O conceito de “ruído” surgiu com a
teoria da informação e logo se difundiu para outras disciplinas: cibernética,
biologia e computação são algumas delas.
É um conceito frutífero e como tal merecedor destes transplantes. Por isto
mesmo quero trazê-lo para o âmbito da psicanálise, pois acredito que, também
nesta disciplina, ele possa render frutos teóricos e práticos. Para estabelecer
uma referência inicial, citarei a definição de ruído que Atlan[1]
retirou da teoria da comunicação:
“O ruído é tomado, aqui, em seu sentido
derivado do estudo das comunicações: trata-se de todos os fenômenos aleatórios
parasitas que perturbam a transmissão correta das mensagens, e que geralmente
procuramos eliminar ao máximo. Como veremos, existem casos em que, a despeito
de um paradoxo que é apenas aparente, pode-se reconhecer nele um papel
benéfico”.[2]
Os organismos vivos (máquinas naturais) têm
uma aptidão para usar o ruído em favor de seu enriquecimento que as máquinas
artificiais não têm[3].
Para fazer este uso positivo do ruído, é preciso que a ele seja atribuído um
sentido. A teoria da informação precisou abstrair o possível sentido do ruído
para submetê-lo a um tratamento matemático e estatístico. Isto não serve à
psicanálise, que necessita atribuir um sentido ao ruído para utilizá-lo de
forma positiva na terapia, transformando-o em fator de organização[4].
Portanto, em psicanálise, dependendo da posição em que o terapeuta se coloca, o
ruído pode ser visto ou como mero barulho sem nenhuma sentido, um trambolho que
atrapalha o curso da terapia, ou pode ser olhado do ponto de vista de seu
sentido ou significado, podendo então ser integrado ao sistema comunicativo
analista-analisando. É a história/narrativa psicanalítica das transformações
dos ruídos de obstáculos inúteis e perturbadores a ferramentas úteis que
apresentarei a seguir.
Na última década do século XIX Freud
concebia a psicanálise como uma atividade que, revelando ao paciente o trauma
ou os traumas iniciais, tornando-o consciente das circunstâncias geradoras dos
sintomas, faria desaparecer a doença psicológica. O próprio paciente deveria ou
se lembrar de tais acontecimentos ou fornecer pistas para que o analista os
reconstruísse. Mas o paciente apresentava resistências; ele não queria ou não
podia trazer informações que conduzissem ao trauma inicial e suas
circunstâncias. Uma das mais renitentes resistências era a transferência. O
paciente passava a ter sentimentos intensos pelo analista, desviando-se daquilo
que deveria ser seu trabalho: o de recordar. Um obstáculo intrusivo - era como
a transferência, então, se apresentava. Um ruído inútil, indesejado e
perturbador.
“De início, fiquei muito aborrecido com
este aumento de meu trabalho psicológico, até que vim a perceber que todo o
processo obedecia a uma lei; e então também notei que a transferência desta
espécie não trazia quase nenhum grande aumento ao que eu tinha de fazer”.[5]
Nesta
frase de Freud, escrita em 1895, podemos perceber que a transferência não é
bem-vinda pois ela é, de início, um transtorno aleatório e imprevisível; e
mesmo quando, em um segundo passo teórico, a lei a alcança, é apenas um
trabalho a mais a ser feito. Trata-se de um ruído que deve ser descartado para
que prossiga o trabalho de investigação psicanalítica. Em pouco tempo, porém, a
transferência, de ruído indesejável, passa a organizador do processo
psicanalítico. Em 1912 Freud escreve:
Não se discute que controlar os
fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades;
mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o
inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos
ocultos e esquecidos do paciente. Pois, quando tudo está dito e feito, é
impossível destruir alguém in absentia
ou in effigie[6].
A contratransferência percorreu um
caminho semelhante. Até aproximadamente a década de 50 representava para o
psicanalista um perigo para a sua condição de profissional e um obstáculo ao
prosseguimento do trabalho analítico. As poucas referências diretas de Freud à
contratransferência são desta natureza[7].
Foi preciso esperar pela escola kleineana[8]
para que a contratransferência tivesse o seu caráter de obstáculo eclipsado por
sua utilização como instrumento de compreensão do psiquismo do analisando; para
certos autores (Searles[9],
por exemplo) além de um instrumento de compreensão, é a contratransferência um
organizador ativo da dinâmica diádica.
Enquanto os ruídos transferenciais e
contratransferenciais não eram considerados em seu sentido e significação,
atuavam como perturbações incômodas da comunicação analista-analisando. Quando,
adotando um novo enfoque, apreendeu-se a significação destes ruídos,
incorporando-os, desta forma, ao processo analítico, transformando-os em fator
de crescimento, os ruídos tornaram-se bem-vindos e desejados.
Examinarei agora, à luz do conceito
de ruído, a contratransferência desdobrada em contratransferência alogênica e
contratransferência autogênica.
É importante assinalar, desde já,
que contratransferência tanto se refere à postura/comportamento adotada em
resposta à subjetividade do analisando quanto a situações dinâmicas mais
específicas de inter-relacionamento fantasmático, quando então o analista
apresenta sentimentos, fantasias e impulsos em relação ao analisando. Estes
sentimentos/fantasias/impulsos podem estar em sintonia com o desejo do
analisando e nesse caso diremos que a contratransferência é alogênica. Se
dependerem mais do mundo psíquico do analista do que das solicitações-necessidades
do analisando, teremos então uma contratransferência autogênica. A
contratransferência alogênica não produz ruído pois, mais que uma comunicação
entendida, é uma comunicação silenciosa, em que o analista é um objeto
subjetivo, um fantasma do analisando. Já a contratransferência autogênica seria
“ouvida” como ruído pelo analisando, já que a ação do analista seria estranha
às suas expectativas, à sua organização psíquica. Isto, porém, em uma primeira
aproximação. Mas, será que este pensamento se mantém?
Usarei Winnicott para meditar sobre
estes dois aspectos da contratransferência. A idéia winnicotteana de uma
adaptação perfeita da mãe às necessidades do bebê e do analista ao analisando
em regressão pode ser coberta pelo conceito de contratransferência alogênica: o
analista está complementarmente identificado com o analisando. Mas logo aparece
uma complicação: Winnicott fala de “falhas necessárias”[10].
Como pensar estas falhas necessárias? Como contratransferência autogênica ou
alogênica, como ruídos ou não? A uma primeira e distraída visada poderíamos
pensar que estamos diante de uma contratransferência autogênica, e que portanto
estamos produzindo um ruído, uma interferência indevida na relação. Mas
Winnicott nos diz que a falha é necessária para o desenvolvimento do bebê e do
analisando[11].
Podemos mesmo pensar que o analisando provoca a falha no analista quando a hora
da perfeição relacional, da simbiose terapêutica,[12]
já cumpriu sua função. Neste caso, tendo sido a falha provocada pelas
necessidades do analisando (poderíamos dizer, da relação), estaríamos diante de
um ruído necessário à organização do psiquismo do analisando.
Aqui temos uma questão delicada. O
analista falha e sente que esta falha foi provocada pelo analisando. A
linguagem que estamos aqui usando separa analista de analisando e atribui ao
analisando uma ação de fazer falhar o analista. Se usarmos uma linguagem que
não distinga analista de analisando, considerando-os, pelo contrário, uma
unidade diádica, então a falha - que representa o desejo de
separação-individuação[13]
- não será atribuída nem ao analista nem ao analisando, mas à própria relação;
o desejo de separação-individuação é da díada mas tanto pode aparecer no pólo
analista como no pólo analisando, sem que se saiba que interações invisíveis
houve para que surgisse o desejo de separação-individuação, produzindo a falha,
o ruído organizador. Conhece-se o seu sentido: produzir separação-individuação;
mas haverá sempre uma zona nebulosa em que não se saberá se a falha surgiu de
uma necessidade do analisando (em outra perspectiva, da díada) ou se de uma
problemática do analista.
É também duvidoso que se possa
separar inteiramente uma da outra. O que é possível dizer, e o que realmente
importa, é que a falha pode ser mais ou menos facilmente assimilada pelo
analisando ou pela unidade diádica (dependendo do ponto de vista), e ainda que
a medida da facilidade de assimilação está na quantidade de trabalho, na
quantidade de empenho que o analista tem
de colocar em jogo para superar a falha. Talvez o empenho e o trabalho possam
também indicar a origem da falha; mas esta é uma questão mais acadêmica que
prática.
Pensemos, agora na articulação
ruído-falha. Será que é o inicial repúdio do analisando à falha do analista e
suas reações de frustração, raiva, dor, mágoa, ressentimento, que nos fazem
falar de ruído? Ruído por atrapalhar a perfeição simbiótica? Ruído pelo repúdio
do analisando à falha? Ruído pelo mal-estar que a falha provoca no analista?
Ruído por não estar de acordo com a organização psíquica do receptor? Mas há
que considerar que eventualmente a falha produz um sentimento de alívio tanto
no analista quanto no analisando e que, freqüentemente, na seqüência da
situação, ela torna-se bem-vinda. Esta é uma situação em que um intrincado vir-a-ser
torna difícil sua expressão conceitual. Mas as dificuldades não param aí.
Podemos pensar no analista falhando não por necessidade da díada, mas por uma
necessidade sua, independente do funcionamento da unidade diádica (considerando
que isto seja possível); uma contratransferência autogênica. Pois bem, mesmo
assim, dependendo de seu esforço, empenho e habilidade o ruído desagregador
poderá adquirir sentido, sendo recuperado como estimulador de transformações
benéficas.
Estamos aqui numa zona nebulosa de
trânsito, de ir-e-vir, onde os conceitos têm dificuldade de acompanhar a
complexidade do devir. Por isto mesmo, insistirei - correndo o risco aborrecer
o leitor - no exame dos conceitos de contratransferência alogênica e
autogênica, agora mais minuciosamente, esperando que assim o pensamento possa
melhor capturar o devir-ruído em seus agenciamentos com a psicanálise. Estes
conceitos foram por mim desenvolvidos em um artigo de 1974[14].
Deles apresentarei um rápido resumo.
Contratransferência é uma reação
afetiva e fantasmática do analista às produções, comportamentos e atitudes do
analisando. Ela pode ser alogênica ou autogênica. Será alogênica quando for
“o resultado de identificações
complementares (e/ou concordantes) que, ocorrendo através da mobilização dos fantasmas do analista, coloca-o, no seu
aspecto de participante, dentro do mundo fantasmático que o cliente está
predominantemente vivendo naquele momento, estruturando-se um campo paratáxico
predominantemente determinado pelo analisando”.[15]
Em
outras palavras, na contratransferência alogênica o analista responde
complementarmente ou concordantemente às afetações do analisando. A resposta do
analista encaixa-se perfeitamente na solicitação do analisando, podendo-se
dizer que a mensagem foi perfeitamente apreendida e corretamente respondida;
nenhum “ruído” perturbou a sua recepção.
Outra é a situação na
contratransferência autogênica: ela pode ser definida como uma resposta
“errada” do analista ao estímulo do analisando, resposta “errada” geralmente
causada pela ansiedade advinda de fantasias do analista projetadas no
analisando.[16]
Pode-se dizer que os “ruídos” do Ic. do analista perturbaram a recepção da
solicitação do analisando. É aqui que, usando a teoria dos ruídos, podemos
complementar o que ficou dito acima. No trabalho já citado escrevo:
“...se a partir de sua intervenção
inadequada {o analista} souber se conduzir com habilidade, empenho e coragem,
poderá não só evitar um sério dano para a relação, como também fazê-la progredir apreciavelmente”.[17]
Os
ruídos provindos do Ic. do analista e que o fizeram realizar uma intervenção
estrangeira ao campo fantasmático vivido no momento pelo paciente, podem
reverter em um extraordinário avanço na terapia, desde que bem usados pelo
analista. Estes ruídos forasteiros, ao invés de prejudicarem o crescimento da
díada, são metabolizados e incorporados a esse crescimento, abrindo novas
possibilidades de realizações.
A exigência teórica de uma perfeita
adequação às necessidades de simbiose, separação e de uma perfeita conformidade
de subjetividades que poderia surgir a partir dos conceitos de postura
continente, de postura simbionte e de disponibilidade/capacidade de
identificação, encontra aqui seu
antídoto na possibilidade teórica de o erro - representante da diferença -
servir como alavanca de progresso. Pode-se agora aceitar, sem culpa ou
tergiversação, o fato de que é impossível ao analista manter, sem manquejar e
esmorecer, a capacidade de responder sincronicamente ao paciente; haverá
ocasiões em que não estará sintonizado ou receptivo à subjetividade solicitada
pelo analisando, assim como não estará responsivo às solicitações fantasmáticas
e afetivas do analisando. Suas respostas serão então ouvidas como ruídos pelo
analisando. Mas serão ruídos que, dependendo da sua freqüência e intensidade, e
da maneira de tratá-los, poderão
introduzir um fator de diferenciação, de vida, de crescimento na relação. A
alteridade, a diferença, o incompreensível - o ruído, enfim, se bem trabalhado,
adquirirá um sentido, promovendo mudanças favoráveis na díada terapêutica.
Finalmente, uma síntese pragmática.
Se o ruído, o aleatório, é uma fonte de crescimento, então, não-sintonizar por sintonia
e não-sintonizar por acaso acabam por se aproximar, produzindo ou uma
confusão conceitual - uma contradição do ponto de vista do paradigma da
simplificação, ou uma inclusão sintetizadora, um paradoxo, do ponto de vista do
paradigma da complexificação.
Ao fim e ao cabo, a teoria dos
ruídos é útil à psicanálise, pois facilita pensar na integração do novo, do
diferente, do aleatório. Facilita também o exercício da alteridade. O analista
poderá se colocar alteritariamente na sessão psicanalítica sabendo que aquilo
que difere da organização psíquica do paciente, sendo trabalhado como ruído
organizador, poderá ser assimilado e metabolizado, produzindo efeitos de
crescimento. O analista ficará assim com duas possibilidades de atitude que
poderão interagir entre si de várias maneiras: a possibilidade de entrar em
sintonia fina (identidade), respondendo ao analisando de forma complementar ou
homóloga (com toda a ambigüidade desta colocação já vista); e a possibilidade
de exercer uma individualidade (diferença), tomando o cuidado de evitar que o
ruído produzido permaneça sem sentido. Um ruído sem sentido ou significação é
inútil e perturbador; um ruído ao qual se dá um sentido ou significação é fator
de complexificação, de crescimento, de desenvolvimento. O ruído sem sentido ou
ao qual não se atribui uma significação adequada não será assimilado pela
organização psíquica do analisando; aquele ruído que tenha um sentido ou ao
qual se outorgue uma significação poderá ter um efeito de expansão e
versatilização.
A liberdade teórica adquirida
através da noção de ruído permitirá o exercício sem culpa de uma espontaneidade
na relação/comunicação psicanalítica[18],
uma liberdade que na prática já vinha sendo exercida por numerosos
psicanalistas, especialmente por aqueles mais quilometrados e experientes. Esta
espontaneidade deverá se dar dentro de uma insinuância[19]:
a do objetivo terapêutico da relação[20].
O exercício espontâneo deste objetivo no quefazer diário do analista exigirá
daquele que se inicia neste mister um tempo para que o trabalho de incorporação[21]
possa ser realizado.
Nahman
Armony
Recorte do livro "Borderline: uma outra normalidade" de minha autoria. Editora Revinter.
[1]Ver
Henri Atlan(1979)- “Entre o cristal e a fumaça”. Jorge Zahar Editor, Rio de
Janeiro, 1992.
[2]Ibid,
pag.250.
[3]Atribui-se
“aos organismos não apenas a propriedade de resistir eficazmente ao ruído, mas
também de utilizá-lo a ponto de transformá-lo num fator de organização”. Ibid,
pag.38.
[4]Ibid,
capítulo 2: “Ordens e Significações”.
[5]Freud,S.(1895)-
“A psicoterapia da histeria” in “Estudos sobre a Histeria”, pag.361,
vol.II da Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud.
Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974.
[6]Freud,S.(1912)-
“A dinâmica da transferência”, vol.XII,
pag. 143.
[7]Ibid.
Ver “As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica”, no vol. XI, e o
artigo já citado “A dinâmica da transferência”.
[8]Ver o artigo de Paula Heimann(1950)
“On countertransference” in International
Journal of Psychoanalysis, no 31, 1960.
[9]Ver Harold Searles(1965), “Collected
Papers on Schizophrenia and related subjects”. International
Universities Press, New York.
[10]Ver
Winnicott “Dependencia en los cudados de la primera infancia y de la niñez, y
en el marco psicoanalítico”,
especialmente pag. 319
in “El proceso de maduración en el niño”.
Editorial Laia, Barcelona, 1975.
[11]Ver
Winnicott(1963)- “Dependencia de los cuidados en la primera infancia y de la
niñez, y en el marco psicoanalítico” in “El proceso de maduración en el
niño”. Editorial Laia,
Barcelona.
[12]Ver Searles “Collected papers on
schizophrenia and related subjects”, pag. 308. International
Universities Press, New York, 1965.
[13]O
conceito de separação-individuação é de Mahler e pode ser encontrado no livro
“O nascimento psicológico da criança”. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977.
[14]Armony,N.(1974)-“Contratransferência
alogênica e autogênica: duas noções auxiliares para a compreensão dos fenômenos
contratransferenciais” in “Psicanálise: da interpretação à vivência
compartilhada”, Editora Universitária Sta Úrsula, Rio de
Janeiro, 1989.
[15]Ibid,
pag.30.
[16]Ver
na pag.30 o conceito de contratransferência autogênica.
[17]Ibid,
pag.36.
[18]A
noção de ruído tem um alcance epistemológico muito além da psicanálise e de
cada outra disciplina que a usa pois mina a própria idéia de perfeição tão cara à mentalidade
ocidental.
[19]Esta
noção será exposta no capítulo 2, ítem 3.
[20]Ver
Armony: “Novos caminhos da técnica psicanalítica”, livro citado..
[21]Ver
Armony, “Utilização de técnicas expressivas em terapia” e “Modificação do
enquadramenteo terapêutico no tratamento de um cliente esquizofrênico” in
livro já citado.