece um novo paradigma para delinqüentes ainda passíveis de recuperação. Um paradigma que vai para além da psicanálise. Sem dúvida poderia ser também um paradigma para juristas.    
14-   Paradigma criatividade: Criatividade não tem para Winnicott o significado de fazer algo novo. Claro que isso também. Mas, basicamente a criatividade é sentir que cada objeto do mundo foi, digamos, onipotentemente criado pela própria pessoa. Isto liga o ser humano inextricavelmente ao mundo dando-lhe um sentido e uma cor pessoal. Tudo isso começa quando a mãe suficientemente boa permite que o bebê viva um "momento de ilusão".
Momento de ilusão: Quando o bebê sente fome forma-se nele a expectativa de algo que vai terminar sua fome. Quando no momento da fome o seio aparece, ele tem a ilusão de havê-lo criado. O seio então é sentido como tendo sido criado por ele. O momento de ilusão é uma experiência de onipotência. Foi ele o bebê quem criou o mundo. Esta é uma experiência decisiva, pois lhe permite que venha a ser uma pessoa com consistência e organicamente ligada ao mundo. E esta é a fórmula geral de Winnicott para o conhecimento e relação com o mundo. O mundo é apresentado ao bebê e ao ser humano em geral no momento em que esse ser humano está indo de encontro ao mundo. O cuidador não impõe o mundo àquele que está sob seu cuidado. Ele o apresenta no momento azado, isto é, no momento em que a criança ou o analisando está pronto para criá-lo. A fórmula paradoxal aqui é: criar o que já existe. Uma variação desta formula é "recriar o que já existe" isto é, dar a sua contribuição pessoal a um objeto do mundo. Desta forma cada um acrescenta ao consenso, àquilo que é objetivamente percebido algo de sua subjetividade recriando o objeto. O objeto é ao mesmo tempo objetivamente percebido e subjetivamente concebido tal qual nos primórdios aconteceu com o seio. Esta é também uma mudança de paradigma que ficará mais evidente comparando-se uma citação de Freud a uma de Winnicott. Citação de Freud: Freud e a imposição: "O superego conservará o caráter do pai, e quanto mais intenso foi o complexo de Édipo e mais rapidamente se produziu a sua repressão (pela influência da autoridade, a doutrina religiosa, a educação, a leitura), tanto mais rigoroso será depois o império do superego como consciência moral, talvez também como sentimento inconsciente de culpa, sobre o ego".
Winnicott e a apresentação: "Fica claro que, de acordo com a teoria que uso em meu trabalho, você está possibilitando ao seu filho desenvolver um sentido de certo e de errado ao ser uma pessoa confiável nessa fase formativa inicial das experiências da vida dele. Se não tiver êxito com o seu bebê desse modo (e certamente se sairá melhor com um bebê do que com um outro), terá de tirar o melhor proveito possível de ser estritamente um ser humano, embora saiba que coisas muito melhores poderiam estar acontecendo no processo de desenvolvimento natural da criança. Se fracassar por completo, então deve tentar implantar idéias de certo e errado através do ensino e do treinamento assíduo. Mas isso é um substituto para o procedimento realmente válido, é uma confissão de fracasso e você vai detestar essa idéia; e, em todo caso, esse método só funciona desde que você, ou alguém atuando no seu lugar, esteja presente a fim de impor a sua vontade. Por outro lado, se puder dar a partida para o seu bebê de modo que, através da sua confiabilidade, ele desenvolva um sentido pessoal de certo e errado, em vez de medos primitivos e toscos de retaliação, você descobrirá mais tarde que pode reforçar as idéias de seu filho e enriquecê-lo com as suas próprias idéias".
É preciso que no gesto criativo esteja a mãe presente para recebê-lo. Caso contrário a criatividade se eclipsa. Vejamos uma carta de Winnicott a M.Klein de 17 de novembro de 1972: "o que eu queria na sexta-feira era sem dúvida que houvesse algum movimento de sua parte para com o gesto que fiz naquele trabalho. Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através deste gesto se ninguém vier ao seu encontro. Acho que eu estava querendo algo que não tenho nenhum direito de esperar de seu grupo e que tem a natureza de um ato terapêutico, algo que não consegui em nenhuma de minhas duas longas análises, embora tenha conseguido muitas outras coisas" (pag.30 - "O gesto espontâneo"). Também é preciso que a Mãe aceite as contribuições transformadoras do filho. Outro trecho da mesma carta: "Pessoalmente acho que é muito importante que seu  trabalho seja reafirmado por pessoas que façam descobertas à sua própria maneira e que apresentem o que descobrem em sua própria linguagem. É desse modo que a linguagem será mantida viva". (idem).       
15-   OUTRO PARADIGMA - OBJETO E ESPAÇO POTENCIAL (TRANSICIONAL). A mãe suficientemente boa está em estado de "preocupação materna primária" durante a qual a díade vive uma fase de fusão o que permite que a mãe "adivinhe" as necessidades do bebê atendendo-as imediatamente. Bebê e mãe vivem uma experiência de fusão. Isto não significa que a mãe não se diferencie do bebê. Ela sabe que se trata de dois seres distintos. Ela continua tendo uma vida para além do bebê, embora este seja prioridade, uma prioridade acompanhada de um sentimento de fusão. O que quer dizer fusão? Quer dizer que ela é o bebê mesmo quando exerce funções, comportamentos e responsabilidades que nada têm a ver com o bebê. Ela se amplia com o filho que preenche o seu corpo-psique as 24 horas do dia. Pelo lado do bebê a psicologia experimental e a neurociência provaram a sua capacidade de uma incipiente percepção e discriminação de objetos. Sob o ponto de vista estritamente sensorial (assim como acontece com a mãe) não se poderia falar de fusão; o que a mãe percebe é diferente do que ele percebe. Mas disso ele nada sabe e sua experiência é de que a mãe e ele são um único ser. Ele é o SER parmenidiano a única existência do cosmos. Tudo o que acontece é por conta de sua onipotência. A mãe surge no momento em que ele a necessita por conta de sua onipotência.  
16-   Fase de dependência relativa- A mãe deixa de atender imediatamente as necessidades do bebê. Isso o faz sentir uma "descontinuidade de ser" provocando ansiedades impensáveis: cair para sempre, desintegrar-se, desconexão corpo-psique, desorientação, etc. Antes que tal coisa aconteça o bebê preenche o espaço vazio da descontinuidade com um intelecto incipiente e com o uso de um objeto transicional (objeto-mãe e não-mãe) que, ao aparecer cria o espaço potencial. Este espaço potencial, dependendo do contexto em que é usado, adquiriu muitos outros nomes: espaço transicional (muito usado), espaço intermediário, espaço do brincar, terceiro espaço e outros. O objeto transicional é ao mesmo tempo objetivo e subjetivo (é e não é a mãe). É o que permite o brincar da criança. Ele pode destruir ilusoriamente sem destruir realmente. Por isso o espaço transicional é também chamado de espaço da ilusão. Ilusão aqui não significa engano, ser iludido. Designa um lócus epistemológico. É como se vive o mundo. A lua pode ser ao mesmo tempo um objeto material e um objeto mítico romântico. O exemplo mais didático são as brincadeiras infantis com bonecos-família, que são objetos transicionais, pois ao mesmo tempo são imagens inanimadas (objetos objetivamente percebidos), às quais a criança dá vida inventando histórias (objetos subjetivamente concebidos). Na época vitoriana cientificista os homens se esforçavam em se manter no espaço objetivo, desvalorizando e repudiando a subjetividade que era inclusive vista como epistemologicamente perigosa. Com isto eles se colocavam numa camisa de força que os impedia de realizar variações com o objeto objetivo e também os impedia de sentir o mundo como parte de si mesmos e não como algo separado.  
O espaço potencial e o objeto transicional são uma mudança de paradigma. Até então só se falava de um mundo subjetivo e de um mundo objetivo. O espaço potencial que recebeu depois vários outros nomes (o mais freqüente é espaço transicional ou área transicional usando-se também espaço intermediário), é um espaço onde o objetivo e subjetivo se entrelaçam. O objeto transicional soldado ao espaço potencial é um objeto visto por uma pessoa como tendo ao mesmo tempo propriedades subjetivas e objetivas. Um contraponto à objetividade cientifica e à subjetividade psicótica, ambas imobilizadoras do pensamento e da ação. Um exemplo didático: um viúvo de poucas posses casa-se de novo. Ele não tem condições de comprar uma nova cama. Existem 3 diferentes maneiras possíveis de sua nova esposa vivenciar o uso de uma cama já desfrutada pela ex-cônjuge: 1- ser absolutamente objetiva e não se incomodar em usá-la; nesse caso estará reprimindo seus sentimentos. Estamos no terreno da neurose 2- ser absolutamente subjetiva a ponto de não poder usá-la em circunstância nenhuma. Aqui o terreno é da psicose. 3- sentir-se importunada pelas fantasias despertadas pela cama, mas podendo negociar consigo mesma e com o marido, sendo-lhe possível até usá-la, acreditando em sua capacidade de lidar com os seus sentimentos e fantasias. É aqui que nos deparamos com o espaço intermediário no qual, brincando e se engalfinhando, mesclam-se o subjetivamente concebido e o objetivamente percebido. Traduzindo em palavras a esposa poderia sentir mais ou menos o seguinte: "Certamente me incomoda o fato do meu marido ter feito amor nesta cama com outra mulher. Mas sei que isto é um sentimento que nada tem a ver com a realidade. A cama nem é a mulher e nem as noites de amor. Não desejo que estes sentimentos venham a perturbar minha coabitação e certamente eles se diluirão no tempo e espero poder vir a ficar à vontade com meu marido no leito nupcial, sem problemas de ciúme e contaminação". Ela não nega seus sentimentos, mas estes não a impedem de enxergar e levar em consideração o externo, a realidade objetiva.
Winnicott diz que vivemos a maior parte do tempo numa zona intermediária, nem externa, nem interna. Esta zona intermediária é um prolongamento do espaço potencial, que tem este nome por justamente ser um espaço de potência, de criação, onde se brinca com o espaço interno sob as vistas do externo e vice-versa. Nem a perspectiva objetiva nem a subjetiva são criativas. Elas são imobilizadoras das transformações psíquicas. A objetiva pelo fato de nos enquadrarmos no consensualmente acordado não inovando. A subjetiva pelo fato de não permitir influências do ambiente no psiquismo mantendo-se o subjetivo tal e qual. A transicional, esta conversa entre o objetivo e subjetivo é que permite transformações no psiquismo. Sem dúvida uma visão diferente da idéia de uma objetividade que permitiria realmente conhecer o mundo.


Vimos até agora algumas mudanças de paradigma: 1- Paradigma "holding" (relação afetiva mãe-filho. Relação de ego.). 2- Paradigma "mãe suficientemente boa". Um outro conceito de "erro". 3- Paradigma holístico. 4- Paradigma "deprivação". 5- Paradigma criatividade. 6- Paradigma "espaço potencial" e objeto "transicional". Todos têm a ver com a clínica, mas também atingem outros ramos do saber humano, tais como a criminologia, a educação, a filosofia e a epistemologia. A seguir falarei --- repetindo-me um pouco, mas indo mais adiante --- daqueles paradigmas que sem deixarem de ter importância para a clínica mais fortemente se aproximam da filosofia e de uma nova epistemologia.
1- Espaço intermediário 2- Uso do paradoxo (exp.: objeto e espaço transicionais. Criar o que já existe. Adoecer sadiamente. Estar só em presença da mãe. Medo do colapso. Erro necessário. Amor cruel.). Davi L. Bogomoletz distingue a lógica clássica, da lógica dialética hegeliana e da lógica paradoxal. Na lógica clássica a contradição não é aceita; um dos termos tem de ser eliminado; é a lógica do ou isso ou aquilo. Na lógica dialética os termos contraditórios interagem e se ultrapassam criando um terceiro termo. Finalmente, na lógica paradoxal os dois oponentes coexistem sem se integrarem (como na lógica dialética) e sem se destruírem (como na lógica clássica). 3- Vida criativa 4- teoria exemplar e teoria modelar; teoria e teorização; modelo e singularidade.

 Winnicott é um pensador aberto. Não se fecha em sistemas teóricos nem tenta construir sistemas teóricos coerentes. Ele não cria teorias. Ele (a partir de certa época) faz teorizações singulares, isto é, teoriza a partir de tratamentos psicanalíticos que está realizando. Estas teorizações muitas vezes confluem e configuram uma teoria. Ou, podemos dizer que há várias confluências de teorizações e algumas teorias. Certos conceitos seus são de tal forma interligados que formam uma totalidade impossível de destrinchar. Não se consegue apresentar um conceito sem referir-se a vários outros. E, no entanto, não são conceitos fixos, mas conceitos flexíveis que se adaptam às realidades clínicas que estão sendo vividas e descritas. A principal preocupação de Winnicott não é criar teorias, mas transmitir as suas percepções e sensações em relação à clínica que está desenvolvendo. Ele não se perturba com as pequenas incongruências lógicas de seus inúmeros artigos. Isto porque ele está mais ligado no desejo de transmitir a experiência viva do que construir uma teoria coerente. E, no entanto, quando o professor tenta transmitir a teoria tem muitas vezes a sensação de que a transmissão sucessiva de idéias é fraca, sendo sua vontade transmitir todas as idéias simultaneamente o que é, claro, impossível. É verdade que existem alguns inícios, mas a partir de certo ponto parece que temos nas mãos uma bola redonda que só poderia ser apresentada na sua totalidade de bola. Uma totalidade que inclui temas sociais, familiares, biológicos, éticos, etc. Uma abordagem holística.

Finalmente --- e aqui "finalmente" tem o sentido de um fecho da maior relevância, pois abre caminho para novos desenvolvimentos que envolvem a própria posição do homem no mundo atual --- finalmente, repito, falarei do artigo "O lugar em que vivemos", capítulo VIII do livro "O Brincar e a Realidade". Lá, em resumo, ele equipara o espaço potencial a um espaço do brincar e ao espaço cultural. E diz que o homem vive neste espaço que como já vimos tem outros nomes: espaço transicional, zona intermediária, etc. O que eu diria é que na modernidade vitoriana o homem tentou viver em um espaço objetivo o que o obrigou a recalcar a sua subjetividade com conseqüências danosas para o seu viver. O homem atual aceita viver no espaço transicional, isto é, aceita a convivência do objetivo com o subjetivo, sendo-lhe menos necessário utilizar a dinâmica do recalque. A sua subjetividade e suas fantasias ficam ao seu alcance através do processo de dissociação. A dissociação mantém as fantasias e os inúmeros desejos paradoxais ao alcance da consciência permitindo que sejam acessadas e controladas.
Fazer um coquetel com doses sensatas e equilibradas de objetividade e subjetividade; viver num espaço intermediário que funcione suficientemente bem. Esta é talvez a mudança de paradigma mais ampla e promissora com a qual Winnicott nos presenteou.    
                                        Nahman Armony     

                                               Maio/2011

PEQUENA HISTÓRIA DE AMOR

Aberto em dunas
Orvalhado em sais
Duros muros de cristais
Brilhantes, alucinantes
Olhos diamantes em choro cego
Granizo ponteagudo
Ferindo carnes
Bálsamo invertido
Dardos diáfanos
Penetrando espaços
Desfazendo laços
Violando intimidades
Alvos esquivos

A flecha dor-amor
A ferida-vida
O sim-não.

Dá-me, Senhor
Doi-me, Senhor
Doi-me muito, doi-me tanto,
Doai-me todo, Senhor.

O branco, o azul
A cor.
O berço-zero
O Descanso
O Remanso
A rua interna, o som da terra;
Devagar a vida recomeça
O seu eterno recomeçar.

A lua branca
       Platinada?
       Imobilizada?
       Aprisionada?

O realejo repete o canto de amor
Antigo como a velha dor.
A vida vai começar? Recomeçar?
Por onde?
Como?

Espectador em um cinema 
Faço suspense.

                            Nahman Armony 

INSEGURANÇA/FLUTUAÇÃO


         O homem pré-histórico vivia em estado de insegurança ameaçado que estava por animais predadores, doenças, plantas venenosas, condições climáticas, etc. Provavelmente, aos poucos, na medida em que evoluía mental e tecnologicamente o sentimento de insegurança foi-se reduzindo não deixando porém de existir. A segurança proporcionada pelo domínio do fogo e pela multiplicação e aperfeiçoamento de objetos de defesa e proteção não eram suficientes para deixa-los tranquilos. Foi preciso inventar seres supra-humanos para se sentirem protegidos. Mas o sentimento dominante ainda era de imprevisibilidade, insegurança, incerteza. Com as religiões monoteístas inventou-se uma segurança pós-morte; lá, no reino dos mortos, se encontraria a paz, a tranqüilidade, o amor, a estabilidade. Com a filosofia de Descartes e a física de Newton a mentalidade do homem foi mudando. Descartes e Newton prometiam uma felicidade plena que seria alcançada através de um pensamento racional iluminista e através do desenvolvimento das ciências. Nesse período concebia-se o mundo como um grande aparelho mecânico capaz de realizar previsões e intervenções precisas. Acreditava-se que o desenvolvimento da ciência com suas incríveis descobertas e realizações transformariam o mundo em verdadeiro paraíso de felicidade, tranqüilidade, segurança, estabilidade. Não haveria mais doenças e as máquinas, substitutivas do homem e mais eficientes que ele não deixariam que faltasse nada. Estabeleceu-se um clima de otimismo e o homem que até então aceitava a incerteza como parte da vida descartou-se dela e passou a exigir de si mesmo, do mundo e dos outros, estabilidade previsibilidade, segurança, felicidade permanente. Esta é a mentalidade que ainda tem seu lugar embora já existam muitas brechas por onde a insegurança e instabilidade se infiltram provocando abalos em todos os setores da vida humana, inclusive o amoroso. Consoante as expectativas de um período do qual estamos saindo, os casais deveriam se encontrar, namorar, casar e viver felizes para sempre. Havia um simulacro de estabilidade e sossego. Uma estabilidade tipo “eu mando, você obedece”; a paz reinava à custa de sacrifício e sofrimento eclipsados, mas isto era ignorado e o maior troféu era “o casal feliz”, “a família feliz”.
         Com o advento das relações igualitárias as divergências vieram à tona. A mentalidade atual não aceita que um dos membros do casal fique numa posição submissa, reprimindo seus desejos e sentimentos para manter uma suposta harmonia. Mas aqui surge uma questão: como conciliar as diferenças. E, mais especialmente, como cada membro do casal vai lidar com a sensibilidade e susceptibilidade do outro. Se eu digo alguma coisa que fere o outro devo então deixar de dizer? Até onde devo passar por cima de meus sentimentos para respeitar a sensibilidade do parceiro? Será que o parceiro está tendo este mesmo cuidado? Será que o respeito que tenho por seus sentimentos é o mesmo que ele tem pelos meus? Até onde devo me sacrificar pelo amado (a)?
         Não existe uma resposta precisa para essas questões. Ou, se existe ela é fugidia e depende da sensibilidade momentânea, do tempo pontual acoplado às experiências cotidianas, ao estado de espírito, ao estado de saúde. A bússola se encontra no âmago temporal da relação. Realiza-se uma ação e há uma resposta que deverá ser levada em conta para a próxima ação e assim por diante. Haverá momentos em que um dos dois estará em condições de receber uma maior carga potencialmente mobilizadora e poderá ser mais compreensivo. Haverá outros momentos em que as circunstâncias o tornarão mais frágil e isto deverá ser levado em consideração. Se imaginarmos uma linha imaginária estendida entre os pólos 1- “pensando em mim” e 2-“pensando no outro” com gradações ao longo do trajeto poderemos dizer que a possibilidade de uma relação satisfatória está no deslizamento do casal pela linha imaginária, ocupando a cada momento o ponto mais conveniente para o equilíbrio flutuante do casal.
                                              
                                               Nahman Armony

    Primeira publicação na revista CARAS.