POEMA DA INSATISFAÇÃO

          Tenho sede, fome e ódio
          Ódio da comida que me vendem
          Da água que me concedem
          Que é bastante
          Mas que não é dada.

          Todos estão em paz;
          O dever está cumprido.
          Lá estão a água, a sopa, o carinho...
          Temos excesso de material.
          Como reclamar do que existe em abundância?
          Ah, a abundância...
          O carinho largado descuidadamente em um canto qualquer
          Não mata a fome
          De estrelas
          De infinitos
          Que existe em minha alma.    

                                       Nahman Armony            

A QUIMERA DA RELAÇÃO PERFEITA


                                                                                                
Segundo D.W.Winnicott, admirável psicanalista e pediatra que produziu sua obra na 2ª metade do século XX, o bebê, ao nascer, tem suas necessidades imediatamente preenchidas por uma mãe que ele chamou de “suficientemente boa”. Uma memória desta fase tenha ela acontecido plenamente ou não, permanece no inconsciente de todos os adultos. Após alguns meses esta mesma mãe começa a adiar o atendimento às solicitações do bebê e da criança, e mesmo, a não atender a alguns dos desejos de seus rebentos. Esta nova atitude propicia o desenvolvimento do ser humano que incorporando ao seu repertório psicológico a frustração, aprende a lidar com um sentimento que terá de enfrentar ao longo de sua vida. Teremos então um adulto com maiores probabilidades de ser psiquicamente mais saudável. Se a mãe não consegue dizer “não” impede o crescimento do filho e conseqüentemente sua boa inserção na sociedade, pois a criança e posteriormente o adulto sentir-se-á no direito de ter tudo o que deseja sem levar em consideração as necessidades e desejos de seus semelhantes. Este quadro é um aspecto de uma situação mais geral como podemos ler no artigo “A crença que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada” de Eliane Brum publicado na revista Época no mês de junho de 2011. Facilmente percebemos que do século 19 ao século 21 passamos de uma sociedade repressiva para uma sociedade permissiva. A atual mentalidade facilita o afloramento de um exagerado instinto de proteção nas mães que se excedem na evitação de frustrações ambicionando oferecer-lhes um mundo maravilhoso onde reinaria a felicidade. É claro que este desejo inconsciente de mãe é impossível de ser realizado. Ao invés de trazer felicidade provoca situações de dor, conflito e trauma nas várias áreas do viver humano. Inclusive no âmbito das relações amorosas. O parceiro espera que tal como a mãe, o companheiro realize todos seus desejos mesmo os mais banais e mesmo os irrealizáveis e, mais incrível ainda, aqueles fora de possibilidade de efetivação. Tais expectativas inviabilizam a relação amorosa; logo às primeiras frustrações os amantes se separam e procuram novo parceiro na esperança de que este sim lhe proporcione a felicidade absoluta. O fracasso das sucessivas tentativas poderá levar a pessoa a uma vida sem parceria, a uma falsa parceria que manterá a relação em um nível superficial, ou à difícil aceitação de frustrações, o que exigirá uma reestruturação psíquica. O não atendimento aos desejos é sentido como um crime de lesa-majestade já que a pessoa não tendo sido frustrada no início da vida desenvolve a convicção de que o mundo funciona tendo-o como centro privilegiado a ser atendido a qualquer custo. Estamos diante de um estado narcísico exacerbado. A ação conjunta do mundo que o trata como a qualquer outro + a percepção de que o vivido na infância foi uma ilusão da qual terá de se livrar + um trabalho psíquico doloroso de aceitação da realidade (não sou o centro do mundo nem tenho direitos absolutos e especiais em detrimento do direito de outras pessoas) poderá modificar este funcionamento psíquico permitindo-lhe conviver cordialmente com as outras pessoas e estabelecer uma relação de fato amoroso/sexual. Este processo de transformação do psiquismo necessita na maioria das vezes do auxílio de um especialista em relações humanas, de um psicoterapeuta. Trata-se de um processo difícil e doloroso mas vale a pena tentar.     
                                                        Nahman Armony

                Primeira publicação na revista CARAS

O TRAUMA NOSSO DE CADA DIA

                                    (do livro "O Homem Transicional")                                                                   
         A frase que dá nome a este capítulo é, para mim, um ardil tentador. Ela acena com viagens incríveis pelos dédalos fascinantes das palavras e frases prometendo levitar-me para cenários inteligentemente maravilhosos, ameaçando tirar meus pés da realidade terrena. Ela me remete irresistivelmente à frase bíblica “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje” empurrando-me para um paralelismo que poderá ser pertinente e criativo desde que eu não me deixe arrastar por uma imaginação demasiadamente solta e sem compromisso com o drama humano. Um humano que aparenta ser pobre diante daquilo que a linguagem pode inventar. A linguagem das palavras, com seus recursos retóricos, cria um mundo próprio, fascinante e sem freios. Ótimo para quem no seu ninho de repouso está disposto a viajar por um mundo fantástico. Se, porém, quero falar da vida diariamente vivida devo tomar cuidado: aproveitar as aberturas que a linguagem me sugere sim, mas me mantendo ligado à terra. Não é uma prática fácil, mas se bem exercida pode revelar facetas inesperadas do humano concreto.    
         Como já exposto, a frase “O trauma nosso de cada dia” evoca a oração cristã cuja formulação completa é “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Essa a súplica religiosa. Poderia “o trauma nosso de cada dia dá-nos hoje” ser uma oração psicanalítica? Será que necessitamos tanto da doação do trauma quanto do pão? A doação do pão depende da vontade de Deus. O trauma depende do acaso, mas um acaso que certamente acontecerá, portanto um destino inelutável.
         Pão significa alimento básico necessitado pelo homem para a sua sobrevivência. Também lembra a divisão dos pães, um ato de compartilhamento que irmana os homens. O que o trauma tem a ver com alimento básico e compartilhamento? Não é estranho falar do trauma como doação? Felizmente minhas associações inconscientes indicam um caminho. Logo surgem na minha mente as concepções de “falha necessária” que Winnicott chama de desilusão e Kohut de frustração ótima. Segundo ambos, é necessário que as falhas aconteçam para haja diferenciação, individuação e crescimento psíquico do bebê e da criança. As falhas seriam então bem-vindas justificando a frase bíblica modificada. Mas será que poderíamos chamar a desilusão e a frustração de traumas?
         Winnicott nos dá na p. 201 do livro “Explorações psicanalíticas”, no artigo “A experiência mãe-bebê de mutualidade” uma definição taxativa de trauma: “Um trauma é aquilo contra o qual o indivíduo não possui uma defesa organizada, de maneira que um estado de confusão sobrevém seguido talvez de uma reorganização de defesas, defesas de um tipo mais primitivo do que as que eram suficientemente boas antes da ocorrência do trauma(...)Em outras palavras, experienciaram trauma e suas personalidades têm de ser construídas em torno da reorganização de defesas que seguem os traumas, defesas que devem precisar reter aspectos primitivos, tais como a cisão da personalidade”. Nessa acepção não poderíamos chamar de trauma a desilusão provocada por uma mãe suficientemente boa, pois ela acontece no momento em que a criatura está preparada para recebê-la. É verdade que há uma gradação entre uma desilusão adequada e outra inadequada que nos seus extremos são facilmente reconhecíveis, mas que em sua linha de percurso nem sempre é clara, possuindo ao mesmo tempo propriedades de adequação e de inadequação em proporções diferentes dependendo do momento em que a desilusão é provocada. Além disso, essa definição dura (“tough”) se atenua quando o próprio Winnicott (no artigo “O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família” que se encontra no mesmo livro) hesitantemente, oscilatoriamente, amplia a noção de trauma até alcançar a desilusão suficientemente boa: “Dessa maneira, existe um aspecto normal do trauma. A mãe está sempre ‘traumatizando’, dentro de um arcabouço de adaptação, e, desse modo, o bebê passa da dependência absoluta para a dependência relativa” (p.114). Posso então compreender, à minha maneira, suas concepções de “trauma benigno” e “trauma maligno” que se encontram neste mesmo artigo: “Na sessão que estou escolhendo para relatar, uma coisa nova acontecera: a paciente achou que minha interpretação principal devia estar certa e, contudo, ela não havia previsto isso. A interpretação fora, portanto, ‘traumática’, no sentido de ultrapassar as defesas. Este trauma benigno refletia o novo sentimento da paciente a respeito do trauma maligno” (p.105) Infiro que a concepção de trauma maligno adveio dos fatos que ele descreve numa frase anterior: “Este estado de coisas começou quando um início de infância excepcionalmente feliz terminou abruptamente porque o pai morreu e a mãe imediatamente tornou-se melancólica.” (p.105). Ao trauma da morte do pai se acrescentou o trauma do abandono da mãe e o conseqüente desaparecimento do escudo protetor que, em funcionando, abrandaria a força do acontecimento potencialmente traumático. Estou aqui querendo dizer que o trauma se atenua na presença de uma pessoa capaz de empatia e identificação. Em algum ponto de seus escritos, não me lembro qual, Winnicott fala do término da sessão como uma agressão, mas uma separação agressiva necessária para a independência e para a realização, um trauma que será tão mais benigno quanto mais empática e amorosa for a transferência.
         Permito-me então dizer que as falhas da figura maternal no manejo do bebê ou da criança, inevitavelmente provocativas de frustração/desilusão, têm os dois componentes: o componente traumático cujo resquício é a carência, e um componente recuperador que induz uma potência. O componente traumático poderá ser mínimo quando então a recuperação será fácil e (quase) imediata, ou poderá ser máxima e a recuperação extremamente difícil exigindo grande trabalho psíquico e grande mobilização de defesas. Existe, naturalmente, uma gradação que vai de um pólo a outro. A presença de um outro empático diminui a força traumática de um evento externo ou interno.       
         Em psicanálise quando se fala de trauma pensa-se em trauma infantil. Nas primeiras etapas de nossa disciplina esse trauma era um acontecimento forte, marcante, catastrófico, cujo protótipo era a violência sexual dirigida a um pré-púbere. Seus similares adultos encontram-se no trauma de guerra, na perda de algo fundamental na vida tal como pessoas queridas, emprego, nas catástrofes (incêndio, terremoto, inundações, etc.), situações de alta periculosidade como assalto, sequestro. Certamente não se trata do trauma nosso de cada dia. Kris (“The personal mith” in “J.Amer.Psychanal. Assoc. 4) distingue o “trauma por choque” do “trauma por tensão”. O trauma por choque é eventual, descontínuo. Já o trauma por tensão é constante, continuadamente repetitivo e se nos reportarmos à infância e meninice certamente recorreríamos ao conceito de “trauma cumulativo” de Masud Khan.   
         Mas a frase desafiadora do título nos leva a pensar não em infante, nem em criança, mas em adulto. Esta é uma distinção importante, pois os traumas acontecidos na infância são estruturantes, fazem parte da modelagem da personalidade. Masud Khan escreve: “A tensão e as invasões decorrentes do fracasso do papel da mãe como escudo protetor, que aqui estou denominando de trauma cumulativo, têm efeito mais específico nas vicissitudes de desenvolvimento do ego corporal da criança e do bebê (...) as fendas no papel da mãe como escudo protetor deixam os resíduos mais sensíveis e reais no desenvolvimento do ego corporal da criança. Tais resíduos, durante toda a maturação e desenvolvimento, acumulam-se, formando um tipo específico de organização de ego corporal, e constituem o substrato da personalidade psicológica”. (“O conceito de trauma cumulativo” in “Psicanálise: teoria, técnica e casos clínicos” p.71). Quando os traumas acontecem com um adulto “pessoa inteira” (Winnicott, 1954, Da pediatria... p.375) não há uma alteração do arcabouço básico de sua personalidade. Isto em grande parte é verdade. Existem exceções como traumas extremamente violentos e traumas sutis e contínuos. Ações contínuas sobre um adulto sejam na dinâmica do trabalho ou do lar podem produzir alterações psíquicas importantes tanto no sentido negativo como no positivo. É claro que as condições prévias são importantes no estabelecimento da dinâmica, mas não podemos deixar de levar em conta o funcionamento do ambiente; os princípios organizadores do funcionamento psíquico do chefe ou da esposa, por exemplo, influem no estabelecimento de uma dinâmica intersubjetiva. Uma mesma atitude inúmeras vezes repetida (por exemplo, desvalorizar ou desprezar repetidamente alguém no trabalho ou no lar sem que a pessoa reaja) acaba por influir na própria integridade pessoal. Qual a reação da pessoa é uma questão complexa e tem a ver com a bagagem trazida e com os dilemas da situação presente. Por exemplo, numa época de crise, em que os empregos são escassos, uma pessoa que tenha de sustentar uma família, terá grande dificuldade de abandonar um emprego para escapar das humilhações de um chefe prepotente.  Ele poderá conservar sua autoestima apesar dos ataques, mas a repetição das agressões poderá acabar minando o seu equilíbrio psicossomático. A pessoa poderá tentar recuperar seu equilíbrio atacando outras. Poderá ser que sua ética o impeça de transferir para outra o seu mal-estar mantendo-o internalizado e provocando sintomas psicossomáticos. A reação individual é uma resultante das condições pessoais se desenvolvendo e interagindo com o meio-ambiente. O ambiente será mais ou menos traumático dependendo da qualidade do “escudo protetor”, algo que já foi função da mãe na díade mãe-filho, mas que foi tornando uma função individual na medida em que a pessoa enveredava pelo “rumo à independência” como diz Winnicott ou, como eu e outros preferimos, rumo à interdependência.
         Estarei falando aqui do cotidiano do adulto na sociedade contemporânea afetado na maior parte do tempo por traumas benignos. O “homem inteiro” de que nos fala Winnicott teria tido uma mãe suficientemente boa, exercendo suficientemente bem o papel de escudo protetor do qual, aos poucos, o ser humano em crescimento vai se apropriando, de tal forma a poder, já adulto e sem a mãe como ego auxiliar, elaborar e superar os traumas diários. Nesta elaboração e superação há um enriquecimento da personalidade, fundamental para manter a higidez psicossomática o que permitirá um saudável relacionamento com as outras pessoas. “Dai-nos, Deus, o trauma nosso de cada dia para que possamos viver intensa e matizadamente a vida” seria nossa oração psicanalítica, quer acreditemos n’Ele ou não.
         Quais seriam os fatores traumatizantes da pós-modernidade? E como lidar com eles? Sem dúvida a contemporaneidade traz novos estímulos e intensifica estímulos já existentes que rapidamente se acumulam tornando-se traumáticas. O trânsito engarrafado, os ruídos da cidade (obras, veículos, festas, algaravia), a pressa ansiosa, a velocidade das transformações tecnológicas e organizacionais, a concorrência profissional e a competição selvagem, os prazos apertados, a liberdade diante de uma multiplicidade de escolhas, a ausência de certezas, os conflitos nas escalas de valores, conflitos na esfera amoroso-erótica, insegurança no trabalho, tudo isto atua como traumas já que provocam um acúmulo de ansiedade que terá de ser processado pelo psiquismo. A questão é: como podemos nós psicanalistas ajudar nesse processamento? Tomarei como exemplo uma situação que afeta a todos nós.
         Bauman escreve no seu livro “Vida para consumo” de 2008 que “Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria...” (p.20). Na vida diária isto se traduz pela falta de consideração com o ser humano. Telefonemas não retornados, e-mails não respondidos, falta de atenção no contacto pessoal... só somos levados a sério se despertamos algum interesse mercadológico ou pragmático no outro; caso contrário somos ignorados. Esses desrespeitos afetam nosso sentimento de valor. Não somos vistos como pessoas com uma subjetividade, mas como mercadorias a serem utilizadas. Nossa tendência à adaptação ao meio social, agindo fora do alcance da consciência, faz com que nos esforcemos em nos tornar mercadorias, com sérias repercussões em nossa autoestima e, portanto em nosso equilíbrio psíquico. Esta é uma situação que deverá ser revelada ao nosso analisando para que ele entenda a origem de seu mal-estar e perceba que a desconsideração não tem a ver com a sua pessoa individual, mas é uma característica da subjetividade social da qual ninguém escapa a não ser se tornando uma figura importante de seu meio... e mesmo assim, fora de sua esfera de influência será tratado como mercadoria. Essa percepção/consciência atenuará a força do trauma.
         Outra situação da contemporaneidade são as tensões que surgem quando as relações verticalizadas da modernidade transformam-se, na pós-modernidade, em relações horizontais, obrigando as partes a um diálogo que poderá levar a uma compreensão mútua ou a um trauma comunicacional. O entendimento recíproco será tanto mais possível quanto mais a pessoa conhecer de si mesma e da outra e da dinâmica da relação. A psicanálise poderá ser de grande valia para a obtenção desta aptidão: saber da existência dos dinamismos intersubjetivos implícitos que se formam no encontro de duas subjetividades e a obtenção da habilidade de perceber parte deles pode levar a uma mudança favorável do comportamento.
         Em relação à concorrência selvagem e à competição desenfreada só uma mudança de orientação subjetiva -- que se refletirá no modo de existir -- poderá evitar os traumas acumulativos delas derivadas. De uma orientação mercantilista e implacavelmente desumana, dirigida para o acúmulo de bens, dinheiro e poder, passar-se-ia para outra em que o importante está alocado nas relações afetivas, no desfrute da cultura, na realização de potencialidades advindas de um verdadeiro self, na curtição dos prazeres e na fruição das belezas que o mundo oferece. A terapia psicanalítica alicerçada na intersubjetividade e na complexidade e a filosofia na linhagem spinozista e deleuziana poderão ser de grande auxilio, de preferência assessoradas pela sociologia e antropologia. Essa mesma associação transdisciplinar poderá dar conta da transformação de certezas como aspiração de vida para a incerteza como afável companheira de viagem, neutralizando a força de trauma maligno que o inesperado carrega, ao transmutá-lo em trauma benigno, estimulante de criatividade e realizações.
                                                        Set./2010

                                                               Nahman Armony

GENES SALTADORES

Na revista Mente e Cérebro na Edição Especial n.49, ano XXI encontrei o artigo "O que torna seu cérebro único" que fala de uma importante descoberta: os genes saltadores. O que são genes saltadores? São genes que ocupam um certo lugar na cadeia do DNA e que saltam para um outro segmento do DNA. Nesta nova posição adquirem novas funções provocando alterações no comportamento e na fisiologia. Os pesquisadores fazem a hipótese de que estes genes saltadores permitem uma maior adaptação ao mundo pois eles respondem ao ambiente podendo ser ativados ou inibidos. Trata-se de uma nova opção trazida pelo novo lugar ocupado pelo gen. Muitas vezes este processo cria situações desfavoráveis. Então por que "a evolução permitiu um processo que mexe com a programação genética? Embora não tenhamos uma resposta definitiva, evidência crescente sugere que, pela indução de variabilidade nas células do cérebro, os genes de transposição podem impregnar organismos com flexibilidade para se adaptar rapidamene à evolução das circuntâncias"(Fred H. Cage e Alysso R. Muotri, autores do artigo). 
A resposta parece ser a seguinte: Para que a evolução prossiga é preciso que coisas novas aconteçam. Existe aí um perígo: elas podem ser maléficas mas se este processso está em curso é que foi selecionado o que significa que para a evolução vale a pena correr o riscos pois mesmo sem muitos fracassarem em termos de adaptação evolutiva, aqueles que se adequarem levarão a evolução para diante. 
Achei que valia a pena tentar este resumo mesmo correndo o risco de não estar interpretando bem o artigo.
                                                         Nahman Armony
                                                               

À ESPERA...(moderato giocoso)

          O doce-ricota está gostoso
       E eu quero comê-lo
       Mas terei uma indigestão.
       Não sou gestante
       Para manter
       A barriga grande
       Não como pão
       (Principalmente miolo)
       Dá o que?
       Indigestão.

       Não tenho filhos
       Em minha barriga
       Mas eu os tenho
       No meu esperma.

       Muito cuidado com a indigestão.
       A barriga-barriguda
       Está grande-barracuda.

       E a barra pesa.
                                 Nahman Armony

QUEM TEM MEDO DO SALTO MORTAL?

QUEM TEM MEDO DO SALTO MORTAL? - SOBRE AMPARO E DESAMPARO

                                  (do livro "O Homem Transicional")                               


         A palavra desamparo forma-se, em diversas línguas,  a partir da palavra amparo, nela colocando-se um prefixo ou um sufixo. Isto nos leva a hipotetizar que no pensamento humano, pelo menos no momento inaugural das línguas em questão, o amparo antecede o desamparo. Isto é claro para os idiomas português, inglês e alemão. Em inglês a palavra “helplessness” forma-se por agregação de um sufixo de negação à palavra “help”. Em alemão amparar e amparo é “hilfe” e desamparado é a negação de hilfe - “hilflos”. Hilflos é um adjetivo. Mas em alemão temos também o substantivo “desamparo”, “schutzlosigkeit” cujo positivo é o substantivo “schutz”, amparo. Podemos, pois, conjecturar que no momento da formação dessas línguas o amparo antecede o desamparo.
         A vivência contemporânea inverte esses sentimentos, percebendo o desamparo como originário e dele derivando, secundariamente, o amparo. Se, por um passe de magia, a língua fosse inventada neste momento, a negação estaria referida ao desamparo para significar amparo e não o contrário. Em um rápido “flash”, focalmente limitado, podemos pensar que a velocidade das transformações culturais dificultam o homem contemporâneo de sentir que está assentado sobre um solo firme, sustentador, amparador. Voltando à aurora das linguagens poderíamos pensar que o desejo de amparo fosse tão grande que mesmo diante das condições existenciais de desamparo, o núcleo ficou sendo o amparo. Ou, hipótese que prefiro, podemos pensar que, no início das linguas, embora as condições de existência material fossem mais difíceis, a organização social e familiar, e, quem sabe, o atendimento materno, proporcionavam uma segurança suficiente para fazer do amparo uma raíz, mesmo diante das condições inóspitas e adversas de uma natureza ainda não suficientemente trabalhada pela humanidade. Regina Navarro Lins no seu esforço para encontrar uma genealogia referente ao masculino/feminino pesquisou as populações paleolíticas e neolíticas. O resultado desta pesquisa encontra-se na primeira parte de seu livro “A cama na varanda”. Diz ela: “A Deusa-Mãe reinou absoluta por todo o mundo desde o fim do período paleolítico até o início da idade do bronze”(pag.20, Editora Rocco).  “O neolítico foi um grande período pacífico”(p.20) onde “o Universo era uma mãe generosa. A deusa o governa proporcionando bem-estar a seu povo”(p.21). Um tal contexto ao ser passado para a linguagem colocaria naturalmente o amparo como primário e o desamparo como secundário. Por maiores que fossem os desconfortos e os perigos, lá estava a mãe generosa abrigando os homens em seu colo amplo e protetor. O amparo advinha da Deusa-Mãe, da Mãe-Terra. Essas culturas matricentradas ao serem substituídas por sistemas patriarcais, sofreram modificações, introduzindo-se, no âmago da civilização, a rivalidade, a belicosidade, a impiedade, a competição, a crueldade. Desaparecia o amparo primordial proporcionado pela Mãe-terra. O ser humano, agora destinado ao desamparo, sujeito às ameaças da subjetividade patriarcal, apelou para o amparo de um Deus-Pai, justo, severo e vingativo. Enquanto reinava a Deusa-Mãe, o nascimento e crescimento do ser humano dava-se em uma situação de amparo primordial, o que se modificou quando o amparo deslocou-se da Deusa-Mãe para o Deus-Pai, quando então tornou-se posterior ao desamparo, produzindo-se um amparo que não mais se apoiava na incondicionalidade da Mãe, mas sim na condicionalidade do Pai. Estas considerações não propriamente históricas, porém genealógicas, permitem puxar um filete hermenêutico e heurístico introdutório a um pensamento psicanalítico que se seguirá.
         Em psicanálise, é possível extrair da atividade teórica e clínica dos diversos autores, dois modos que em sua abrangência, indicam duas posições: uma dominada pela idéia de que o homem em sua origem e em sua vivência posterior tem no desamparo a sua pedra de toque e o seu busílis. Estamos aqui na presença do Deus-Pai. Outra, filiada à idéia da Deusa-Mãe, tendo o amparo como precursor do desamparo. Escolhi para representante do primeira posição a magnífica figura de Freud, e para a segunda a corajosa presença de Ferenczi.
         Freud fala-nos de dois tipos de experiência de desprazer: o desprazer do acúmulo gradativo de tensão e o súbito desprazer da dor. Em ambas as situações a criatura humana pode viver uma situação de desamparo. Citando Freud: “Quer o ego esteja sofrendo de uma dor que não pára ou experimentando um acúmulo de necessidades instintuais que não podem obter satisfação, a situação econômica é a mesma, e o desamparo motor do ego encontra expressão no desamparo psíquico”(“Observações suplementares sobre a ansiedade” em “Inibições, sintomas e angústia”, p.193, Vol. XXII, Edição Standard de 1976.) Na teoria freudiana, a experiência  de satisfação tem como antecedente um “acúmulo de necessidades instintuais” provocadora de desamparo. A primeira experiência teórica de satisfação, a mamada no seio, vem precedida de um desconforto, um desprazer, um desamparo. Ferenczi, ao deslocar a experiência de satisfação para a vivência do feto no útero, faz do prazer, do conforto, do amparo, uma experiência primordial, inaugural. “Se tentarmos uma identificação com o recém-nascido não apenas no plano afetivo (como as pessoas que cuidam dele) mas também no plano do pensamento, devemos admitir que os gritos de aflição e de agitação da criança constituem uma reação e má adaptação à perturbação desagradável que bruscamente interveio, pelo nascimento, na situação de satisfação de que ela até ali gozava. A partir das reflexões expostas por Freud na parte geral de sua Interpretação dos Sonhos, podemos supor que a primeira consequência desta perturbação foi o reinvestimento alucinatório do estado perdido de satisfação: a calma existência e tranquilidade do corpo materno. O primeiro desejo da criança só pode ser o de se ver de novo naquela situação”( “Escritos Psicanalíticos” de Sàndor Ferenczi (1909-1933), artigo “O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estádios”, p.78, Editora Taurus). Ferenczi desloca a experiência de satisfação para uma época anterior à amamentação e faz da experiência de satisfação a primeira experiência do ser humano. No seu livro “Thalassa, ensaio sobre a teoria da genitalidade” na pag. 280 (III vol. de suas “Obras Completas”, Editora Martins Fontes) este pensamento torna-se ainda mais claro: “À medida que aprofundamos o estudo do desenrolar do coito, torna-se evidente que não se trata apenas de um processo impregnado de prazer (a representação da bem-aventurada situação intra-uterina), mas também da repetição de experiências desagradáveis (provavelmente a primeira experiência de angústia, a do nascimento). É mais provável ainda que esses afetos e emoções não se manifestem  desordenadamente, mas, pelo contrário, segundo uma sucessão historicamente determinada”. Freud, portanto, inicia sua teorização da experiência de satisfação, não com a satisfação ela própria, mas com o desprazer que levará à busca da satisfação. Isto o diferencia de Ferenczi que, ao deslocar a experiência de satisfação para a vida intra-uterina, torna-a anterior ao desprazer. Poderemos dizer que na teoria ferencziana o amparo antecede o desamparo enquanto em Freud o desamparo antecede o amparo.
         Desta posição metapsicológica/filosófica derivamos clínicas diferenciadas entre si. Assim, por exemplo Freud e Ferenczi diferem diante do cliente potencial; enquanto Ferenczi se dispõe a ajudar e tratar toda e qualquer pessoa que o procure, não importando a sua patologia, Freud coloca restrições das quais a mais conhecida e transgredida é a impossibilidade de se tratar psicanaliticamente as neuroses narcísicas. A atitude mais humana e ousada de Ferenczi traz como corolário uma coragem maior de experimentação, com seus inevitáveis fracassos, mas com seus amplificadores êxitos.
         Uma outra diferença, nós a encontramos naquilo que pode-se chamar de posição contra-transferencial. O analista que se confinar na subjetividade patriarcal apontará para o terceiro, para o corte, para a diferenciação, criando obstáculos para a experienciação da simbiose, da ilusão, da onipotência primitiva pela díada terapêutica. O Pai Simbólico ao cortar uma relação dual simbiótica de modo súbito e violento poderá traumatizar mesmo uma evolução Mãe-Filho que tenha cumprido um percurso satisfatório; a entrada de um falo cortante será ainda mais traumatizante se for prematuro, isto é, se o tempo necessário para uma evolução satisfatória da relação dual simbiótica não tiver sido cumprido; a entrada do terceiro tenderá a se fazer de uma forma traumática, predispondo a criança para a agressividade, rivalidade, violência.
         No seu exagero, a subjetividade-Mãe poderá obter o efeito contrário: enclausurar o ser humano na relação dual, na esfera de influência da Mãe, dificultando ou impedindo sua atuação no social. No entanto, é possível, na vertente mãe, viver-se inicialmente uma simbiose onipotente, base necessária para a estruturação do psiquismo, e realizar, pouco a pouco, empáticas, afetivas e suaves separações e diferenciações, preparando a criança para uma forma não violenta, não súbita, não traumática de entrada na situação triangular (função-Pai). Neste ponto Kohut pode nos ajudar a pensar um Édipo e um superego não traumáticos, um Édipo e um superego pertencentes à linhagem de antecedência do amparo sobre o desamparo. No artigo “Formas e transformações do narcisismo” do livro “Self e Narcisismo” (Zahar Editores) escreve o seguinte: “Durante o período pré-edipico ocorrem normalmente uma perda gradual da imago parental idealizada e um concomitante acréscimo da estrutura reguladora de instintos do ego, enquanto que a perda maciça durante o período edípico contribui para a formação do superego”(p. 12). Este gradativo “acréscimo da estrutura reguladora de instintos do ego” é uma espécie de pré-superego adquirido nas relações duais, uma espécie de quase-superego, um precursor que se mantém em atividade mesmo após a instalação do superego. A questão metapsicológica que poderíamos espculativamente levantar é: este “quase-superego ou pré-superego” é absorvido pelo superego de instalação maciça ou se mantém como uma sub-estrutura individualizada dentro do superego? Tanto em um caso quanto no outro está-se no terreno da primazia do superego de instalação maciça. É justamente esta primazia que Kohut põe em dúvida no seu livro “La restauración de sí-mismo”( Paidós Editora): “Se tomamos em conta que nem sequer se pode entrar de maneira genuína na situação edípica sem a presença de um self previamente consolidado, torna-se óbvio que o período edípico presta-se mais a ser um campo de cultivo de conflitos neuróticos paralizantes do que um foco central para sérios transtornos do self”(p.168). E mais adiante: “A psicologia do self limita-se a acrescentar uma nova dimensão à nossa compreensão das experiências do menino edípico porque nos permite tomar em conta o apoio, ou a falta de apoio, dos self-objetos durante esta etapa? Ou não seria o caso de se pensar que as conceitualizações da psicologia do self lançam dúvidas sobre a correção essencial das próprias reconstruções edípicas? (...) Não teríamos considerado os desejos e ansiedades dramáticos do menino edípico como fatos normais quando, na realidade, são as reações do menino frente à falta de empatia dos self-objetos que constituem  o seu meio na fase edípica?”(p. 172). Refazendo as perguntas kohutianas dentro de nosso tema: não seria mais conveniente para nossa terapia psicanalítca pôr-se na perspectiva da antecedência do amparo? Não poderíamos pensar o desamparo que provém da “falta de empatia” como uma das manifestações da subjetividade patriarcal, e o amparo advindo da “empatia”, como função materno-filial primitiva que se mantém?
         A palavra amparo, em princípio pressupõe dois seres: o amparado e o que ampara. No entanto Ferenczi fala de um amparo ainda fetal, onde o próprio feto não sabe da existência de uma outra pessoa. Amparo aí confunde-se com segurança, conforto, bem estar. O conceito de amparo estende-se para um eu que não se sabe em relação com o outro. Para Winnicott, a mãe pode estar presente ou como um objeto de instinto (relações de id) ou como uma ambiência silenciosa: é esta função-ambiente que permite à criança “estar só em presença da mãe”. A mãe-ambiente, quando suficientemente boa, é confortadora, proporcionando um sentimento de segurança e tranquilidade que pode ser chamado de amparo. A criança vivencia a mãe, portanto, não só como objeto mas também como ambiência. Quando esses dois modos de presentação da mãe se internalizam, o psiquismo se apropria, se apossa, por um lado, de um objeto que poderá variar do benigno ao maligno, e, por outro lado de um solo que será a sua mátria daí para a frente, a sua sustentação de ser humano, o chão que o apoia e no qual se moverá. Pois bem, neste solo não só temos corolas, pétalas e árvores acolhedoras, mas também ervas daninhas, plantas venenosas, arbustos espinhentos, árvores secas. O que quero dizer é que a relação  mãe-filho, ao mesmo tempo em que fornece amparo, provoca sensações e sentimentos tanto agradáveis quanto desagradáveis, tanto alentadores quanto deletérios. O solo no qual o ser humano se ampara está impregnado de valores, de ideologia, de mitologia fantasmática e familial. Se, por exemplo, a mãe é muito exigente com a criança, ou se a desvaloriza, ou se aponta a criança como má, ou ainda, se a chantageia dizendo, por exemplo, que ela não é uma criança boa já que faz a mãe sofrer, etc., o amparo dado por este chão primitivo vem acompanhado de parasitas perturbadores, parasitas estes que acompanharão o ser humano através de sua vida. Daí a dificuldade que um adulto tem de, na análise, libertar-se de sintomas e de certas formas de sentir e de ser, como por exemplo, libertar-se de uma compulsão, libertar-se da desvalorização, libertar-se da culpa, libertar-se do ódio,etc. pois estes sintomas impregnam o solo-Mãe amparador e a libertação significaria perder a Mãe, o amparo, o solo primordial no qual desde sempre a pessoa se apoiou. Um exemplo disto pode ser encontrado no trabalho de Margaret Little “Um testemunho - em análise com Winnicott” tradução de Eva Nick do francês(xérox). Na pag. 25 Margaret Little faz um balanço de seu tratamento com Winnicott: “ Quanto a mim, conservo, bem entendido, a minha ambivalência e a minha angústia, porque análise nenhuma permite se desfazer delas ou nunca é suficientemente completa para isso. Há sempre uma parte minha que sente raiva, uma raiva inevitável (e preciosa) com relação aos seus erros ou às coisas que ele deixou de lado ou não compreendeu, mas que eram necessárias para que eu pudesse crescer e amadurecer; a perfeição não teria servido para nada. (Ele não podia me dar tudo o que o bebê em mim queria). O sentimento que prevalece é o de uma gratidão profunda e durável para com Winnicott, que me deu...”, etc. O que quero assinalar é que sua ambivalência (razoável) e sua raiva (excessiva) pelos incidentes ocorridos durante a análise não desaparecem. Algo da antiga relação materna se conserva, um algo que está expresso numa raiva obsoleta, ilegítima, por se ater a incidentes já ocorridos e já desaparecidos no passado; incidentes que poderiam ter-se dissolvidos no êxito obtido pela psicanálise. Ela parece ter de guardar restos do território materno na sua relação com Winnicott. Ela faz exigências inconscientes de perfeição a Winnicott como  aquela que, na pag. 20 apresentou em relação à mãe: “Segundo conta minha mãe, eu me agarrava a ela noite e dia e não a largava um segundo. O que Winnicott compreendeu foi que ‘ela não queria deixar você morrer’ - o que era verdade (e eu o compreendi mais tarde). Agora eu digo que ‘ela não queria me deixar escolher entre viver ou morrer’. Era necessário que eu vivesse, por ela”. A citação contém elementos incomodativos, falaciosos. Quem está agarrada à mãe é Little mas o que ela apresenta é a mãe querendo-a viva. É óbvio que sim; caso contrário não deixaria que a filha se agarrasse a ela. Essa estranha e desnecessária mudança de ênfase é usada por Little para transformar o positivo (dedicação e desejo de que ela vivesse) em negativo (“minha mãe não me deixava escolher”). Faz parte do território da mãe, do chão que a mãe lhe forneceu, do amparo, a raiva da mãe que tem de ser mantida, assim como tem de ser mantida a raiva por Winnicott. Ela não escapa do amparo da mãe, impregnado de raiva, perfeição, erro. Ela tem dificuldade de perfazer sua mudança para um outro solo, um outro amparo, um amparo que não precisaria estar impregnado de raiva.
         O sentimento de amparo, embora ligado à segurança e confiança básicas pode delas ser distinguido  como vivência essencial que de alguma maneira as precede. Usando uma linguagem que por ser chula é extremamente evocativa direi que “o buraco é mais embaixo”. Uma mãe que teve dificuldade de se relacionar com o seu filho de maneira a nele desenvolver uma segurança e confiança básicas, será ainda assim mantida como chão amparador. Trata-se de um solo/amparo em estado de terremoto, mas sendo o único conhecido pela criança, é o único possível, e é neste que ela tem de viver em época de alta porosidade. É um solo que não dá segurança mas que ampara. Talvez a metáfora mais expressiva desta idéia seja a de uma região de terremotos frequentes. A terra que treme, que provoca insegurança e inconfiabilidade, é a mesma que ampara, é a terra natal de seus habitantes. Se conseguirmos distinguir amparo de segurança, com mais facilidade perceberemos a diferença entre amparo e confiança. Existem pessoas que se amparam em uma mãe não-confiável, fazendo com que o estabelecimento de relações interpessoais torne-se problemático.
         Podemos pensar que as dificuldades que o analista encontra no trato com os dinamismos primários está não apenas no próprio dinamismo tal como ele se apresenta nos seus labirintos e círculos repetitivos e viciosos, mas também no medo de sair de um amparo para cair no desamparo, no vazio, um medo que subjaz aos dinamismos e aos sintomas e que exige do analista uma outra atenção. A compulsão à repetição e a reação terapêutica negativa podem, em parte, estar referidos a esse medo de abandonar a terra materna. Para que a pessoa possa renunciar ao único solo/amparo que conhece é preciso que regrida aos primórdios, que se abra ao analista como um bebê se abria à mãe e que sentindo o analista como também um solo primevo, um amparo primordial, arrisque-se a dar um salto mortal; pular de um solo convulsivo, para um solo mais estável; de um amparo inseguro e pouco confiável, para um amparo mais seguro e confiável. O analista se acrescentaria a tarefa de trabalhar essa passagem, esse salto por cima do abismo, esse medo de cair no vazio - o medo do desamparo absoluto.


                                                               Nahman Armony

                                                                           12/5/98