Winnicott, tendo produzido sua obra no
início e durante o desenvolvimento de um período tumultuado (1950-1970)
(1896-1971), dá uma importante contribuição teórica e prática para mudar a
situação, criando novos paradigmas. Diante de um mundo à beira da
desorganização ele encontra conceitos a partir de suas observações e de suas
práticas indicando um caminho de restauração das relações humanas.
Para melhor compreendê-lo precisamos
colocá-lo em um contexto histórico. Para isso usarei o artifício de uma
dialética hegeliana. Teríamos então como tese a Repressão do período vitoriano
onde Freud é a figura psicanalítica proeminente; como antítese a permissividade
excessiva; e para a síntese apresento paradoxalmente Winnicott e seus paradoxos
um dos quais é a combinação de limites com liberdade. Exp. da folha. Nos
limites da folha a liberdade é máxima.
Vamos rapidamente passar os olhos por
esses vários períodos.
Período repressor vitoriano. Modelos de
comportamento. Estritas regras de convivência. A boa educação; o
"gentleman". Autoritarismo. Verticalidade. Freud, a repressão sexual
e a repressão. Recalque. Limites colocados duramente. Castração. Culpa. Medo. O
limite é vivido como imposição imperativa. Desconsideração pela subjetividade e
intersubjetividade; objetivação do mundo.
Período permissivo pós-moderno.
Permissividade radical. "É proibido proibir". Falta de limites.
Desconsideração, violência, drogas, desordem, caos, desrespeito,
desestruturação.
Em direção à síntese. Muitos pensadores,
especialmente sociólogos procuram caminhos para uma síntese. Eu não diria que
Winnicott tentou propositadamente encontrar este caminho. Ele não era
sociólogo. Mas sua atividade clínica especialmente com bebês levou-o a extrair
vários conceitos que são novos paradigmas sendo os mais importantes, em minha
opinião o conceito de "holding" e o de espaço intermediário.
Listarei
as várias mudanças de paradigma.
Mudança de paradigma - pulsão x relação
de objeto (Fairbairn). Na pulsão: o
aparelho psíquico, pressionado por suas pulsões internas precisa
descarregá-las; vai então à busca de um objeto adequado para isto. Na relação
de objeto: um ser humano busca outro ser humano para se relacionar. Na
linguagem de Winnicott- pulsão freudiana (instintos do id) e relação afetiva
mãe-bebê (instintos do ego). Mãe-objeto e Mãe-ambiente. Maior importância à
mãe-ambiente (atmosfera de afeto) que à mãe-objeto (alvo do instinto).
Importância da mãe-ambiente no desenvolvimento do bebê. Importância do ambiente
no desenvolvimento do ser humano. Em direção ao paradigma holístico. "Não
existe esta coisa chamada bebê".
Na relação mãe-filho o holding. Holding
é uma mudança de paradigma. Nem está no paradigma do autoritarismo, nem no
paradigma da permissividade.
Paradigma holding- sustentação física e
psicológica. Acolhimento. Compreensão.
Holding e limites.
Limites colocados com carinho. Dos braços da mãe aos braços da lei. Atitude: firme
e carinhosa. O limite é vivido como contenção necessária que não afeta a
liberdade. Na castração freudiana limite como muro contra o qual a criança bate
a cabeça e no holding winnicottiano como cortina que demarca o limite com
flexibilidade e sem machucar. Citação de Winnicott: "... a criança provoca as reações totais do ambiente, como se
buscasse uma moldura cada vez mais ampla, um círculo que teria como seu
primeiro exemplo os braços ou o corpo da mãe. É possível perceber aqui uma
série - o corpo da mãe, seus braços, o relacionamento dos pais, o lar, a
família, incluindo os parentes próximos, a escola, o bairro com a sua
delegacia, o país e suas leis". (p.411 do artigo "Tendência
antissocial"). Holding é muito mais que sustentação física; é sustentação
afetiva; é a percepção e mesmo a intuição das necessidades da criança e o seu
atendimento
Paradigma "mãe suficientemente
boa". O conceito mãe-suficientemente boa deixa um espaço para a falha,
para a falta, para o erro. O atendimento ao bebê jamais poderá ser perfeito.
Mas basta que a mãe seja suficientemente boa para possibilitar o crescimento do
bebê e da criança. Este conceito tem interessantes repercussões filosóficas e
epistemológicas. Estamos falando de uma mãe que na maior parte do tempo, tem a
sensibilidade necessária para compreender e atender as necessidades afetivas do
bebê, mas que nem sempre, por uma razão ou outra, está sensível ou disponível
para atender o filho. O conceito de mãe-suficientemente-boa tem repercussões
filosóficas e epistemológicas influindo numa mudança paradigmática mais geral,
pois a modernidade tinha como meta a busca da perfeição. Com este conceito
Winnicott coloca-se fora da transcendência, pois a perfeição só lá existe. Ele
nos traz para a realidade humana, isto é para a imanência. Aqui se faz
necessário interrogar um outro conceito winnicottiano: o "erro
necessário". É preciso que o cuidador erre para que o bebê e a criança
possam se diferenciar e evoluir. Muitas vezes, diz-nos Winnicott, o analisando
se empenha e faz com que o analista erre. O conceito "erro
necessário" poderia nos confundir em relação à sua imanência. Mas não
devemos usá-lo como pretexto para voltar a falar da Perfeição transcendente,
não só porque o erro é conscientemente involuntário não estando referido a uma
perfeição, como também existem erros desnecessários. Mas, mesmo estes, podem
ser eventualmente aproveitados para o crescimento da díade mãe-filho ou da
díade terapêutica. (Estou falando do paralelismo mãe-filho e terapeuta-cliente).
Exemplos: Simon
Grolnick escreve no seu livro "O trabalho e o brinquedo": "Um dia, quase ao final da sessão
estávamos tendo o que parecia uma sessão comum. Eu tinha ficado acordado até
tarde, na noite anterior, e estava também evidenciando os primeiros sintomas de
uma doença viral. Adormeci e tirei uma soneca durante a qual teria ocupado
alguns segundos. No início, o paciente começou a conversar, enquanto eu
cochilava: mais tarde, no entanto, reuniu a coragem para enfrentar-me,
perguntando se a mudança de meu ritmo respiratório devia-se ao fato de eu ter
adormecido. Ao mesmo tempo em que minha primeira reação seria de tentar
defender-me e dar-me uma oportunidade de pensar numa estratégia, pedindo ao
paciente que relacionasse ao que ele ouvira e sentira, decidi assumir a
acusação e contar a ele acerca de minha ida tarde para a cama, na noite
anterior, bem como acerca da sensação de estar ficando doente. Após certa
hesitação, ele desandou a chorar. Quando conseguiu se conter, falou que tinha
certeza de que eu não lhe contaria a verdade e que eu tentaria, tal como eu o
pensara, proteger-me. Ele explicou suas lágrimas como um sinal de gratidão e de
aproximação para comigo. E continuou, estabelecendo associações com o
incidente. Ambos os pais haviam sempre tentado encobrir suas falhas pessoais de
inúmeras maneiras. Isso o fizera sentir que teria de ser perfeito para ganhar
seu amor. Estava evidente que a parte dele que poderia apresentar falhas teria
que ser enterrada, e não receberia validação de parte de seus pais. Ele sentiu
que eu atingira uma área que não tinha sido atingida durante sua psicoterapia
anterior. Seu primeiro terapeuta não admitia erros" (ps.120-121).
Outro exemplo: “Uma analisanda muito
emocionada, não contendo o choro falou-me de um paciente seu que a tinha
afetado profundamente. A intensidade do sentimento de minha analisanda fez com
que eu me comovesse e deixa-se escapar lágrimas que ela notou. Eu disse que a
intensidade de seus sentimentos tinha-me tocado. Na sessão seguinte ela
apresentou duas reações: disse que se sentiu aliviada e confortada com minhas
lágrimas, pois ela percebeu a dificuldade que estava tendo de, na sua tese de
doutorado, fazer uma liga entre o intelectual e a vida. Por outro lado teve
sonhos estranhíssimos, sonhos dentro de sonhos dos quais apresentarei alguns
elementos dispersos: no sonho ela havia adormecido e ao acordar tudo estava
fora de lugar em sua casa. Tinha cortado seu cabelo. Pombos invadiram sua casa
e sua mãe a olhava pela janela. No sonho ela adormeceu de novo e sonhou com um cabeleireiro,
com uma cabeleireira, com uma faxineira e comigo. Eu falei da dificuldade mas
também da possibilidade de ultrapassar preconceitos”.
Dificilmente poderemos
falar de erros em psicanálise. Talvez caiba falar em erro quando uma
intervenção do psicanalista provoca situações irreversíveis como desistência de
tratamento. Mas se adotarmos um ponto de vista não onipotente e holístico
poderemos dizer que cada terapeuta devido ao seu temperamento e personalidade
tem áreas de atuação que vão de extremamente adequadas a extremamente
inadequadas. Se um tratamento não progride ou nele se criam situações
irreconciliáveis podemos pensar que aquele terapeuta não era o adequado para
aquele analisando e que o melhor que pode acontecer é mudar de terapeuta.
Imaginemos que os psicanalistas formem uma comunidade. Dentro desta comunidade
haverão aqueles mais apropriados, menos apropriados, e os inapropriados para tratar
de certa pessoa. Assim, se não tivermos uma visão individualista, mas sim
holística será escolhido um terapeuta apropriado. Ora, um analisando desistir
de um tratamento pode ter exatamente este sentido: de buscar um terapeuta
apropriado. É claro que esta é uma situação utópica impossível de existir em um
sistema capitalista.
13- Outro paradigma - o antissocial como
esperança e pedido de socorro. Uma criança que não tem um atendimento
suficiente bom na fase de dependência absoluta sofre uma privação (privation -
ausência [Dicionário Michaelis]), uma privação que para ela não tem rosto; é
simplesmente um acontecimento da natureza assim como o terremoto, as enchentes,
etc. Isso é assim porque nessa fase ainda não há uma diferenciação eu---não-eu.
Já na fase da dependência relativa a criança reconhece a mãe como um não-eu e a
responsabiliza pelo comportamento que a faz sofrer. Um bebê que teve um
atendimento suficientemente bom e deixou de tê-lo sofre de uma deprivação
(deprivation - perda). Em relação à deprivação ele pode ter reações
anti-sociais que vão desde a mentira, ao roubo e à agressividade destrutiva.
Com o ato anti-social ele tenta chamar a atenção para si, na esperança de
voltar a ter um atendimento suficientemente bom. A agressividade destrutiva
pode ser um resultado do fracasso, mas é ao mesmo tempo um repto para que se
ponham limites à sua ação. A criança, o adolescente e o adulto durante um certo
tempo são recuperáveis. A partir de certo ponto o comportamento anti-social se
estrutura e dificilmente é reversível. De qualquer maneira, este ponto de vista
estabelece um novo paradigma para delinqüentes ainda passíveis de recuperação.
Um paradigma que vai para além da psicanálise. Sem dúvida poderia ser também um
paradigma para juristas.
14- Paradigma criatividade: Criatividade não tem
para Winnicott o significado de fazer algo novo. Claro que isso também. Mas,
basicamente a criatividade é sentir que cada objeto do mundo foi, digamos,
onipotentemente criado pela própria pessoa. Isto liga o ser humano
inextricavelmente ao mundo dando-lhe um sentido e uma cor pessoal. Tudo isso
começa quando a mãe suficientemente boa permite que o bebê viva um
"momento de ilusão".
Momento de ilusão:
Quando o bebê sente fome forma-se nele a expectativa de algo que vai terminar
sua fome. Quando no momento da fome o seio aparece, ele tem a ilusão de havê-lo
criado. O seio então é sentido como tendo sido criado por ele. O momento de ilusão
é uma experiência de onipotência. Foi ele o bebê quem criou o mundo. Esta é uma
experiência decisiva, pois lhe permite que venha a ser uma pessoa com
consistência e organicamente ligada ao mundo. E esta é a fórmula geral de
Winnicott para o conhecimento e relação com o mundo. O mundo é apresentado ao
bebê e ao ser humano em geral no momento em que esse ser humano está indo de
encontro ao mundo. O cuidador não impõe o mundo àquele que está sob seu
cuidado. Ele o apresenta no momento azado, isto é, no momento em que a criança
ou o analisando está pronto para criá-lo. A fórmula paradoxal aqui é: criar o
que já existe. Uma variação desta formula é "recriar o que já existe"
isto é, dar a sua contribuição pessoal a um objeto do mundo. Desta forma cada
um acrescenta ao consenso, àquilo que é objetivamente percebido algo de sua
subjetividade recriando o objeto. O objeto é ao mesmo tempo objetivamente
percebido e subjetivamente concebido tal qual nos primórdios aconteceu com o
seio. Esta é também uma mudança de paradigma que ficará mais evidente
comparando-se uma citação de Freud a uma de Winnicott. Citação de Freud: Freud
e a imposição: "O superego
conservará o caráter do pai, e quanto mais intenso foi o complexo de Édipo e
mais rapidamente se produziu a sua repressão (pela influência da autoridade, a
doutrina religiosa, a educação, a leitura), tanto mais rigoroso será depois o
império do superego como consciência moral, talvez também como sentimento
inconsciente de culpa, sobre o ego".
Winnicott e a
apresentação: "Fica claro que, de
acordo com a teoria que uso em meu trabalho, você está possibilitando ao seu
filho desenvolver um sentido de certo e de errado ao ser uma pessoa confiável
nessa fase formativa inicial das experiências da vida dele. Se não tiver êxito
com o seu bebê desse modo (e certamente se sairá melhor com um bebê do que com
um outro), terá de tirar o melhor proveito possível de ser estritamente um ser
humano, embora saiba que coisas muito melhores poderiam estar acontecendo no
processo de desenvolvimento natural da criança. Se fracassar por completo,
então deve tentar implantar idéias de certo e errado através do ensino e do
treinamento assíduo. Mas isso é um substituto para o procedimento realmente
válido, é uma confissão de fracasso e você vai detestar essa idéia; e, em todo
caso, esse método só funciona desde que você, ou alguém atuando no seu lugar,
esteja presente a fim de impor a sua vontade. Por outro lado, se puder dar a
partida para o seu bebê de modo que, através da sua confiabilidade, ele desenvolva
um sentido pessoal de certo e errado, em vez de medos primitivos e toscos de
retaliação, você descobrirá mais tarde que pode reforçar as idéias de seu filho
e enriquecê-lo com as suas próprias idéias".
É preciso que no gesto
criativo esteja a mãe presente para recebê-lo. Caso contrário a criatividade se
eclipsa. Vejamos uma carta de Winnicott a M.Klein de 17 de novembro de 1972: "o que eu queria na sexta-feira era sem
dúvida que houvesse algum movimento de sua parte para com o gesto que fiz naquele
trabalho. Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento
algum através deste gesto se ninguém vier ao seu encontro. Acho que eu estava
querendo algo que não tenho nenhum direito de esperar de seu grupo e que tem a
natureza de um ato terapêutico, algo que não consegui em nenhuma de minhas duas
longas análises, embora tenha conseguido muitas outras coisas" (pag.30
- "O gesto espontâneo"). Também é preciso que a Mãe aceite as
contribuições transformadoras do filho. Outro trecho da mesma carta: "Pessoalmente acho que é muito
importante que seu trabalho seja
reafirmado por pessoas que façam descobertas à sua própria maneira e que
apresentem o que descobrem em sua própria linguagem. É desse modo que a linguagem
será mantida viva". (idem).
15- OUTRO PARADIGMA - OBJETO E ESPAÇO POTENCIAL
(TRANSICIONAL). A mãe suficientemente boa está em estado de "preocupação
materna primária" durante a qual a díade vive uma fase de fusão o que
permite que a mãe "adivinhe" as necessidades do bebê atendendo-as
imediatamente. Bebê e mãe vivem uma experiência de fusão. Isto não significa
que a mãe não se diferencie do bebê. Ela sabe que se trata de dois seres
distintos. Ela continua tendo uma vida para além do bebê, embora este seja
prioridade, uma prioridade acompanhada de um sentimento de fusão. O que quer
dizer fusão? Quer dizer que ela é o bebê mesmo quando exerce funções,
comportamentos e responsabilidades que nada têm a ver com o bebê. Ela se amplia
com o filho que preenche o seu corpo-psique as 24 horas do dia. Pelo lado do
bebê a psicologia experimental e a neurociência provaram a sua capacidade de
uma incipiente percepção e discriminação de objetos. Sob o ponto de vista
estritamente sensorial (assim como acontece com a mãe) não se poderia falar de
fusão; o que a mãe percebe é diferente do que ele percebe. Mas disso ele nada
sabe e sua experiência é de que a mãe e ele são um único ser. Ele é o SER
parmenidiano a única existência do cosmos. Tudo o que acontece é por conta de
sua onipotência. A mãe surge no momento em que ele a necessita por conta de sua
onipotência.
16- Fase de dependência relativa- A mãe deixa de
atender imediatamente as necessidades do bebê. Isso o faz sentir uma
"descontinuidade de ser" provocando ansiedades impensáveis: cair para
sempre, desintegrar-se, desconexão corpo-psique, desorientação, etc. Antes que
tal coisa aconteça o bebê preenche o espaço vazio da descontinuidade com um
intelecto incipiente e com o uso de um objeto transicional (objeto-mãe e
não-mãe) que, ao aparecer cria o espaço potencial. Este espaço potencial,
dependendo do contexto em que é usado, adquiriu muitos outros nomes: espaço
transicional (muito usado), espaço intermediário, espaço do brincar, terceiro
espaço e outros. O objeto transicional é ao mesmo tempo objetivo e subjetivo (é
e não é a mãe). É o que permite o brincar da criança. Ele pode destruir
ilusoriamente sem destruir realmente. Por isso o espaço transicional é também
chamado de espaço da ilusão. Ilusão aqui não significa engano, ser iludido.
Designa um lócus epistemológico. É como se vive o mundo. A lua pode ser ao
mesmo tempo um objeto material e um objeto mítico romântico. O exemplo mais
didático são as brincadeiras infantis com bonecos-família, que são objetos
transicionais, pois ao mesmo tempo são imagens inanimadas (objetos
objetivamente percebidos), às quais a criança dá vida inventando histórias
(objetos subjetivamente concebidos). Na época vitoriana cientificista os homens
se esforçavam em se manter no espaço objetivo, desvalorizando e repudiando a
subjetividade que era inclusive vista como epistemologicamente perigosa. Com
isto eles se colocavam numa camisa de força que os impedia de realizar
variações com o objeto objetivo e também os impedia de sentir o mundo como
parte de si mesmos e não como algo separado.
O espaço potencial e o
objeto transicional são uma mudança de paradigma. Até então só se falava de um
mundo subjetivo e de um mundo objetivo. O espaço potencial que recebeu depois
vários outros nomes (o mais freqüente é espaço transicional ou área
transicional usando-se também espaço intermediário), é um espaço onde o
objetivo e subjetivo se entrelaçam. O objeto transicional soldado ao espaço
potencial é um objeto visto por uma pessoa como tendo ao mesmo tempo propriedades
subjetivas e objetivas. Um contraponto à objetividade cientifica e à
subjetividade psicótica, ambas imobilizadoras do pensamento e da ação. Um
exemplo didático: um viúvo de poucas posses casa-se de novo. Ele não tem
condições de comprar uma nova cama. Existem 3 diferentes maneiras possíveis de
sua nova esposa vivenciar o uso de uma cama já desfrutada pela ex-cônjuge: 1-
ser absolutamente objetiva e não se incomodar em usá-la; nesse caso estará
reprimindo seus sentimentos. Estamos no terreno da neurose 2- ser absolutamente
subjetiva a ponto de não poder usá-la em circunstância nenhuma. Aqui o terreno
é da psicose. 3- sentir-se importunada pelas fantasias despertadas pela cama,
mas podendo negociar consigo mesma e com o marido, sendo-lhe possível até usá-la,
acreditando em sua capacidade de lidar com os seus sentimentos e fantasias. É
aqui que nos deparamos com o espaço intermediário no qual, brincando e se
engalfinhando, mesclam-se o subjetivamente concebido e o objetivamente
percebido. Traduzindo em palavras a esposa poderia sentir mais ou menos o
seguinte: "Certamente me incomoda o fato do meu marido ter feito amor
nesta cama com outra mulher. Mas sei que isto é um sentimento que nada tem a
ver com a realidade. A cama nem é a mulher e nem as noites de amor. Não desejo
que estes sentimentos venham a perturbar minha coabitação e certamente eles se
diluirão no tempo e espero poder vir a ficar à vontade com meu marido no leito
nupcial, sem problemas de ciúme e contaminação". Ela não nega seus sentimentos,
mas estes não a impedem de enxergar e levar em consideração o externo, a
realidade objetiva.
Winnicott diz que
vivemos a maior parte do tempo numa zona intermediária, nem externa, nem
interna. Esta zona intermediária é um prolongamento do espaço potencial, que
tem este nome por justamente ser um espaço de potência, de criação, onde se
brinca com o espaço interno sob as vistas do externo e vice-versa. Nem a
perspectiva objetiva nem a subjetiva são criativas. Elas são imobilizadoras das
transformações psíquicas. A objetiva pelo fato de nos enquadrarmos no
consensualmente acordado não inovando. A subjetiva pelo fato de não permitir
influências do ambiente no psiquismo mantendo-se o subjetivo tal e qual. A
transicional, esta conversa entre o objetivo e subjetivo é que permite
transformações no psiquismo. Sem dúvida uma visão diferente da idéia de uma
objetividade que permitiria realmente conhecer o mundo.
Vimos até agora
algumas mudanças de paradigma: 1- Paradigma "holding" (relação
afetiva mãe-filho. Relação de ego.). 2- Paradigma "mãe suficientemente
boa". Um outro conceito de "erro". 3- Paradigma holístico. 4-
Paradigma "deprivação". 5- Paradigma criatividade. 6- Paradigma
"espaço potencial" e objeto "transicional". Todos têm a ver
com a clínica, mas também atingem outros ramos do saber humano, tais como a
criminologia, a educação, a filosofia e a epistemologia. A seguir falarei ---
repetindo-me um pouco, mas indo mais adiante --- daqueles paradigmas que sem
deixarem de ter importância para a clínica mais fortemente se aproximam da
filosofia e de uma nova epistemologia.
1- Espaço
intermediário 2- Uso do paradoxo (exp.: objeto e espaço transicionais. Criar o
que já existe. Adoecer sadiamente. Estar só em presença da mãe. Medo do
colapso. Erro necessário. Amor cruel.). Davi L. Bogomoletz distingue a lógica
clássica, da lógica dialética hegeliana e da lógica paradoxal. Na lógica
clássica a contradição não é aceita; um dos termos tem de ser eliminado; é a
lógica do ou isso ou aquilo. Na lógica dialética os termos contraditórios
interagem e se ultrapassam criando um terceiro termo. Finalmente, na lógica
paradoxal os dois oponentes coexistem sem se integrarem (como na lógica
dialética) e sem se destruírem (como na lógica clássica). 3- Vida criativa 4-
teoria exemplar e teoria modelar; teoria e teorização; modelo e singularidade.
Winnicott é um pensador aberto. Não se fecha
em sistemas teóricos nem tenta construir sistemas teóricos coerentes. Ele não
cria teorias. Ele (a partir de certa época) faz teorizações singulares, isto é,
teoriza a partir de tratamentos psicanalíticos que está realizando. Estas
teorizações muitas vezes confluem e configuram uma teoria. Ou, podemos dizer
que há várias confluências de teorizações e algumas teorias. Certos conceitos
seus são de tal forma interligados que formam uma totalidade impossível de
destrinchar. Não se consegue apresentar um conceito sem referir-se a vários
outros. E, no entanto, não são conceitos fixos, mas conceitos flexíveis que se
adaptam às realidades clínicas que estão sendo vividas e descritas. A principal
preocupação de Winnicott não é criar teorias, mas transmitir as suas percepções
e sensações em relação à clínica que está desenvolvendo. Ele não se perturba
com as pequenas incongruências lógicas de seus inúmeros artigos. Isto porque
ele está mais ligado no desejo de transmitir a experiência viva do que construir
uma teoria coerente. E, no entanto, quando o professor tenta transmitir a teoria
tem muitas vezes a sensação de que a transmissão sucessiva de idéias é fraca,
sendo sua vontade transmitir todas as idéias simultaneamente o que é, claro,
impossível. É verdade que existem alguns inícios, mas a partir de certo ponto
parece que temos nas mãos uma bola redonda que só poderia ser apresentada na
sua totalidade de bola. Uma totalidade que inclui temas sociais, familiares,
biológicos, éticos, etc. Uma abordagem holística.
Finalmente --- e aqui
"finalmente" tem o sentido de um fecho da maior relevância, pois abre
caminho para novos desenvolvimentos que envolvem a própria posição do homem no
mundo atual --- finalmente, repito, falarei do artigo "O lugar em que
vivemos", capítulo VIII do livro "O Brincar e a Realidade". Lá,
em resumo, ele equipara o espaço potencial a um espaço do brincar e ao espaço
cultural. E diz que o homem vive neste espaço que como já vimos tem outros
nomes: espaço transicional, zona intermediária, etc. O que eu diria é que na
modernidade vitoriana o homem tentou viver em um espaço objetivo o que o
obrigou a recalcar a sua subjetividade com conseqüências danosas para o seu
viver. O homem atual aceita viver no espaço transicional, isto é, aceita a
convivência do objetivo com o subjetivo, sendo-lhe menos necessário utilizar a
dinâmica do recalque. A sua subjetividade e suas fantasias ficam ao seu alcance
através do processo de dissociação. A dissociação mantém as fantasias e os
inúmeros desejos paradoxais ao alcance da consciência permitindo que sejam
acessadas e controladas.
Fazer um coquetel com
doses sensatas e equilibradas de objetividade e subjetividade; viver num espaço
intermediário que funcione suficientemente bem. Esta é talvez a mudança de
paradigma mais ampla e promissora com a qual Winnicott nos presenteou.
Nahman
Armony
Maio/2011