O HOMEM ATUAL E SEU MAL-ESTAR

ANOTAÇÕES

Como pensar o mal-estar do homem? Em um outro escrito chamei a atenção para o fato de que nas línguas por mim conhecidas a palavra amparo certamente antecede a palavra desamparo. Sei que a psicanálise de hoje coloca o desamparo na gênese do desenvolvimento psicológico humano com suas defesas, seus sintomas, suas estruturas de caráter. Mas eu acho significativa a precedência semântica da palavra amparo sobre desamparo que encontramos em várias linguas. Esta precedência me faz pensar que na época em que a língua se formou, portanto no início da civilização o recém-vindo ao mundo dos homens, isto é, o recém-nascido, já quando a sua cabeça apontava fora do corpo da mãe recebia um amparo que continuava pelo impulso genético que a mãe tinha em cuidar da criança. O desamparo só acontecia quando este cuidado por alguma razão não era proporcionado. E evidentemente quando as peripécias da vida provocavam frustração. Winnicott foi um grande estudioso das relações mãe-bebê e ele admite uma fase de fusão (dependência absoluta) seguida de uma fase de dependência relativa (que eu chamaria de fase simbiótica) onde uma frustração adequada não perturbaria o sentimento de amparo. O sentimento de desamparo seria uma consequência da atuação inadequada de uma mãe invasiva. 
         Certamente o amparo produz bem-estar e o desamparo mal-estar. Há, portanto, desde o início uma relação entre a ação do social e a pessoa individual. Esta, porém, é uma generalização que pouco ou nada nos diz da especificidade do mal-estar na contemporaneidade.
         Para melhor situar e compreender o mal-estar da hipermodernidade atual começarei por examinar o mal-estar da modernidade. Para isso usaremos um texto emblemático que até hoje serve de referência para psicanalistas e outros pensadores quando refletem sobre o mal-estar que a sociedade pode causar no indivíduo. Refiro-me ao texto de Freud “O mal-estar da civilização”     escrito em 1930. Lá ele aborda essa questão inicial de amparo/desamparo. Em resposta a uma carta de Romain Roland diz não acreditar no sentimento oceânico. Porém, ao desenvolver seu raciocínio acaba por admitir a existência deste sentimento no bebê e sua possível persistência residual no adulto. De qualquer forma em algum momento da vida poderá aparecer a sensação de desamparo que exige uma obturação, seja através do amor, da religião, da idolização, do poder, da submissão, da comunhão com a natureza, etc.  
         Freud fala de três fontes de mal-estar: o mal-estar que vem do corpo (doenças e decadência) o que advém de fenômenos da natureza (terremotos, eventos meteorológicos) e o que advém de nossa relação com os outros homens “na família, no Estado e na sociedade”. Vale a pena aproveitar a oportunidade e dizer que aquilo que a subjetividade social impõe ao homem tem um caráter de continuidade e persistência que a distingue dos outros mal-estares mais ou menos contingentes. Freud afirma que “a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto”. Esta formulação tem a ver com a modernidade vitoriana altamente repressiva que procurava regular as relações humanas pela renúncia à espontaneidade. Havia um código a ser seguido e os homens de hierarquia deveriam ser os guardiões implacáveis deste código. A vida societária caracterizava-se por relações verticais de poder, saber e hierarquia, pelo autoritarismo e poder quase absoluto do pai, pelo desdém em relação aos aspectos femininos do homem tais como a sensibilidade, a empatia, a capacidade de identificação, a compaixão, a tendência inclusiva, pela supervalorização dos aspectos masculinos de virilidade, força, decisão, implacabilidade, impiedade, organização, exatidão, linearidade, coerência, pensamento lógico. Quando a sociedade e o indivíduo contestaram a subjetividade patriarcal, as leis e regras, o dever e as obrigações, desenhou-se um cenário de liberdade que de um lado tudo permitia e de outro lado obrigava o homem a fazer escolhas. Segundo Bauman, esta liberdade é a atual produtora de mal-estar. Tendo o pai e a mãe perdido em grande parte o papel de modelo e de orientação o ser humano ficou por conta própria e se sentiu desorientado diante de um vasto mundo cheio de possibilidades de prazeres e realizações.

4 HOMEM ATUAL E SEU MAL-ESTAR
1-   Desde que Freud escreveu seu artigo “O mal-estar na civilização” a expressão mal-estar quase sempre ou sempre está vinculada a este artigo. Vide “O mal-estar na pós-modernidade” de Bauman, “O mal-estar na atualidade” de Birman, “O mal-estar na globalização” de Luciano Martins Costa, e outros e agora o nosso “Mal-estar na contemporaneidade”.
2-   Vou, portanto, iniciar por ele. É um texto muito rico que aborda a questão de inúmeros ângulos permitindo uma reflexão mais complexa sobre o tema.
3-   É interessante que Freud inicie o seu artigo discutindo a noção de “sentimento oceânico” proposta numa carta a ele por Romain Roland. O que teria a ver o sentimento oceânico com o mal-estar?
4-   Freud começa por negar a existência do sentimento oceânico. Aos poucos, através de um raciocínio que começa na perda de limites no orgasmo sexual e continua com uma especulação sobre o início da vida de um ser humano, Freud admite não só a existência do sentimento oceânico nestas situações, como também a persistência de restos deste sentimento nos adultos.
5-   Esta é uma questão importante. Hoje se dá muito valor ao desamparo como o motor do desenvolvimento psicológico humano. Dizem: o ser humano nasce desamparado. Esquecem que a maioria das comunidades humanas ampara o bebê assim que sua cabeça assoma no mundo desconhecida que o aguarda. Uma evidência disto é o fato de várias línguas terem o amparo como a palavra original sendo o desamparo expresso por um prefixo ou sufixo que se acrescenta à raiz amparo. Em inglês temos help como amparo helplessness como desamparo. Em espanhol amparo e desamparo. Em alemão schutz (amparo) e schutzlosikeit (desamparo). Posso imaginar que a precedência do amparo teria a ver com o acolhimento pela mãe e pela sociedade ao novo ser humano que surge na natividade. No decorrer da vida este amparo pode ceder lugar ao desamparo, passando a pessoa de um estado básico de bem estar para um de mal-estar. Mas, sem dúvida, o primeiro acolhimento influi no estado de mal-estar.
6-   Faz parte deste amparo aquilo que R.R. chamou de sentimento oceânico do qual Freud inicialmente discordou. Porém ao trabalhar sobre esta ideia admitiu primeiro que no “no auge do sentimento do amor a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer”. Mais adiante admite que o recém-nascido “ainda não distingue o seu ego do mundo externo”. Freud reencontra o sentimento oceânico, que nada mais é que um estado de fusão ou de simbiose como colocam vários autores psicanalíticos, entre eles Winnicott que fala explicitamente de fusão na fase de dependência absoluta. Esta fusão com uma mãe suficientemente boa é necessária para um desenvolvimento saudável.
7-   Voltemos à pergunta acima: o que isto teria a ver com o sentimento de mal-estar? Sem dúvida um ser humano que não encontrasse um amparo, um holding no seu ambiente sentiria o mal-estar do desamparo. Poderíamos dizer que ele sentiria um desamparo básico, um mal-estar básico que em nada o ajudaria nos desafios e frustrações que a vida impõe. Ao contrário o sentimento de mal-estar certamente se intensificaria. Já a criança que sentiu o bem-estar do amparo enfrentará melhor os desafios da vida podendo passar melhor pelas situações pelo que Freud chamou de três fontes de sofrimento: “o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade”.
8-   Mais adiante Freud fala do mal-estar causado pela repressão das pulsões. Uma pulsão não realizada pode provocar um mal estar. Um conflito entre a pulsão que quer se realizar e o superego que impede esta realização provoca mal-estar. Os sintomas advindos do conflito provocam mal-estar. Porém todos esses mal-estares estão referidos à presença de um superego que é o representante do Pai, da lei social. É um mal-estar amparado e aprovado que faz com que a pessoa se sinta incluída no grupo social de uma maneira correta. Estamos aqui em um sistema neurótico que recalca os aspectos femininos e se identifica com os aspectos masculinos do pai, com o seu superego. Estamos na fase da modernidade vitoriana. O mal-estar está ancorado num eixo moral e a satisfação de estar tentando agir de acordo com este eixo moral é tranqüilizador. No fundo de todos os mal-estares está o sentimento de que a pessoa está agindo irrepreensivelmente. É claro que existem prejuízos: na criatividade, na abertura amorosa, na capacidade de compartilhar, etc. Em princípio trata-se de um homem auto-suficiente, inclemente, com pouca abertura para o afeto e a compreensão. É um homem do dever e seu mal-estar tem a ver com os processos de repressão/recalque vigentes na modernidade vitoriana e que produziam uma subjetividade neurótica. Quando falo de subjetividade neurótica não penso apenas em patologia, mas também em normalidade. Existem neuróticos graves prejudicados ou incapacitados em relação ao trabalho profissional e que pouco usufruem da vida afetiva, do lazer, da diversão. Existem neuróticos próximos da normalidade ideal que apresentam suaves sintomas neuróticos que pouco ou nada atrapalham sua capacidade de trabalhar, amar e se divertir.
9-   Recapitulando: o mal-estar advindo da repressão das pulsões e desejos está referido a um superego que promove e aprova esta repressão provocando uma satisfação dentro do próprio mal-estar. Este o mal-estar do neurótico, o mal-estar da modernidade. Diferente é o mal-estar da contemporaneidade. Ela é fruto de vários fatores: uma reação exagerada da sociedade à subjetividade repressiva e que veio a desembocar numa excessiva permissividade. Vou contar aqui um pequeno episódio acontecido comigo, paradigmático: estava eu visitando um casal com um filho e estávamos reunidos na mesa da cozinha. Por duas vezes eu me senti desrespeitado não só pelas intervenções de uma criança de 11 anos, mas também e talvez principalmente pelo tom das intervenções. Dei-lhe uma bronca. O casal nada falou. Mais tarde o pai me chamou para uma conversa em particular e disse que ele tinha dado uma educação excessivamente solta para o filho pois ele próprio o pai tinha se sentido excessivamente reprimido. A psicanálise influiu na mudança de subjetividade com o trabalho de desrepressão. Freud esperava que os impulsos liberados seguissem um caminho sublimatório ou que permitissem uma redistribuição racional dos recalques. Não foi o que aconteceu. Outros fatores: capitalismo de consumo que incita os desejos; extraordinária difusão da informação pela Internet; multiplicação dos contatos entre pessoas de todo o mundo através da Internet; possibilidade aumentada de difundir ideias e sentimentos através dos blogs, uma tecnologia cada vez mais avançada que exige cada vez mais do homem, um engajamento cada vez maior do pai e da mãe no trabalho que já não podem ter a mesma dedicação de antanho para os filhos, etc.
10-               Estamos, pois, falando do mal-estar da pós-modernidade, também chamada de modernidade líquida e de hipermodernidade. Didaticamente podemos dizer que o mal-estar da modernidade está atrelado à repressão/recalque e o mal-estar da pós-modernidade à permissividade. A permissividade atualmente se manifesta de alguma maneira em praticamente todas as áreas do quefazer humano. As pessoas deixam-se levar por seus impulsos e são estimuladas a isto. A arrumação estética dos vários produtos colocados à venda, a propaganda inteligente e psicologicamente sofisticada, a apresentação contínua de novos produtos levam a um consumo exagerado. Na família pai e mãe tendem a realizar todos os caprichos dos filhos não conseguindo colocar limites. Os pais têm medo de não serem amados pelos filhos. Isto teria a ver com um desmanche do superego que já não tem força para, com sua aprovação, dar tranqüilidade aos pais. Um superego fraco deixa em dúvida se os valores estão corretos e, portanto se devem ser respeitados. A relativa ausência dos pais dificulta os processos de identificação da criança tornando-a insegura e vulnerável. As babás, os programas de televisão e a internet entram neste vazio deixado pelos pais induzindo identificações múltiplas o que pode, pelo menos em um primeiro momento, causar confusão. Na escola a ordem unida e a noção de dever estão sendo substituídas substituídas pelas noções de singularidade, interesse, criatividade. Há uma charge aparecida há algum tempo em um dos jornais ou revistas que mostram a diferença entre a modernidade e a pós-modernidade na escola. Na primeira figura vemos os pais ouvindo a orientadora pedagógica e dispondo-se a tomar providências em relação ao mau comportamento ou mau aproveitamento do filho. Na segunda os pais culpam a escola das dificuldades do filho, eximindo-se da responsabilidade. Esta é outra característica encontrada na pós-modernidade. O “lavar as mãos” dos pais, o laissez-faire, a falta de disposição de participar ativamente da educação e da aculturação do filho.  
11-               Na modernidade não havia a angústia da escolha, pois os caminhos já estavam previamente traçados. Havia sim a consternação de seguir um caminho imposto pelos outros, a frustração de não poder seguir a sua vocação e de construir sua vida segundo sua singularidade, e também, todas as consequências da repressão conforme já foi visto. Este o mal-estar neurótico.
12-               Assim como o neurótico é o homem da modernidade, o borderline é o homem da pós-modernidade. A dissociação é seu principal recurso embora também recorra ao recalque. De suas várias características a que nos interessam aqui é sua porosidade, tendência ao ato, onipotência mitigada. Sem um superego forte e com um ideal de ego confuso (desaparecimento das ideologias, inclusive), tendo à disposição de sua consciência os seus pequenos eus com seus múltiplos desejos e encontrando um mundo rico de estímulos e ofertas, ele sente desorientado, confuso, sem saber o que fazer da vida. Isso pode levá-lo a buscar uma figura orientadora: busca de função mãe, de função pai ou de ambos. Neste caso ele apresentará uma viscosidade, uma fixação, uma dificuldade de separação, um estreitamento de horizontes. Em não tendo feito suficiente identificação com os pais as valências identificatórias permanecem abertas e podem se dirigir para as figuras de mãe e/ou de pai mantendo-o aprisionado a estas figuras. Ou pode dirigir ou redirigir as valências para o mundo em permanente movimento, sem saturá-las, podendo assim acompanhar as transformações da sociedade e da cultura. O seu mal-estar tem mais a ver com desamparo que o mal-estar do neurótico. O neurótico, como já vimos, tem o seu mal-estar em cima de uma plataforma de dever, de aprovação do pai e da sociedade representados pelo superego. Já o mal-estar do borderline não está ancorado em elementos internos. É um mal-estar de quem está num mundo rico, cheio de estímulos e que precisa escolher um caminho que combine com seus gostos e sua vocação. Nesta escolha ele se sente desorientado e muitas vezes cai num estado de inércia, de niilismo, de depressão, de ansiedade ou mesmo de desespero. “O que quero fazer de minha vida?” é o seu mal-estar e sua aflitiva pergunta. Quando finalmente a inquietude vem a ser aceita como uma boa e sábia companheira e ele encontra um modus vivendi ele pode fazer uso de sua porosidade, de sua onipotência mitigada e seu desejo imediato de realização de uma forma socialmente produtiva e adequada de tal maneira que acaba por fazer parte do acervo social.
  
13-               Um bom amparo no início da vida criará uma base segura para enfrentar as agruras e desafios que certamente o mundo lhe imporá.
14-               O sentimento oceânico quando pode ser sentido sem dúvida nos ampara. Não é outra coisa que Winnicott nos diz do bebê que tem uma mãe suficientemente boa com a qual, na fase da dependência absoluta pode realizar uma fusão que o ampara (ao qual deu o nome de holding) e na fase da dependência relativa pode realizar uma simbiose que já inclui frustração sem que esta provoque desamparo. Creio que ninguém duvidaria que o amparo produz bem-estar. Certamente o mal-estar não estaria aí alojado. Ele aparecerá posteriormente, mas o ser humano tem a oportunidade de uma experiência primeira de acolhimento, de bem-estar básico. Não é a toa que nas diversas línguas as palavras designativas têm como raiz o amparo ao qual se acrescentam prefixos e sufixos para designar desamparo. Em inglês temos help como amparo helplessness como desamparo. Em espanhol amparo e desamparo. Em alemão schutz (amparo) e schulozikeit (desamparo). Posso imaginar que a precedência do amparo teria a ver com o acolhimento ao novo ser humano que surge na natividade. No decorrer da vida este amparo pode ceder lugar ao desamparo, passando a pessoa de um estado básico de bem estar para um de mal-estar. Mas, sem dúvida, o primeiro acolhimento influi no estado de mal-estar.
15-               Em um de seus parágrafos Freud coloca que a repressão social, impedindo a manifestação da pulsão, provoca mal-estar. É um mal-estar que tem uma referência externa (repressão) e uma interna (recalque). Neste caso o mal-estar está acompanhado com um sentimento de dever não cumprido diante da sociedade e do superego Na hipermodernidade não há um superego orientador, nem doutrinas externas orientadoras. A pessoa entregue a si mesma, tendo de fazer suas escolhas de vida, fica cheia de dúvidas e sente-se perdida em um mundo complexo e contraditório. A ideologia familiar e social não fornece um amparo como a modernidade oferece. Trata-se de um mal-estar mais radical. As identificações com os pais são precárias. Não se criam laços fortes com os semelhantes. A mãe atual solicitada pelo seu trabalho e participando das preocupações da família, não pode ter a dedicação das mães de antigamente. O amparo inicial em algum ponto fica comprometido. Por outro lado o pai já não se oferece como figura de identificação para ser internalizada como superego que serviria de guia à pessoa. E ainda, Richard Bennet fala-nos da erosão do caráter quando as condições externas são mutáveis, como acontece em nossos tempos.
16-               Aqui ocorre uma coincidência interessante que certamente não é coincidência. A não identificação com o pai mantém a pessoa ligada aos modos e valores da mãe. Um dos modos de ser da mãe é relacionar-se através da porosidade. É este modo de ser que permite a empatia, a compaixão, o espírito de conciliação, a compreensão contextual das situações, a visão humanista para além da visão objetiva. Esta mãe está aberta para o mundo. Como diz Freud, ela tem um superego frouxo que admite influências externas. O bebê em sua interação com a mãe internaliza esse modo de relacionamento/conhecimento/comunicação. No período freudiano esta abertura era obturada, obrigando-se a criança a abandonar os valores femininos para tornar-se um verdadeiro homem, poderoso, inclemente, sem sentimentalismos que o atrapalhariam na dura luta pela vida. A identificação com o pai poderoso não é feita. As valências identificatórias que se completariam nessa identificação, criando um superego infenso às influências exteriores, mantêm-se incompletas. Ora, um superego fechado ao mundo não poderia acompanhar as suas mudanças. Já o superego com valências identificatórias em aberto permite a identificação do ser humano com o devir do mundo. Podemos dizer que ao mesmo tempo o mundo se tornou imprevisível e instável e ao mesmo tempo as subjetividades têm a capacidade de acompanhar essas transformações. Como diz Bauman, passamos do sólido para o líquido.
17-               Certamente há um preço a ser pago. O preço da ansiedade, da insônia, da inquietude, da agitação. O preço será ainda maior se as relações com a mãe tiverem sido insuficientemente boas. Neste caso não só as valências-pai permanecem abertas como também as valências-mãe. Estou por uma questão didática apresentando as situações em termos absolutos, mas há variações nas identificações, seja com o pai, seja com a mãe. As valências-mãe em aberto provocam um extremo desconforto que pode levar às drogas, à agressividade, à perversão, aos sintomas psicossomáticos. Essa agitação está relacionada a falta de uma base, de um eixo afetivo, pois esta criança não se sente aceita nem participante do mundo. As valências identificatórias abertas levam em primeira instância à busca da mãe insuficiente para tentar viver uma suficiência ou da mãe suficiente que foi perdida. O pulo do gato é poder direcionar as valências identificatórias abertas para o mundo, para a cultura, para a natureza, para a beleza. Poderia ser um dos caminhos da terapia, mas certamente é um caminho cheio de ciladas. É preciso que o analista, uma vez solicitado, aceite ser a mãe (e aqui falamos mais de uma mãe real do que transferencial), mas uma mãe que direciona as valências identificatórias que passam por ela, para o mundo. Neste processo o analisando pode se sentir rejeitado entendendo que a mãe o joga para o mundo por não desejá-lo. E teremos de lidar com este paradoxo com uma delicada sutileza.
18-               Apresentei um quadro geral e algumas noções precisaram permanecer não-ditas para que o conjunto pudesse ser abarcado na sua lógica própria.
      

                                                        Nahman Armony

INSTABILIDADE ESTÁVEL



                                   
Uma pergunta anda preocupando muitos casais atuais: será possível alcançar a estabilidade de uma união hoje, com tantas mudanças nas relações entre homem e mulher? A dúvida procede e tem raízes profundas e antigas. Ameaçados por predadores, doenças e até pelo clima, nossos ancestrais pré-históricos viviam em permanente estado de insegurança. O desenvolvimento de instrumentos de defesa e o domínio do fogo reduziram um pouco esse sentimento, mas não o eliminaram. Inventaram-se então os deuses protetores. Ainda assim, a imprevisibilidade e a insegurança persistiam. As religiões monoteístas trariam outra alternativa de alívio para o mal: a vida pós-morte, que, se vivida no paraíso, traria felicidade, segurança e tranqüilidade eternas. O homem tinha, então,  o seu olhar projetado para o além da vida. Com a filosofia do francês René Descartes (1596-1650) e a física do inglês Isaac Newton (1642-1727) as coisas mudariam: havia a promessa da felicidade plena ainda em vida, pelo desenvolvimento da ciência, que nos livraria de doenças e nos daria máquinas que resolveriam todo tipo de problema. Em tal clima de otimismo, o homem deixou de aceitar a incerteza como parte da vida e passou a exigir de si mesmo e dos outros estabilidade, previsibilidade, segurança, felicidade permanente. É essa mentalidade que ainda predomina, embora já haja brechas por onde a insegurança se infiltra. Uma dessas brechas é o setor amoroso.
Estamos saindo de um período em que esperava-se que os casais se encontrassem, namorassem, se casassem e vivessem felizes para sempre. Havia um simulacro de estabilidade e sossego. Uma estabilidade tipo “eu mando, você obedece”. A paz reinava à custa de sacrifício e sofrimento ocultos, mas isso era ignorado e o troféu era “o casal feliz”, “a família feliz”, a estabilidade, enfim.
Com o advento das relações igualitárias, as divergências vieram à tona. A mentalidade de ponta não aceita que um dos membros do casal fique em posição submissa, reprimindo desejos e sentimentos para manter suposta harmonia. E agora? Como conciliar as diferenças? Mais que isso, como cada parceiro irá lidar com a sensibilidade do outro? Se penso dizer alguma coisa que o ferirá, devo me calar? Mas e se, em emudecendo, acumulo ressentimentos que irão estourar em algum lugar e momento? Até onde devo passar por cima de meus sentimentos para respeitar a sensibilidade do outro? E será que este outro está tendo o mesmo cuidado? Até onde devo me sacrificar pela pessoa que amo?
A resposta a essas questões não é precisa, mas fugidia, pois depende da sensibilidade momentânea do casal, fruto das experiências cotidianas com o parceiro e com o mundo, do estado de espírito, do estado de saúde, e de muitos outros fatores.
A bússola se encontra no vir a ser da relação. Realiza-se uma ação e há uma resposta que deverá ser levada em conta para a próxima ação, e assim por diante. Haverá momentos em que um dos dois estará em condições de receber maior carga mobilizadora e poderá ser mais compreensivo. Haverá outros em que as circunstâncias o tornarão mais frágil e não poderá então suportar o peso da susceptibilidade do outro.
Se concebermos dois pólos extremos  “pensando em mim” e “pensando no outro” e os ligarmos por uma linha de gradação, poderemos dizer que a possibilidade de uma relação satisfatória está na flutuação do casal por essa linha imaginária, ocupando a cada momento o ponto mais conveniente para seu escorregadio equilíbrio. O par alcançará então uma segurança insegura, uma instabilidade estável. Esta poderá ser a baliza de referência para o entrosamento do casal.  


               Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS



                                                                                   

POEMAS PARA MEUS FILHOS - III

                    Havia pavor nos seus olhos
             Olhei no fundo de seu pavor
             E juntos
             Enfrentamos o Inominável.

             Havia Morte em meu corpo
             E em minha alma
             Mas não em meus olhos.

             A súplica dos olhos de minha filha
             Varreu de meu ser a angústia do Além
             E me tornou Puro, Forte,
             Uma Rocha,
             A olhá-la com a força dos Deuses Benfazejos.

             Nem eu mais a olhava
             Nem ela a mim.
             Nossos olhares eram uma só Intensidade
             Lutando contra o Horror.
             Quatro olhos-infinitos
             Formando um infinito arco
             Intransponível.

             O choro era um grito de Vitória
             O grito, uma Sinfonia Guerreira
             A dor, um Amuleto, ancorado
             Nas cem correntes entrelaçadas
             Protegendo a Vida
                                a Alma
                                       O Amor.

             A paz no fundo dos olhos
             Os olhos no fundo da paz
             O fundo na paz dos olhos
             Os olhos nos olhos
             A olhar
             A trançar
                  Retraçando
                        Caminhos.
                                          
                            Nahman Armony  
       

IDENTIDADE ONTOLÓGICA

Identidade e identificação
         A maioria dos autores considera que a identidade é o resultado das inúmeras identificações vividas, especialmente aquelas dos períodos iniciais da vida. Freud fala-nos de uma identificação primária, anobjetal, anterior ao investimento objetal e de uma identificação secundária que acontece depois de estabelecida a diferenciação entre o eu e o não-eu, entre o eu e os objetos do mundo. Winnicott desenvolve esta idéia de identificação primária; com ele podemos dizer que existe uma identidade primária, resultado de identificações primárias e uma identidade propriamente dita que podemos conectar às identificações secundárias de Freud.
         Essas questões colocadas em termos winnicottianos, assim ficariam: ao nascer, o bebê estaria numa situação de “dependência absoluta” e a mãe com uma “preocupação materna primária”. Nessa fase haveria uma fusão mãe/bebê. Esta formulação é diferente da exposta acima. Winnicott tanto fala de uma identificação primária quanto de fusão. E estes dois conceitos (ou noções) parecem não se superpor. Não sei se isso importa, pois quer falemos de identificação primária, quer falemos de fusão, o resultado é uma identidade que podemos nomear de primária.
         Se falarmos de fusão estaremos pensando numa maior participação da mãe no processo de constituição da identidade. As fantasias, temores, sentimentos, esperanças da mãe interagem com as potencialidades do bebê e a identidade primária estará impregnada pela subjetividade da mãe. Posso usar como analogia, com vistas à maior compreensão do que estou querendo dizer, a idéia winnicottiana de superposição de duas áreas de brincar. Claro que a analogia é imperfeita, pois neste último caso já terão acontecido identificações secundárias, estando o eu já bem constituído no sentido de se diferenciar de um não-eu.
         Se falarmos de identificação primária estaremos remetidos a uma mãe que mais atende às necessidades do bebê do que contribui com seu desejo para a formação de uma identidade. Outeiral em seu livro “Conhece-te a ti mesmo” escreve a propósito: “E esta mãe não é sempre uma única coisa ou coisa alguma, ela é aquilo que o bebê necessita que ela seja”(p.69)
         Podemos para além dessas duas formulações, fazer, ainda baseados em Winnicott, uma outra não incompatível com a idéia de fusão e podendo ser considerado um de seus aspectos. A fusão vista em sua feição macro, global: a identidade primária seria simplesmente SER e esse SER do bebê depende da mãe poder SER na relação com o seu bebê. A palavra “simplesmente” não pretende tirar a importância de SER. Significa que é um processo que está além das possibilidades de uma descrição ou de uma rememoração, podendo apenas ser intuído, talvez a partir de uma hipotética memória arcaica não-verbal a ser despertada mais pela capacidade impressionista/nebulosa da palavra poética do que pelo discurso logicamente coerente. Voltando à questão do SER. Na preocupação materna primária a mãe está inteiramente e integralmente voltada para o bebê, estando presente psicossomaticamente. Ela está SENDO para o bebê que então tem a experiência de SER. Impossível definir este SER da mãe. Podemos recorrer a Lacan que em seu seminário sobre a lógica do fantasma (e aqui estou me reportando ao artigo de Luiz Eduardo Prado de Oliveira (p.83) publicado na Revista Panamericana de Psicopatologia Fundamental, III, 3, 73-102 intitulado “Jeremias, criança, luta contra o autismo, a esquizofrenia e a paranóia”) diz que o corpo é o primeiro significante que virá a adquirir significado para o sujeito, se tiver sido antes significante para a mãe. Ainda em busca de uma compreensão/intuição podemos parafrasear Masud-Kahn que dizia de Winnicott, estar ele psicossomaticamente presente e voltado para o seu paciente. O mesmo pode dizer-se da mãe que está SENDO para o seu bebê. É cabível usar as palavras devotada (palavra winnicottiana), dedicada, capturada, fascinada; pode-se dizer que o bebê é a razão e foco de sua existência. Estas palavras e expressões só serviriam para tentar despertar no leitor a intuição do que é estar SENDO na relação com o bebê. Se na fase de fusão a mãe É para o bebê, então este pode também SER, o que significa que ele poderá ver confirmada a sua experiência de onipotência começando por aí a usar o seu potencial hereditário na interação com o ambiente. Como estamos falando de SER não nos será difícil aceitar que está aparecendo uma primeira e primitiva identidade que podemos chamar de ontológica. O bebê tem uma presença tão verdadeira, sólida, consistente quanto a pedra ou qualquer outro objeto animado ou inanimado da natureza. Não há dúvida de que esse pensamento apresenta dificuldades. A tendência seria só poder pensar o SER em oposição um não-SER. Não é, porém o que Parmênides nos diz quando separa radicalmente o Ser do não-Ser em sua famosa frase: “o que é, é, e o que não-é não é”. Ou: “uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo”, concluindo a partir daí, através de um raciocínio sofisticado, que tudo é Ser e que não existe o não-Ser. A argumentação de Parmênides permite que aceitemos melhor – já que estamos apoiados em um mestre da filosofia – a idéia de que um bebê em estado de onipotência absoluta onde só ele existe e o universo todo é ele próprio, está em um estado de Ser com exclusão de todo não-Ser. O não-Ser não existe. Como em Parmênides, há aí uma espécie de plenitude que preenche todo o universo. Este SER absoluto do bebê, filosoficamente alcançado, permite intuir uma situação psíquica importante para o desenvolvimento de uma certa teorização, uma teorização que tem a ver com uma prática. É importante que também o analista SEJA para que o analisando possa SER. Isto é particularmente importante em pacientes nos quais, o sentimento de SER está prejudicado. Podemos aqui encontrar os fundamentos teóricos para que o analista esteja presente na sua relação com o paciente com o seu corpo e alma, ou melhor, com o seu soma, psique e mente, e que este corpo/psique/mente integrado esteja inteiramente voltado - disponível e atento - para o seu analisando.
         Falei aqui de três caminhos: a mãe como espelho do bebê, a mãe como parceira contribuinte e a mãe como possibilitando o SER do bebê através de seu SER. Este último pode ou não ser incluído no segundo, de acordo com o gosto de cada um. 
         Estamos, pois, diante de três caminhos. Qual deles o verdadeiro? Esta, acredito, é uma falsa questão. Quando construímos nossas teorias ou nossas teorizações, valemo-nos de observações fenomênicas que serão organizadas, valoradas e selecionadas segundo nossas concepções inconscientes (penso também nas pré-concepções de Bion). Tendemos a nos relacionar com os nossos analisandos segundo dinamismos que se formaram ao longo de nossa vida, dinamismos estes criados no contato com figuras significativas, desde pais até psicanalistas. É nossa experiência total, incluindo-se aí leituras, teorias, e o que mais seja, que está em jogo quando estamos trabalhando em nossos consultórios. Temos predisposições afetivas, intelectuais, psicomentessomáticas e buscamos ou inventamos teorias que permitam balizar a nossa forma de ser e proceder. Interpretamos assim os fatos segundo nosso direcionamento como analistas. Um símile: quando se escreve uma biografia a subjetividade do autor está presente. Duas biografias sempre serão diferentes, embora se refiram a uma mesma vida. O mesmo pode-se dizer da adaptação de livros ao cinemas: o livro “Ligações perigosas” foi filmado por dois grandes cineastas, Stephen Frears e Milos Forman que deram versões diferentes ao mesmo livro. (um dos filmes tem o mesmo nome do livro e outro se chama “Valmont - uma história de seduções. Valmont é o nome de um dos personagens do livro. Houve ainda uma adaptação do livro (ou do filme) à época atual, resultando em uma outra perspectiva). São apenas analogias que pretendem tão somente clarificar a idéia de que os fatos, desde sua captação estão impregnados de subjetividade e são selecionados, organizados, valorados a partir das necessidades subjetivas do analista em ação no seu trabalho.  
         Teoricamente podemos imaginar que existe uma primeira identidade que chamei de ontológica. Corresponde à fase de fusão onde a mãe deverá estar presente com o seu SER, denso, consistente, voltando-se integralmente para o bebê afim de que este possa se apossar de sua identidade primeira, uma identidade prévia à identificação(a identificação pressupõe a presença de dois). Acho que a expressão “estar inteiramente voltado para o bebê com o seu SER integral” exprime aproximadamente a idéia. Aqueles que não tiveram uma mãe suficientemente boa nesse período apresentariam uma dificuldade de se sentirem existindo e ficariam em um nível muito primitivo de comportamento e defesa. Se minimamente a criança se experimentou como SER pode apresentar angústia de aniquilamento que a ameaça de desintegração, desperta. Estou aqui ligando teoria e prática. A hipótese teórica organiza para o analista 1-a fala dispersa, ansiosa, pouco coerente onde ele se sente chamado a acolher a fragmentação, 2- as atividades múltiplas sem objetivo que não seja a própria atividade, 3- o desajeitamento corporal resultante de uma coordenação motora falha. Supõe que o autismo e a confusão mental, a falta de referências na realidade (como na esquizofrenia hebefrênica ou na esquizofrenia simples) são formas derivadas da falta de SER. Não fica porém claro, em suas minúcias como isto se daria. Devo então renunciar a esta formulação, ou deixá-la como uma intuição a ser justificada? 
         Em seguida encontraríamos, na linha da dependência, uma regressão à transição entre a dependência absoluta e a dependência relativa. Se esta transição foi mal vivida, a passagem da onipotência absoluta (identidade ôntica) para a onipotência mitigada, da experiência unária de onipotência para a experiência dual eu----não-eu fica prejudicada. A segunda identidade que é a separação de si mesmo do mundo não se faz adequadamente. Estaríamos basicamente, segundo Winnicott/Abram no reino dos borderlines, esquizofrênicos, esquizóides. Teríamos uma identidade difusa, uma identidade que através das identificações projetivas e introjetivas excessivas tenderia a se espalhar para fora de si mesmo e a se deixar penetrar excessivamente pelo externo. Basicamente, a mãe não teria conseguido acompanhar os movimentos de retração e expansão do bebê. Não estaria suficientemente identificada com o seu bebê para perceber seu movimento de retorno à fase de dependência absoluta a partir da dependência relativa e vice-versa. Ou, numa outra linguagem que muitas vezes eu adoto, uma oscilação entre simbiose e fusão. Winnicott: “Vemos portanto que na infância e no manejo dos lactentes há uma distinção muito sutil entre a compreensão da mãe das necessidades do lactente baseada na empatia, e sua mudança para uma compreensão baseada em algo no lactente ou criança pequena que indica a necessidade. Isto é especialmente difícil para as mães por causa do fato das crianças vacilarem de um estado e outro; em um minuto estão fundidas com a mãe e requerem empatia, enquanto que no seguinte estão separadas dela, e então, se ela souber suas necessidade por antecipação, ela é perigosa, uma bruxa. É muito estranho que mães que não são nada instruídas se adaptem a estas mudanças no desenvolvimento satisfatório do lactente, e sem nenhum conhecimento da teoria. Este detalhe é reproduzido no trabalho analítico com pacientes borderline, e em todos os casos em certos momentos de grande importância quando a dependência na transferência é máxima”. (“O Brincar e a Realidade”, p.51/2). Se a mãe não acompanha o vai-e-vem de seu bebê este apresentará problemas na área de identificação/identidade. Pode sentir-se não aceito, não reconhecido, não autorizado quando da passagem da simbiose para a fusão e vice-versa. A flexibilidade da vida psíquica fica prejudicada pela intrusão materna. As necessidades do self do bebê (que aqui talvez já seja conveniente chamar de verdadeiro self) não são atendidas. Os dois estados não podem se suceder dentro de uma integração temporal. Diante da intrusão o bebê reagirá ativamente ou passivamente: poderá se revoltar e enraivecer-se, tentando a integração no tempo, ou se conformar, cindindo então os estados de fusão e de simbiose; deixa então de haver um fluxo livre entre estes dois estados, tendendo o bebê a privilegiar um dos estados, ficando o outro dissociado, mas passível de, de repente ser retomado.
         O que haveria de novo no que foi aqui apresentado? Creio que teremos uma referência teórica a mais para compreendermos personalidades que não se sentem consistentes e que aparecem em número crescente em nossos consultórios. São pessoas que para se sentirem existentes precisam muitas vezes de emoções fortíssimas, entre elas a emoção da violência/destruição. Creio que a minha principal contribuição neste trabalho é a noção de “identidade ontológica” que depende da capacidade de SER da mãe, e, posteriormente, do analista. 

                                                        Nahman Armony

CONTRADIÇÃO E PARADOXO


         Mesmo que não saibamos, a mentalidade da época em que vivemos influi em nossas emoções, sofrimentos, prazeres e alegrias. Quando nos deparamos com um dilema afetivo sentimo-nos na obrigação de resolvê-lo. Não se trata de um dever consciente, mas de uma mentalidade que nos penetra e que nos obriga a fazer uma escolha. Esta mentalidade nem sempre vigorou no Ocidente. Houve época, antes dos filósofos gregos da natureza em que os dilemas não tinham que ser resolvidos. Não se falava de verdadeiro e falso, mas sim de velamento e desvelamento; aquilo que estava encoberto num certo momento não era uma falsidade pois poderia ser descoberto a qualquer momento enquanto que o que estava exposto passava à condição de encoberto. A convivência do coberto e encoberto fazia parte da mentalidade dos gregos arcaicos. Com Parmênides e os filósofos da natureza surgiram as figuras lógicas da verdade e da falsidade, logo adotado por Platão com a sua concepção de um mundo das idéias verdadeiras, modelares e eternas. Durante muito tempo, e ainda hoje, vivemos sob a influência de Platão o que causa um a mais de sofrimento que poderia ser evitado.
          

         Uma das dificuldades nas relações amorosas é a conciliação da preservação da individualidade com a plena entrega ao outro. Se por um lado necessitamos de um núcleo sólido de personalidade para sentirmo-nos estáveis, por outro somos impelidos na direção do outro pela necessidade de dar e receber amor. Isto se torna mais difícil quando pretendemos nos entregar por inteiro ao amor pelo outro. Esta entrega exige uma abertura de todos os recantos do ser e assim ficamos vulneráveis às influências da personalidade do parceiro amoroso. É claro que existe uma gradação no amor que vai do máximo da reserva possível, além da qual não é possível uma relação amorosa, até o máximo da entrega de si mesmo. Enquanto o amor se encontra naquela fase em que o parceiro amoroso não é visto em sua realidade, sendo nada mais nada menos do que a projeção de sua fantasia, situação facilitada pelo desejo de cada um ser como o outro deseja, a individualidade de cada um encontra-se a salvo. Sinto aqui necessidade de fazer uma distinção: ao ver o outro não como ele mesmo, mas como sua fantasia é claro que a individualidade fica preservada e até reforçado pelo que se imagina que seja um duplo ou um complemento perfeito seu. Mas, junto com esta ilusão existe o desejo de ser como o parceiro o idealiza; é claro que este impulso poderia ameaçar a individualidade do sujeito. No entanto, nessa fase, não aparece o medo de “perder a personalidade”. Nessa fase o que cada um quer é perder-se no outro, é ser como o outro deseja, já que esse outro está idealizado e tudo o que ele pensa, sente e é traz a marca da perfeição. Sabemos todos que este estado não é duradouro, e após um certo lapso de tempo a pessoa recupera-se da “doença” do apaixonamento, reencontrando-se a si mesma. Mas para que a relação possa persistir é preciso que algo da doença, algo da ilusão sobre o outro se mantenha. Agora, porém devem andar lado a lado a preservação do núcleo da individualidade que foi negligenciado no período de paixão máxima e absoluta e a entrega confiante ao companheiro dentro do clima de amor/paixão. Esta a equação ideal, porém difícil de ser mantida. Quando dois processos que se excluem existem concomitantes na alma do ser humano, este tende a se livrar de um deles para evitar um conflito que traz ansiedade e, portanto, sofrimento. Aqui devo fazer um parêntesis para distinguir contradição de paradoxo. Quando falamos em contradição pensamos que os termos se excluem não podem conviver. Se estes termos que não se combinam forem vividos como paradoxo então a sua convivência se torna possível. Nossa formação pessoal exige que durante as primeiras décadas de nossas vidas eliminemos os contrários. Temos de pensar e viver no registro do contraditório. Após solidificarmos nossa personalidade poderemos escolher entre estar no regime da contradição ou no registro do paradoxo. Durante muitos séculos, desde Parmênides e Platão, a humanidade escolheu o caminho da contradição. Hoje, até a física quântica trabalha com o paradoxo. A luz é ao mesmo tempo onda e partícula. Mas transplantar essa concepção para a alma humana é algo complicado que exige grande trabalho pessoal, e certamente, será uma tarefa de gerações. Mas é algo que já está em curso. Se compararmos a letra de um antigo bolero, com produções mais recentes, veremos que há um esforço em trilhar este caminho. O antigo bolero diz: “: “Nosotros; que nos queremos tanto; debemos separarnos; no me preguntes más; no es falta de cariño; te quiero com mi alma; te juro que te adoro y en nombre deste amor y por tu bien te digo adiós”. Já hoje temos Zeca Pagodinho dizendo “deixa a vida me levar, vida leva eu...” ao mesmo tempo que Vinicius canta “sei lá, sei lá, a vida é uma grande ilusão, sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão” e “sei lá, sei lá, só sei que é preciso paixão: sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão”. Não mais lutar com a contradição, mas transformá-lo em paradoxo, o que significa deixar-se levar pelos acontecimentos.

                                                                                                                                                                                    Nahman Armony

                                   Primeira publicação na revista CARAS.