INFIDELIDADE E CIÚME: NATURALIZAÇÃO E DESNATURALIZAÇÃO

A tendência adulterina humana existe desde os primeiros tempos e nunca deixou de existir. Não só provoca ciúme como vai além: é condenada como uma aberração o que justifica atos de extrema crueldade. Se fosse aceita como natural, haveria menos  sofrimento e menos conseqüências trágicas.   

 Nós, humanos, aceitamos sem estranheza nem questionamento as leis físicas, como “o que é jogado para o alto cai”, “o fogo queima” e “a água molha”. São fatos da natureza e em relação a eles não surge nenhuma indagação. Fazem parte do funcionamento do mundo. Nós os aceitamos e não os achamos enigmáticos, a não ser que nos coloquemos em uma perspectiva filosófica.
Há, porém, outras regularidades que nos intrigam, como a da moeda que, se lançada incontáveis vezes, se aproximará cada vez mais de 50% de cara e 50% de coroa. Faz parte dos fatos que temos de aceitar, embora os estranhemos. Nós os aceitamos quando fazemos nossas apostas dentro de um cálculo de probabilidades. O que temos dificuldade de aceitar são certas regularidades humanas. Elas existem há milênios e as repudiamos. Uma delas -- e de grande importância pelas conseqüências -- é a tendência adulterina dos humanos. Ao lado da tendência monogâmica, a mais aceita e valorizada pela subjetividade atual, existe uma tendência poligâmica, repudiada e estigmatizada. A pergunta é: por que uma regularidade que existe há milênios ainda não foi incorporada à subjetividade como algo inerente à natureza humana? A infidelidade está em toda a parte: nos jornais, nas fofocas, na história, na política... No livro O Movimento Pendular, de Alberto Mussa, encontramos a tese de que “o conceito de adultério foi anterior ao de incesto, sendo o adultério, e não o incesto, essa instituição fundamental do Homo sapiens” --  palavras do próprio autor em entrevista para o site da Livraria Record. Mas o infiel é visto pejorativa e preconceituosamente, como se o impulso amoroso e sexual fora da relação a dois fosse maligno, indigno, inaceitável, moralmente hediondo. Isso não quer dizer que o ser humano seja indiferente à infidelidade: a decepção e o ciúme são suas conseqüências inevitáveis.
O ciúme tem uma base biológica: o macho de qualquer espécie animal quer que seus genes predominem e para isso precisa evitar que as fêmeas copulem com outros machos. O ciúme está a serviço da raiva e da agressividade, levando o ofendido a anular o rival. Carregamos essa herança atávica em nossos cromossomos, mas o processo civilizatório conseguiu atenuá-la com o passar dos séculos. Porém, como humanos, introduzimos outra complicação. Em nossa infância dependente -- o bebê humano é o mais desamparado e dependente entre todos os mamíferos --, apegamo-nos a nossa mãe e tememos perdê-la, razão pela qual qualquer pessoa que dela se aproxime será objeto de ciúme, raiva e desejo de destruição. Ao crescermos elaboramos esses sentimentos, mas eles persistem de forma atenuada e disfarçada. Assim como fomos “reizinhos” para nossa mãe, assim como fizemos uma fantasia de exclusividade, assim queremos, ao nos tornarmos adultos, que nosso “The One” só tenha olhos de amor erótico e apaixonado para nós; desejamos repetir na idade adulta a fantasia infantil arcaica de ser o Único para aquela pessoa. Aí estão algumas das bases da violência apaixonada com que se vive a infidelidade. Mas o homem já se deparou com muitas realidades intoleráveis que acabou aceitando. Por que não pode acatar que, como o ciúme, a infidelidade é um dado inevitável da natureza humana? A desnaturalização da infidelidade torna o ciúme ainda mais perigoso, pois as pessoas se sentem justificadas para tratar o infiel como um deformado mental a ser punido ou destruído. Se se retirasse a pecha de aberração da infidelidade, seria mais fácil lidar com o ciúme, reduzindo o sofrimento e evitando conseqüências trágicas.
            Nahman Armony


Primeira publicação na revista CARAS.

DETALHES

 AS SUTIS DEPRECIAÇÕES
                                       
Frequentemente encontra-se em casais, por mais harmoniosos que sejam um jogo de poder. Este poderia até ser chamado de tendência universal, tão espalhado se encontra, envolvendo mesmo os menos belicosos e competitivos e mais propensos ao entendimento. E, no entanto, sua frequência pode ter um efeito devastador, acabando com relações promissoras. É o caso mais ou menos óbvio de um casal em que um de seus membros é frequentemente interrompido pelo companheiro, tendo dificuldade de terminar o seu pensamento ou a sua história. A repetição desta situação provoca naquele que costuma ser interrompido um sentimento de falta de espaço, de não ser importante, de não ter um lugar digno, onde se sinta valorizado e participante em condições de igualdade com o outro. Existem comportamentos tão sutilmente depreciativos que geram no observador, pensamentos do tipo “que criancice”, mas que ao insistirem podem ter um efeito devastador para a relação. São comportamentos dos quais pode ser que nenhum dos parceiros se dê conta, mas cuja contumácia é mortal para a relação. Darei um exemplo que me foi relatado por um cliente consciente da dinâmica do casal, perceptivo em relação aos seus sentimentos e capaz de colocá-los em palavras. Sabe felizmente que o acontecimento foi eventual e que a luta pelo poder, pela superioridade sobre o outro (que frequentemente advém de um sentimento de inferioridade permanente ou ocasional) é uma característica que acompanha o homem desde priscas eras, sendo preciso aprender a lidar com ele. Com a minha ajuda seu aborrecimento praticamente desvaneceu-se. Mas vamos ao exemplo que servirá como alerta de como algo banal pode ter um grande peso numa relação.
        Meu paciente relatou que a esposa, tarde da noite, cansada, estava tentando estacionar o carro numa vaga que facilitasse sua saída no dia seguinte. Tentou repetidas vezes e ela apesar de ótima manobrista estava cansada e sonolenta, falhando seguidamente. No entanto continuava no seu propósito. O marido então ofereceu sua ajuda. A oferta foi feita várias vezes sem que ele obtivesse uma resposta verbal Finalmente julgou perceber na expressão corporal da esposa, um pedido de ajuda. Saiu do carro e passou a orientar as manobras. Seu sentimento era de que tinha uma percepção clara do que deveria ser feito. E subitamente a esposa que não estava seguindo suas instruções resolveu desistir da ajuda e colocou o carro numa posição incômoda, deixando a manobra difícil para o momento da saída. Meu paciente se ressentiu deste gesto, pois ele respeitara a capacidade e autonomia dela, só interferindo quando percebeu um exasperado e inaudível pedido de ajuda. O casal foi dormir agastado. É claro que precisamos acrescentar outros ingredientes que estavam atuando como, por exemplo, a impaciência do marido de logo chegar ao lar; o fato de que naquele dia havia passado por algumas situações em que suas ideias não foram acolhidas. Por outro lado, disse eu, era preciso levar em consideração o lado da esposa: sua ideia feminista de opressão masculina secular: as dificuldades de vida que a esposa vinha enfrentando e que exigiam dela uma força que parecia estar além de suas possibilidades, mas que ao ser convocada permitia-lhe lidar com os problemas que estava atravessando.
        Esta vinheta tem a intenção de mostrar aos casais como pequenos atos competitivos quando repetidos, podem ter grandes repercussões. Uma boa conversa, franca e tranquila sobre o acontecimento --- tomando o cuidado de evitar fazer do diálogo mais um episódio de luta pelo poder onde a razão e superioridade de um teria de prevalecer sobre o outro --- desfaz o ressentimento.      
                        Nahman Armony

     Primeira publicação na revista CARAS.

POEMA DA CONDIÇÃO HUMANA

  Grande pássaro metálico
  De altos vôos noturnos
  Grande mãe indiferente
  Cumprindo seu destino cósmico

                        Varando espaços
                        Cavalgando nuvens
                        Dominando infinitos
                        Iluminando astros.
             
  Como podes amar os filhos que carregas em teu bojo? 
  Se eles são tão fracos, tão mesquinhos
  Tão sem asas
  Se eles apenas pensam em voltar para a Terra?

  Eles estão em segurança dentro de seu corpo
  E isto lhes basta.
  Isto a liberta para as estrelas, 
  Para o infinito.
  Para aquilo que só pode ser adivinhado
  De dentro da Noite Onírica
  Fendida pelo Grande Pássaro Mitológico.

  Pobres filhos abandonados
  Pobres filhos feitos de barro e medo,
  De desejo e ambição.
  Pobres filhos que mal podem entrever
  O etéreo mundo habitado
  Pelos Grandes Pássaros Mitológicos.
                             Nahman Armony
                                      

VIOLÊNCIA

VIOLÊNCIA: UMA VISÃO TRANSDISCIPLINAR COM ÊNFASE NA PSICANÁLISE
        A violência é um fenômeno onipresente no tempo e no espaço; atravessa toda a história e todas as culturas. Algumas culturas estimulam a violência e outras a inibem. O capitalismo contemporâneo, mercadológico e consumista estimula a competição e o consumo desenfreados criando condições para o exercício da impiedade. Uma crueldade que se infiltra em todas as atividades humanas e cujos primórdios já aparecem nas primeiras relações humanas. O modo pelo qual a sociedade, através dos pais, criam seus bebês em crescimento insere-se numa totalidade que produz para uma subjetividade que estimula e valoriza a competição, o consumo, a impiedade, as relações de submissão, a manutenção do statu quo, etc. Veremos no decorrer do artigo como Winnicott propõe outra forma de criação/educação baseada na transmissão de princípios organizadores diferentes dos princípios organizadores do capitalismo consumista.
        As culturas agem sobre as subjetividades desde o início da vida. Eric Erikson em seu livro “Infância e Sociedade” nos mostra que a criança é criada e educada para se tornar um adulto com os valores, preconceitos e costumes do grupo. Margaret Mead confirma essa visão em seu livro “Sexo e temperamento” ao estudar as tribos Mudungumor e Arapesh. A cultura é um aparelhamento de uma força extraordinária, podendo mesmo superar instintos básicos do ser humano, inclusive o de auto- preservação. Dois exemplos: monges ateiam fogo em si mesmos; guerrilheiros explodem seus corpos em atentados terroristas.
A ação cultural se inicia muito cedo, ainda quando o ser humano é um bebê. A mãe é a grande transmissora dos preceitos culturais da sociedade em que vive. As vivências iniciais do ser humano exercem extrema influência sobre o restante da vida e estão fora do alcance da consciência. Daí a força e a importância da relação mãe-bebê. Winnicott e Piera Aulagnier divergem quanto ao modo de criar/educar o ser humano. Piera Aulagnier preconiza uma criação-educação predominantemente de fora para dentro. Winnicott inverte a direção dando maior crédito à assimilação da cultura, assimilação essa que é o par inseparável da criatividade. Bruno Cancio fez uma resenha do livro “A violência da interpretação” de P.Aulagnier bastante esclarecedora. Citando-o: “Dos conceptos de importancia establecidos en la obra son los de violencia primaria y secundaria. Por violencia primaria se entiende ‘...lo que en un campo psíquico se impone desde el exterior a expensas de una primera violación de un espacio y de una actividad que obedece a leyes heterogéneas al yo...’(Piera Aulagnier). Se trata de una acción necesaria y que contribuirá a la futura constitución del yo. A través de ésta se le impone a la psique ajena un pensamiento, acción o elección producidos por el deseo de quien lo impone, pero que da respuesta a una necesidad a quien le es impuesto. De esta forma, se consigue entrelazar deseo de uno y necesidad del otro, dando lugar a la demanda. El deseo de quien ejerce la violencia pasará, a partir de allí, a ser demandado por quien la padece.
Por otro lado, violencia secundaria hace referencia a ‘un exceso por lo general perjudicial y nunca necesario para el funcionamiento del Yo’(Piera Aulagnier) y que se apoya en su precedente, la violencia primaria. En este caso se trata de una violencia ejercida contra el yo, ya sea por un conflicto con otro ‘yo’ o con un discurso social que intenta oponerse a toda suerte de cambios que pudieran producirse en los modelos por él previamente instituídos”.
Winnicott não concorda com uma criação/educação impositiva como Aulagnier propõe. Um exemplo esclarecedor nós o encontramos no artigo “Moral e Educação”. Tentando sintetizar um artigo longo e complexo, consigo dizer o seguinte: Winnicott está respondendo a uma palestra anterior à sua onde foi citada a seguinte fala de um reitor para uma criança: “Você acreditará no Espírito Santo às 5 horas desta tarde ou a espancarei até que o faça”. Os exemplos extremos servem para deixar claro uma orientação paradigmática que neste caso é um paradigma autoritário não aceito por Winnicott. Para ele o autoritarismo é uma invasão/intrusão no self do outro, tornando-o submisso e dependente. Neste artigo ele, confronta o autoritarismo adoecedor que tenta impor conceitos exteriores à experiência do outro, com uma experiência interior, uma “crença em” que resulta de uma convivência suficientemente boa com os pais.  Quando o horizonte se abre para além dos pais, a criança que está crescendo precisa algo maior em que acreditar. É hora dos pais, da escola, da sociedade apresentarem as diversas possibilidades de crenças existentes, respeitando sua eventual busca por outra crença que não aquelas que lhe foram mostradas. A imposição é uma invasão do psiquismo do outro, uma tentativa de dominá-lo, colonizá-lo, tornando-o revoltado, conformado e violento em vários graus. Mesmo os conformados --- que engolem os traumas advindos das invasões e os acumulam não sabendo de onde veem, pois a relação dominador-dominado é frequentemente inconsciente e aceita como algo natural --- podem ter explosões espontâneas de ódio indiscriminado muitas vezes despertados por fatos insignificantes.
Ao invés de tentar impingir uma crença dever-se-ia, segundo Winnicott, aceitar a criatividade espontânea do ser humano. Criatividade tem dois sentidos: um primeiro que todos nós conhecemos, e um winnicottiano que é um paradoxo: criamos o que já existe. Não é preciso forçar a realidade para dentro da cabeça das pessoas, mas sim cuidar para que a criatividade de cada um encontre a sua realidade que é um arranjo pessoal do subjetivamente concebido e objetivamente percebido.  
Desenvolverei um pouco mais a ideia de criatividade winnicottiana. O ser humano cria o que já existe. Seu exemplo mor é o bebê que ainda não teve a primeira mamada e que ao sentir fome procura algo que termine com o seu anseio. Este algo é uma vagueza  impressionista de seio que ele virá a conhecer tanto melhor quanto mais com ele se relacionar. A vivência do bebê é de que foi ele quem criou o seio desde que o seio apareça na hora da fome. Da mesma maneira a função da sociedade é apresentar diversas alternativas para escolha aceitando a contribuição de novas opções e não impor, seja por que meio for, suas crenças. Mesmo porque o ser humano tem um impulso inerente de pertencimento e precisará escolher um gancho na cultura para exercer sua criatividade. A imposição, o conformismo e a revolta são combustíveis para a violência. Precisamos deixar para trás tanto o paradigma autoritário quanto o paradigma permissivo e aperfeiçoar um paradigma ecológico/poroso/humanitário/holístico.
Ao que parece já nos adentramos firmemente na psicanálise de inspiração predominantemente winnicottiana. É claro que os fatores que levam à violência são inúmeros e é preciso a colaboração de muitas disciplinas para um maior entendimento deste fenômeno que parece estar se intensificando tanto no nível macro (guerra, terrorismo, tráfico, repressão violenta, etc.), no micro (assaltos, furtos, roubos, mortes, balas perdidas, violência doméstica, violências discriminatórias, etc.) e no nano (dinâmicas bi e plurisubjetivas). Não podemos esquecer os fatores psicossociais como, por exemplo, as consequências psíquicas de um sentimento de exclusão das benesses dos mais afortunados que pode levar a ações violentas, o fanatismo religioso fundametalista, a glamorização dos traficantes e especialmente dos chefes do tráfico que se tornam figuras fortes de identificação para uma parcela das crianças e adolescentes das comunidades que eram chamadas de favelas . O que também vemos são jovens das classes médias altas exercendo violência através de roubos, ataques a populações marginalizadas (incendiar índios, atacar mendigos, atacar homossexuais, etc.). Podemos compreender o comportamento violento dos que se sentem inferiorizados, excluídos, injustiçados e que necessitam de figuras fortes de identificação e de uma cultura e ética próprias. Mas, e os jovens da classe média alta que têm acesso ao conforto, diversão e que estão up-to-date com as tecnologias emergentes? Aqui é onde melhor a psicanálise pode dar a sua colaboração.
O ritmo atual de vida faz com que tanto o pai quanto a mãe fiquem, por muito tempo, ausentes do lar. Com isto a assistência afetiva aos filhos sofre danos. Isto é especialmente grave para os infantes, pois eles necessitam de cuidados maiores. Segundo Winnicott para que a criatura humana crie uma base psicomentessomática sólida (integração, personalização) necessita de um tempo de fusão com a mãe à qual ele deu o nome de dependência absoluta, seguida de um outro período que denominou de dependência relativa. A primeira se caracteriza pelo imediato atendimento pela mãe ou figura substituta das necessidades físicas e psicológicas do bebê. Para isso a mãe deverá estar em um estado de “preocupação materna primária” na qual ela se encontra hiperatenta e hipersensível em relação ao bebê de tal maneira que possa atendê-lo imediatamente ou até mesmo prever o desconforto do filho. Na dependência relativa não é mais necessário que a mãe esteja em estado de preocupação materna primária, pois é uma fase em que o bebê, ao se diferenciar da mãe, sofrerá frustrações (desilusões). De qualquer maneira, embora em nível diferente, a mãe deverá continuar sensível e afinada com seu rebento, especialmente para certos comportamentos. Um dos mais relevantes é a conduta de aproximação e afastamento da mãe. A mãe sensível e sem grandes problemas em relação à oscilação do bebê entre dependência e independência, aceitará de bom grado tanto o seu afastamento quanto o seu retorno à segurança do colo materno. Para que essa dinâmica funcione bem é necessário não só que a mãe esteja presente, mas que não seja solicitada pelo trabalho profissional do qual se afastou, nem esteja preocupada  com a contabilidade da família. Este é um item problemático. Não só a vida atual envolve a mãe, deixando-a preocupada e, portanto, afetivamente menos disponível para o bebê do ponto de vista da sensibilidade porosa, mas também o hedonismo característico de nossa cultura faz com que a mãe se separe do bebê quando ele ainda não está preparado para isto. Sem falar das ausências que acontecem por conta do trabalho executivo ou de outro tipo.
Na área da criminalidade Winnicott também dá a sua contribuição. Mais que uma contribuição é uma revolução, pois ele ao procurar, nas crianças, as origens dos atos antissociais percebe que estes estão além da agressão: são pedidos de socorro e, no caso de roubos, uma apropriação simbólica de uma mãe que o está abandonando. Para entender melhor esta dinâmica vou recorrer a dois conceitos winnicottianos relacionados entre si: privação e deprivação (anglicismo derivado da palavra deprivation). O atendimento insuficiente às necessidades do bebê na fase de dependência absoluta ---- quando o ambiente ainda não se distingue do si-mesmo, só existindo um bebê que é o próprio mundo ---- facilita o ingresso no delírio e na psicose. Ele foi privado de um ambiente suficientemente bom, mas não sabe disso por não possuir ainda um eu distinto do não-eu. Porém, se ele teve a experiência de ser bem cuidado na fase de fusão, sentir-se-á lesado se na fase de dependência relativa os pais não forem suficientemente presentes e sensíveis. Ele se perceberá deprivado, pois diferentemente do privado, perdeu o que já havia tido. Sentindo-se negligenciado pelos pais passa a aborrecê-los através de birras, desafios, e também de pequenos atos delituosos como roubar, maltratar pequenos animais, exercer ações destrutivas, etc. Estes atos são gestos de esperança, tentativas de recuperar os pais, maneiras de chamar a atenção, pedidos de socorro. Exp.: (p.407 – Da pediatria à psicanálise – Tendência antissocial)   Winnicott foi procurado por uma mãe cujo filho mais velho tinha a compulsão de roubar que “estava se transformando em algo bastante sério. Ele estava roubando muito, tanto em lojas quanto em casa”. Winnicott sugeriu: “Por que você não lhe diz que sabe que quando ele rouba, não são realmente aquelas coisas que ele quer, e sim alguma outra coisa à qual ele acha que tem direito? Que é como se ele estivesse fazendo uma reclamação a seu pai e sua mãe, por sentir a falta do seu amor?” Winnicott continua: “Algum tempo depois recebi uma carta contando-me que ela havia feito o que sugeri. Dizia ela: ‘Eu lhe disse que o que ele realmente queria, quando roubava dinheiro e comida e outras coisas, era sua mãe. E devo dizer que na verdade eu não esperava que ele compreendesse, mas ele pareceu compreender. Eu lhe perguntei se ele achava que nós não o amávamos por ele ser às vezes tão difícil, e ele disse imediatamente que em sua opinião nós não o amávamos muito..... Então eu lhe disse que ele nunca, nunca deveria duvidar disso de novo, e se em algum momento ele tivesse alguma dúvida era só me lembrar que eu lhe diria de novo..... De modo que tenho feito muito mais demonstrações, a fim de evitar que ele venha a duvidar outra vez. E até este momento não houve um único roubo’. Agora oito meses depois, é possível relatar que não houve mais roubos e que o relacionamento entre o menino e a sua família melhorou muito”. (Ibid, p.407/8). Se a tendência antissocial não for tratada na fase de crescimento, tenderá, com o passar dos anos, a se tornar uma psicopatia.      
Uma criança com o eu inflado e sem limites por ação/omissão dos pais não sairá da situação de “Sua Majestade, o Bebê”. O mundo lhe deverá obediência e reverência. Nada poderá se interpor no seu caminho. Todos seus desejos terão de ser atendidos. Uma cabeça dessas acaba tomando o caminho da agressividade e violência. Isso se torna ainda mais problemático quando a mãe necessitada de simbiose não consegue colocar limites para o filho adolescente ou adulto.
Há outras condições psicológicas que facilitam o aparecimento da violência. A intolerância à frustração, as fantasias persecutórias inconscientes, a excessiva competitividade, a autoestima baixa, dificuldades na transição da dependência absoluta à dependência relativa, etc.
HANNA ARENDT E A BANALIDADE DO MAL
Quando foi designada para a cobertura do julgamento de Adolf Eichman --- um criminoso de guerra nazista, encarregado da organização e envio de prisioneiros a campos de extermínio --- esperava encontrar um monstro e se surpreendeu ao encontrar um homem comum como muitos outros. “O problema de Eichman era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais” (Arendt, 1999, p.299 do livro “Eichmann em Jerusalém). Adolf Eichmann era um eficiente e dedicado burocrata, cumpridor fiel dos seus deveres e leal aos seus superiores hierárquicos, obedecendo diligentemente às suas ordens. Era um bom pai de família, um filho exemplar e um irmão dedicado. Quanto ao assassinato eficiente de milhões de pessoas ele apenas, burocraticamente, cumpria ordens superiores como todo bom cidadão, em sua opinião, deveria fazer. Mas não teria Eichmann consciência da monstruosidade de sua ação? Hanna Arendt estava convencida de que sim, pois Eichmann declarou várias vezes que estava com a consciência tranquila, já que cumprira seu dever e sabia que sua ação era moralmente correta. Palavras de Arendt: “Sua consciência [de Eichman] ficou efetivamente tranquila quando ele viu o zelo e o empenho com que a ‘boa sociedade’ de todas as partes reagia ao que ele fazia.  Ele não precisava ‘cerrar os ouvidos para a voz da consciência’, como diz o preceito, não porque ele não tivesse nenhuma consciência, mas porque sua consciência falava com a ‘voz respeitável’, com a voz da sociedade respeitável à sua volta” (Ibid, p.143). O conceito banalidade do mal expressa o fato do mal ser exercido não só por psicopatas e degenerados, mas também por homens comuns como qualquer um de nós. Todas as formas sociais de totalitarismo impõem uma obediência cega e servil a seus cidadãos. Difícil escapar de tal mandato pois a punição que se segue é terrível.
Hanna Arendt fala de alguns fatores que se encontram na gênese da banalidade do mal. Entre eles estão: a superficialidade das pessoas, o utilitarismo nas relações humanas ---- que torna as pessoas supérfluas e descartáveis (p. 115) ----, o servilismo como fator supostamente moral da obediência.
Pois é o servilismo e a obediência que quero examinar, sob o ponto de vista da psicologia social e da psicologia psicanalítica.
Na década de 1960 o psicólogo social Stanley Milgram, pesquisador da Universidade de Yale, realizou experimentos sobre obediência a uma figura de autoridade sancionada pelo social logo repoicados por outros pesquisadores com o mesmo resultado. O esquema geral destas experimentações é o seguinte: um grupo de pessoas é dividido em dois. A um deles cabe fazer uma tarefa (Estudantes). Ao outro cabe punir as pessoas do primeiro grupo se a tarefa não é bem realizada (Professores). Ao condutor da experiência (Experimentador) cabe estabelecer a intensidade do castigo que é passar uma corrente elétrica pelo corpo dos que erraram. Na verdade o castigo é uma simulação, mas o grupo punitivo não sabe disto. Para este existe realmente uma corrente elétrica passando pelo corpo das pessoas do outro grupo. Pois bem, se o Experimentador ordenar que uma corrente máxima seja acionada, ela o será por aproximadamente 60% dos Professores. A obediência é automática não sendo levado em consideração o sofrimento que possa causar ou mesmo o perigo que representa.
Existe, pois, em nossa sociedade ocidental a forte tendência em obedecer a autoridade socialmente constituída mesmo que resulte em um ato desumano. Sugiro que isto se deva a uma educação autoritária onde a criança é ensinada a obedecer sem refletir. Na psicanálise esta situação se replica, como vimos anteriormente, no conceito de violência primária de Piera Aulagnier assim como vimos que a concepção de desenvolvimento psíquico e mental de Winnicott privilegia a criatividade: os objetos da cultura são apresentados e a criatividade os inclui no espaço transicional onde o subjetivo improvisa um dueto com o objetivo. Não sei se é correto dizer que essa concepção é nova e revolucionária e que vai ao âmago da questão colonização versus independência. Acredito que por vários séculos a criação/educação do ser humano em crescimento foi dominada pela imposição, dificultando o pensamento livre, situação que ainda perdura. O ser humano ao ser criado/educado tendo como insinuância principal a criatividade, podendo então construir o mundo mediante sua própria ação está mais apto a resistir às convenções e mandatos da cultura e de suas figuras representativas, julgando por si próprio o que mais se coaduna com seus pensamentos e sentimentos. Já o ser humano criado através de atos predominantemente impositivos tenderá a aceitar a orientação da cultura e de seus representantes de uma forma submissa, obedecendo automaticamente às ordens, por mais desumanas que sejam.
Tenho a esperança de que usando a criatividade como guia, teremos uma integração ética do homem com a natureza e com seu semelhante/diferente que, narcisicamente (conforme meu artigo “Narcisismo secundário inclusivo”), passarão a fazer parte dele, diminuindo a violência no mundo.
                                                               Outubro/2014

                                                               Nahman Armony      

FLUTUAÇÕES NO AMOR


                             
        O Homem deseja ao mesmo tempo estabilidade e aventura. Nas sagas dos heróis há um período de aventuras que exige força, habilidade para enfrentar os perigos do inesperado e depois de tudo, o herói é recompensado com uma vida tranqüila ao lado de seus entes queridos. Para muitos de nós estas histórias satisfazem o nosso desejo de aventura. Lemos estes mitos no conforto de nossos lares, na nossa poltrona preferida ou em nossa cama aconchegante. Enquanto o herói enfrenta perigos terríveis nós também os enfrentamos, porém na segurança de nossas casas. Muitas vezes nosso desejo de aventura se aplaca vicariamente nessas leituras; mas não sempre. Premidos pela nossa curiosidade e pela nossa insatisfação com a monotonia e rotina da vida procuramos “sarna para nos coçar” como diriam nossos sábios e aposentados avós. Mas, sem dúvida o desejo de estabilidade permanece. Uma estabilidade que se mostra cada vez mais problemática. Hoje tudo se move. Karl Marx já dizia que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. De um universo estático da Idade Média quando o homem tinha o conforto da previsibilidade inclusive no após a morte, passo a passo chegamos a um mundo em perene movimento em todos os seus recantos. Lemos no último livro de Mario Novello “Do Big Bang ao Universo Eterno” que um dos últimos redutos que ainda pensávamos como estático ----- o Universo ------  é atualmente visto como dinâmico e histórico. Tudo se agita. E, no entanto, continuamos precisando tanto de estabilidade quanto de instabilidade. O leitor de aventuras está estável no seu canto lendo o seu livro e ao mesmo tempo instável identificando-se com o herói da estória. O soldado na frente de batalha está dentro de um cenário convulso com bombas ameaçando explodir seu acampamento e neste panorama de absoluta instabilidade ele busca estabilidade na fotografia da amada que de tempos em tempos contempla e beija para se assegurar de que existe um corpo e uma alma que para sempre o acolherão.
        Para duas pessoas apaixonadas a estabilidade existe na forma de ininterrupção. Eles desejam estar e estão sempre que podem juntos. E isto para eles é o amor. Só têm olhos um para o outro e nada que não seja a sua própria paixão os distrai. Porém mais cedo ou mais tarde a paixão dá lugar a um sentimento mais tranqüilo que permite agora que se olhe para os lados, para fora da relação apaixonada. A pessoa que estava inteiramente perdida dentro da outra retoma a sua individualidade e ao fazê-lo vive processos e sentimentos que permaneceram latentes durante o período de paixão. Seu amor pelo parceiro mesmo que sólido e incontestável não se traduz mais em um comportamento inteiramente dedicado a ele. Agora existem aproximações e afastamentos, flutuações de intensidade e de qualidade, sentimentos paradoxais, ambivalências, fantasias várias, curiosidades que fazem olhar para além da relação. Isto pode acontecer em tempos diferentes para cada um. E aquele que continua perdidamente apaixonado não entende que o parceiro deixe de ter olhos só para o casal. A idéia é de que não é mais amado o que se torna fonte de mal-entendidos. É importante que a pessoa possa se colocar no lugar da outra para entender o que está acontecendo com ela. Pedir isto a um apaixonado é quase uma perda de tempo, pois dificilmente de dentro de sua paixão ele poderá compreender a subjetividade do outro. E, no entanto em nome de um amor promissor será preciso fazer um esforço. Esforço que mais facilmente virá daquele que já passou o período de paixão absoluta e que deverá compreender e acolher a incompreensão do parceiro, sem se revoltar com o que poderá ser sentido como tentativa de controle e dominação. Talvez valha mais a pena este esforço do que simplesmente se afastar de uma relação amorosa promissora.
                                                    Nahman Armony                                       

                                                                                      

POEMA DA SOBREVIVÊNCIA

          O espectro dos dias intermináveis a desfilar diante de meus                                                                            olhos fatigados
       Me anima
       A prosseguir minha marcha pesada
       Rumo ao país das somas cansadas de somarem-se a si mesmas
       Sem fim
       E sem finalidade.  

WINNICOTT - O HOMEM E SUA OBRA

A pessoa que nos procura para tratamento traz consigo uma certa forma de  pensar, agir, um certo modo de conhecer e de se relacionar  com o mundo. Essa maneira de ser é diferente do homem de gerações anteriores. Portanto, a maneira de realizar o tratamento atual certamente diferirá da anterior.
        Pode-se pensar que tendo mudado a subjetividade do homem em geral, certamente a dos terapeutas terá também mudado e que, portanto há um ajuste na terapia psicanalítica. Acontece que os especialistas, de uma maneira geral, se apegam às teorias, tendo receio de libertar-se delas e acabarem responsáveis por um fracasso indesejado e ameaçador. Enquanto a subjetividade da vida corre livre, a subjetividade dos especialistas, dos técnicos fica amarrada a teorias já ultrapassadas pelos acontecimentos.
        A libertação ou a modificação de teorias que estão sendo ultrapassadas pelos acontecimentos acaba ficando a cargo de alguns homens que poderíamos chamar de excepcionais, sendo que neste conceito de excepcional estão embutidas muitas variáveis: a história de vida, a liberdade interior, a conjunto da personalidade, as condições ambientais, o acaso, a força afirmativa, o grau de submissão à sociedade, a habilidade política e social, a autoestima, a paixão pela profissão, a filosofia de vida, os valores e ideais, e certamente outros aspectos que não percebo.
        Creio que todos concordam que um desses homens excepcionais foi Freud. Homem extremamente inteligente, honesto na sua busca da verdade, íntegro, idealista, político, ambicioso, versátil, culto, implacável, conseguiu implantar a psicanálise como uma nova disciplina, tornando-a universal e polivalente.
        Uma vez aberto o campo psicanalítico tornou-se mais fácil seu desbravamento. Mas, mesmo assim, foi necessário que houvesse homens de visão para fazer andar a psicanálise. Poderíamos pensar em vários, mas nos interessará um em especial que por uma razão ou outra, tornou-se hoje a referência principal de quem busca uma nova epistemologia para compreender o novo homem. Estou-me referindo a Winnicott.
        Sua história:  
                Nasceu em 1896 em Plymouth, Devon, Inglaterra, um baluarte da tradição metodista não conformista. Morreu em 1971. É, portanto um analista situado no século XX, um século em que as alterações epistemológicas ganharam uma força e consistência cada vez maiores. Era o único filho homem, com duas irmãs mais velhas, fazendo parte de uma família rica e influente. “Cresceu em um universo marcado pela presença das mulheres. A mãe, a avó, uma babá, uma governanta e as duas irmãs tiveram um papel maior na sua educação, enquanto o lugar do pai permanecia vago”. COMENTÁRIO: Daí viria a sua sensibilidade para as relações mãe-filho, e portanto, para a subjetividade feminina. Podemos, para melhor marcar este aspecto de sua subjetividade, confrontar sua capacidade de se colocar no papel de mãe, realizando o “holding”, o “handling” e a “apresentação de objeto” com uma fala de Freud citada por Doolittle: “É preciso que eu lhe diga (você foi franca comigo e eu serei com você), eu não gosto de ser a mãe na transferência. Isto me surpreende e choca um pouco”. Um exemplo de apresentação de objeto para uma analisanda minha. Após um ano e meio de terapia ela disse uma frase altamente significativa. “Fulano nunca erra; entre uma afirmativa de Fulano e uma afirmativa minha ele sempre estará certo”. Depois de dita a frase riu como que percebendo o significado dela. Mais adiante eu lhe falei de dois mundos, um mundo perfeito onde existe um rabi que está sempre certo e um mundo imperfeito onde qualquer um pode errar. Pode-se dizer que nesse momento eu lhe “apresentei” o mundo real, embora ela mesma já o tivesse feito pelo menos em parte. Mas mesmo a sua possibilidade de deixar escapar sua fantasia, sua maneira de organizar o seu psiquismo e o mundo tiveram a ver com minha atuação passada que procurava mostrar-lhe a realidade e a ilusão em relação a si mesma e ao mundo.
O pai era um bem-sucedido e admirado comerciante e prefeito da cidade e recebeu o título de cavaleiro em reconhecimento a seu trabalho cívico.  
UMA LEMBRANÇA DE WINNICOTT: “Meu pai tinha uma fé religiosa simples. Um dia, quando lhe fiz uma pergunta que poderia nos levar a uma discussão sem fim, ele se limitou a dizer: ‘Leia a Bíblia que você encontrará a resposta certa’. Foi assim que ele deixou  ---  graças a Deus  ----  que eu me virasse sozinho”. COMENTÁRIO: podemos associar a importância que esse episódio teve para Winnicott com a importância por ele dada ao encontro da verdade não por imposição externa, mas por um encontro com ela (a verdade pessoal) a partir dos recursos da própria pessoa. Isto aparece em vários escritos seus. Lembro-me particularmente do artigo “Moral e Educação” do livro “O ambiente e os processos de maturação”. Também associo com sua conduta na terapia (uma conduta, que, não podemos esquecer, apareceu mais tarde) de deixar o próprio analisando chegar à interpretação de si mesmo. Penso também na idéia de que a terapia é a superposição do brincar do analisando com o brincar do terapeuta, formulação essa que aponta para uma certa independência das produções do analista em relação às produções do analisando e vice-versa, o que não significa que não haja interações, mas não situações hierárquicas de autoridade e muito menos imposições.
OUTRO ACONTECIMENTO SIGNIFICATIVO: num acesso de raiva estragou a cabeça de uma boneca da irmã; o pai a reconstituiu e esse foi um acontecimento significativo que fez com que ele vivesse a experiência de reparação.  
Continuando a história: aos 14 anos (1910) passou a estudar em escola interna em Cambridge. Ao quebrar, no ano seguinte, a clavícula, decidiu ser médico. Apaixonou-se pelas ideias de Darwin e resolveu estudar biologia. Em seguida fez medicina. Na faculdade de medicina converteu-se ao anglicanismo. Através de  um livro de Oskar Pfister entrou em contato com textos psicanalíticos. 
Em 1923 tornou-se médico no Padington Green Children’s Hospital onde clinicou por 40 anos. Sua clínica evoluiu da pediatria tradicional para a psiquiatria infantil. Neste mesmo ano iniciou uma análise com James Strachey que durou 10 anos. Segundo a correspondência de seu analista com a esposa, Winnicott tinha problemas sexuais. Entre 1933  e 1938 fez sua segunda análise com Joan Riviere.
Casou-se com Alice uma pessoa com problemas psiquiátricos e que teve várias internações. Divorciou-se em 1949. Em 1951 casou-se com Clare Britton, uma assistente social com quem havia trabalhado na 2a. Guerra  Mundial tratando da instalação de crianças evacuadas das cidades britânicas bombardeadas. Lá supervisionou o tratamento de delinqüentes e desenvolveu suas idéias sobre “a tendência anti-social”. Foi presidente da Sociedade Britânica de Psicanálise por dois períodos. Vários títulos e presidências. Palestras na BBC freqüentemente para pais.
Era um homem de grande coragem pessoal tendo se recusado a receber supervisão de M.Klein no tratamento de Erich, um de seus filhos. Ela era então um membro todo-poderoso da Sociedade Britânica de Psicanálise e ele estava em supervisão com ela (supervisão entre 1935 e 1941). Ele fez parte do grupo dos independentes, não ficando nem no grupo de M.Klein, nem no grupo de Anna Freud. Sua coragem e independência apareciam nas suas intervenções deste conflito e nas cartas que escrevia. Há uma carta dirigida à M.Klein em que ele fala da ditadura terminológica e conceitual por ela imposta e o quanto isso era perigoso para o progresso da psicanálise(carta de 17/11/1952 – p.30). Em outra carta que se tornou famosa, datada de 3/6/954, denuncia a hipocrisia das duas líderes da escola inglesa: “considero que é de importância vital para a Sociedade, que ambas destruam seus grupos em seu aspecto oficial. Não tenho razões para pensar que viverei mais tempo que as sras., mas ter que lidar com agrupamentos rígidos, que com a sua morte se tornariam automaticamente instituições de Estado, é uma perspectiva que me apavora”.  Ele próprio foi um autor original, mas nunca desejou ser líder de uma escola ou de um movimento. Preconizava a liberdade de pensamento para todos os psicanalistas. Ele próprio tomou liberdades técnicas, prolongando sessões (até 3 horas de sessão), usando o corpo como forma de comunicação e terapia, e realizando sessões psicanalíticas avulsas ou com longos intervalos, escrevendo cartas terapêuticas para clientes e mães de clientes. Segundo Elizabeth Roudinesco ele “não hesitava, na linhagem da herança ferencziana, em manter relações de amizade calorosa com seus pacientes, reencontrando sempre a criança neles e em si mesmo”.    
Tornou-se popular fazendo conferências radiofônicas na BBC entre 1939 e 1962.
Verberou Françoise Dolto por achá-la demasiadamente carismática e favorecedora de uma idolatria por parte dos alunos. “Independente sem ser solitário, não gostava de seitas, de discípulos, de imitadores. Foi por isso que, mostrando-se ao mesmo tempo transgressor em sua prática e rigoroso em sua doutrina, não hesitou em apoiar os rebeldes e os dissidentes  ---  principalmente Ronald Laing, um dos artífices da anti-psiquiatria”. 
Sofria de problemas cardíacos desde 1948. Morreu de ataque cardíaco em 1971. Sobre a morte dizia: “quero estar vivo no momento de minha morte”. Pontalis escreveu a seu respeito: “Talvez não haja nenhum sucessor, ninguém para se dizer seu seguidor. E é melhor assim. Com mestres, a psicanálise pode sobreviver durante algum tempo. Sem juízes nem mestres, ela tem a possibilidade de viver indefinidamente”. COMENTÁRIO: Não é o que vemos hoje em dias. Há psicanalistas tentando aprisioná-lo em uma metapsicologia winnicottiana, matando a essência de suas contribuições. Uma questão a ser discutida. Focos de poder institucionalizados tentam fazer isto.

Winnicott preocupou-se em manter-se sensível ao sofrimento e sentimentos dos seres humanos. Isso aparece mais claramente quando declina do convite para cuidar de leitos do Hospital Infantil. Carta de 5/9/967: “...o sofrimento de bebês e crianças pequenas numa ala de hospital, mesmo que muito bom, é algo terrível. Entrar na enfermaria me perturba muito. Se eu me tornar médico de pacientes internados terei de desenvolver a capacidade de não me deixar perturbar pelo sofrimento das crianças, do contrário não poderei ser um médico eficiente. Portanto, vou me concentrar em meu trabalho de ambulatório e em não me tornar insensível com a finalidade de ser eficiente”.   


Winnicott é contemporâneo quando diz que o ambiente deve prover condições para o aparecimento do verdadeiro self. A moralidade virá de um movimento espontâneo do ser humano em direção ao social, não há um modelo de comportamento a ser adotado, pois cada ser humano é singular, etc. Ele está na passagem epistemológica do modelo para a singularidade, do indivíduo como é entendido por Foucault, para o self como o próprio Winnicott conceitualiza.

Winnicott colocava-se como necessitado de um movimento de aceitação, de reconhecimento do ambiente. Neste sentido ele modifica a concepção moderna de auto-suficiência. É uma versão adulta da mãe que aceita o objeto subjetivo da criança tornando-o transicional pela sua aceitação. Winnicott reconhecia a importância de ser reconhecido, aceito pelo ambiente e teoriza sobre a falta de uma reação de M.Klein a um  trabalho que apresentara: Parte da carta de 17 de novembro de 1952 para M.Klein: “ o que eu queria na sexta-feira era sem dúvida que houvesse algum movimento de sua parte para com o gesto que fiz naquele trabalho. Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier ao seu encontro. Acho que eu estava querendo algo que não tenho nenhum direito de esperar de seu grupo e que tem a natureza de um ato terapêutico, algo que não consegui em nenhuma de minhas duas longas análise, embora tenha conseguido muitas outras coisas” (p.XVIII e p.30). Em cima desse fragmento de carta muito se pode especular a respeito de Winnicott. Primeiro: sua teoria e sua vida estão intimamente entrelaçadas: ele está falando do gesto criativo, espontâneo que deverá ser aceito pelo que sobrou da personificação materna para passar a ter existência. Em outras palavras: o gesto criativo, isto é, o objeto subjetivo só se tornará um objeto pleno, um objeto transicional se a ele corresponder um objeto objetivo, que, no caso, é um objeto consensual. Enquanto apenas eu penso algo este pensamento é puramente subjetivo. É, como diz Winnicott, um objeto subjetivamente concebido. Para que, além de subjetivamente concebido ele seja também objetivamente percebido é preciso que ele exista na realidade externa, no caso, numa realidade consensual. M.Klein, com a força de seu prestígio tinha o poder de tornar consensual, e portanto objetivo, um pensamento; tinha o poder de introduzir pensamentos originais na cultura. É disso que Winnicott reclama, é sobre isto que ele teoriza. Segundo: existem e devem existir atos terapêuticos na vida. Ato terapêutico aqui é mais do que um ato limitado a um contexto de consultório; na verdade, todo ato deveria ser terapêutico, embora muitos sejam anti-terapêuticos. Winnicott rompe pois as barreiras do consultório, os limites de atuação. Terceiro: introduz a idéia de que na análise as produções subjetivas do analisando, os objetos subjetivamente concebidos deverão ser acolhidos pelo terapeuta, assim como a mãe acolhe os gestos criativos do seu filho, colocando no lugar que o bebê está criando o objeto objetivo de tal forma que o objeto subjetivamente concebido pelo bebê seja também objetivamente percebido. Quando um objeto é ao mesmo tempo subjetivamente concebido e objetivamente percebido teremos então um objeto transicional, nem objetivo, nem subjetivo, mas transicional. Tive um exemplo da importância clínica, isto é, da importância para a conduta do analista numa reunião científica da Associação Brasileira de Psicossomática. Um analista apresentou um caso clínico em que uma recém-casada não aceitou que a cama do casal fosse aquela em que o marido dormia com a ex-mulher. Segundo este analista havia aí um colamento (confusão) da cama – algo objetivo – com ex-mulher – um sentimento subjetivo, pois a mulher não viria junto com a cama. O analista chamou ao objetivo de símbolo, ao puramente subjetivo de signo, e à junção signo-símbolo de equação simbólica. Seu trabalho analítico consistiu em separar signo e símbolo que estavam acoplados constituindo a equação simbólica, fazendo então que ela se tornasse razoável e aceitasse a entrada da cama no seu lar. Eu contrapus o seguinte: que essa área intermediária em que convivem subjetivo e objetivo é a área em que predominantemente vivemos, uma área paradoxal, mas uma área humana e não uma área despida de afeto, robótica que aparece quando tentamos expurgar o subjetivo de nossos atos. Em outros termos o marido deveria ter a sensibilidade suficiente (e o terapeuta também) de aceitar o mal-estar da esposa em relação a uma cama na qual ele tinha dormido com a ex-esposa. Essa tentativa de alcançar o objetivo absoluto, o simbólico absoluto é ainda uma herança cartesiana que separava corpo (sentimentos) de mente (raciocínio objetivo). Faz portanto diferença ter uma teoria que valoriza o espaço transicional, que leva em conta a área em que o subjetivamente concebido convive sem questões com o objetivamente percebido. É uma área onde não cabem questões como dizer “mas é só uma cama e minha ex-esposa não está mais nela”. Se interpretamos cama/ex-esposa como deslocamento ou confusão (exp.: “você está confundindo a ex com a cama”) estaremos na lógica da exclusão, na lógica cartesiana pois estarei dizendo que ou é ex-esposa ou é cama. Se estou na lógica paradoxal, no objeto  transicional, a lógica é a paradoxal, contemporânea, pois ex-esposa e cama convivem sem choques, e sem necessidade de ultrapassamento.
         A  equação simbólica está no paradigma dicotômico pois ou é psicose ou é simbólico. O objeto transicional está no  paradigma não-dicotômico pois ele é simbólico e subjetivo, signo e símbolo ao mesmo tempo.  3- No paradigma moderno dar-se-ia uma interpretação enquanto que no paradigma pós-moderno o analista simplesmente ouviria a queixa do analisando aceitando o paradoxo objetivo-subjetivo e portanto acolhendo os sentimentos da analisanda.
          A maneira do analista proceder (se dando holding e fazendo intervenções sensíveis, ou  se interpretando sem levar em conta a subjetividade, a vulnerabilidade, a sensibilidade do paciente) dá uma forte pista da maneira dele proceder: se ele leva em conta a subjetividade ou se exige que a subjetividade seja recalcada para que  reine a objetividade.  
        Dessa mesma carta podemos retirar o seguinte: Winnicott achava que uma teoria poderia correr o risco de se esclerosar nas palavras que a constituíam. Palavras para ele não eram conceitos fixos, mas uma forma especificamente humana de tentar transmitir uma experiência. O importante era poder transmitir uma experiência e não usar palavras conceituais. (ver p.XXI ou p.31 do livro “O Gesto Espontâneo).
Ainda nesta mesma carta de 17 de novembro, para M.Klein, podemos retirar mais uma contribuição de Winnicott, uma contribuição que aponta para uma concepção contemporânea da saúde e da doença. Não é que Winnicott tenha falado explicitamente dessa questão, mas, se dirigirmos um olhar intencional para o que ele escreve, poderemos lá encontrar essa idéia. Vou reproduzir o trecho da carta que nos interessará. Está na pag. 33: “A questão que estou discutindo toca bem na raiz de minha dificuldade pessoal, de modo que o que você vê sempre pode ser posto de lado como doença de Winnicott, mas se você desconsiderá-lo desse modo, pode perder algo que, no fundo, é uma contribuição positiva. Minha doença é algo com que posso lidar ao meu modo e que não está longe de ser a dificuldade inerente ao contato humano com a realidade”. Comentário: Winnicott está falando de saúde e doença. Sua última frase permite-me pensar doença e saúde como parte do fluir da vida. A doença aparece então como uma reação aos obstáculos inevitáveis que o ser humano encontra no seu percurso de vida. Este obstáculo tanto pode ser uma bactéria que o invade, à qual ele responderá com uma infecção que é a doença, como pode ser uma invasão materna, à qual  ele poderá responder com ansiedade ou retraimento que serão a doença. Tanto num caso como no outro haverá um desvio ou uma parada no desenvolvimento que será retomado ou retificado após o obstáculo colocado pela vida for removido. A diferença entre o predominantemente psíquico e o predominantemente extra-psíquico está no ultrapassamento do obstáculo, que é geralmente total no extra-psíquico, mas que, quando se trata do psíquico, é internalizado continuando a exercer os seus efeitos. O obstáculo, ou a invasão predominantemente extra-psíquica pode deixar sequelas, e a saúde que para Winnicott é vida, terá de ser exercida com a seqüela. Pensemos em Itzhak Perelman que exerceu a sua saúde mesmo com a paresia, quase paralisia das pernas. Com o psíquico não é diferente. Temos de exercer nossa saúde, nosso viver, a partir do limites que temos e que aconteceram no processo de desenvolvimento. A reportagem de VEJA n. 37 de 2003, o psicólogo Roger Gould que  escreve na revista americana Psychology Today, é citado: ”Quem é fisicamente mais saudável? Um campeão olímpico fora das pistas  por  causa de uma torção no tornozelo ou um diabético do tipo I cujo nível de açucar no sangue está temporariamente normal?” Esta é uma boa questão e entra na linha de pensamento que coloca as doenças como vicissitudes, como parte de um viver onde saúde e doença realizam uma dança complexa impedindo que se saiba exatamente onde está a saúde e onde está a doença, ou ainda, emaranhando saúde e doença de maneira a não se poder distingui-las, a não ser por um golpe de inteligência, um golpe epistemológico. Se de um ponto de vista a gripe da criança é doença, de outro é saúde. Saúde e doença convivem paradoxalmente. Talvez o importante seja dizer que os dois pontos de vista epistemológicos são produtivos e necessários. Outro comentário: “...saúde compreendida como processo e não como ausência de doença na perspectiva da  produção de qualidade de vida, enfatizando ações integrais e promocionais de saúde”( III Conferência Nacional de Saúde Mental, 2002).
        Winnicott não abria mão de estar integralmente presente na sessão. Pôde então falar e analisar o seu ódio pessoal do paciente. Nisto ele foi além da relação analista-analisando colocando a sua pessoalidade na relação. Masud Khan, um conhecido analista ex-analisando de Winnicott falou da forte “presença psicossomática” de Winnicott na relação. Comentário: Estar “todo” presente é ultrapassar a dicotomia corpo-/alma, presente nos primeiros cem anos de psicanálise quando o analista tentava ocultar o seu corpo para não perturbar com a sua presença as associações do paciente e para não se perturbar com o olhar do analisando. Essa presença global ultrapassa a dicotomia corpo/alma. Neste sentido Winnicott é monista. Mas é também monista na sua recusa em aceitar uma pulsão de morte. Para ele a pulsão que temos é a pulsão de vida que em algum momento chamou de “força vital”. A agressividade e destrutividade nascem da força vital.

Podemos colocar como característica da modernidade o conjunto dever/disciplina/obrigação e como característica da pós-modernidade o conjunto criatividade/espontaneidade/surpresa. E encontramos ao longo da vida e obra de Winnicott momentos privilegiados em que o segundo trinômio se manifesta. Winnicott estava em uma reunião científica quando se viu dizendo “não existe esta coisa chamada bebê”. Ele próprio ficou surpreso com a formulação, mas compreendeu que ela vinha de um longo período de observação e elaboração. Posso acrescentar que Winnicott ao dizer esta frase estava mudando de paradigma. Para usar a linguagem de Edgar Morin posso dizer que ele estava complexificando o objeto de estudo. Estudar o bebê separado da mãe pode ser considerado um recorte da realidade caindo no paradigma da simplificação enquanto que a inclusão da mãe complexifica e permite enxergar uma realidade mais ampla. Recorte refere-se ao ambiente e à história e permite um estudo em profundidade de características particulares, mas torna o homem cego ao conjunto em movimento. Os operadores da complexificação (conjunção, distinção e implicação) permite ver o todo, as partes, e os todos parciais que interessam para o objetivo a ser alcançado. Uma outra  frase que tem o mesmo significado nós a encontramos em EXPLORAÇÕES PSICANALÍTICAS, p.196/7: “Não se deve permitir que a existência dos padrões de enfermidade obscureça a realidade de que a criança em questão é uma criança com um irmão ou uma irmã mais novos”. Outra surpresa para Winnicott: “Foi minha observação seguinte que me surpreendeu tocando um ponto importante”. Está na p. 105 do O Brincar e a Realidade.

No livro EXPLORAÇÕES PSICANALÍTICAS Winnicott fala explicitamente de “abandonar alguns princípios dos quais esteve corretamente orgulhoso”. A psicanálise tradicional adota o ponto de vista do “indivíduo antes do ambiente” e Winnicott fala da necessidade de se olhar “o ambiente antes do indivíduo”. Diz mais: “Ele [o bebê] é um fenômeno complexo que inclui o seu potencial e mais o seu meio ambiente”. “Não se deve permitir que a existência dos padrões de enfermidade obscureça a realidade de que a criança em questão é uma criança com um irmão ou uma irmã” (p.196) Comentário: é uma frase interessante: existem padrões de enfermidade que são modelares e que portanto caem na categoria da modernidade e da dicotomia, sim. Mas esses padrões devem ser olhados em um contexto maior, devem ser incluídos em uma complexidade, devem realizar uma conjunção. Ou o contrário: pode-se começar pela conjunção, e, se necessário, chegar à disjunção, para posteriormente voltar à conjunção. Meu exemplo: criança que faz uma gripe por falta de atenção. Portanto a gripe tem a função de trazer o olhar dos pais para essa criança. Digamos que não seja uma gripe, mas uma infecção. Procedimento moderno, causal, redutor: levar material para o laboratório, fazer cultura, estabelecer o antibiótico eficiente e receitá-lo para a criança. Este procedimento não deve ser redutor de uma situação mais complexa. Portanto, não se deve parar nele. É preciso incluí-lo na situação de vida. Ele passou, por algum motivo, a receber menos atenção dos pais ou da mãe, por exemplo. A mãe pode ter tido um filho, ou pode ter ficado deprimida, ou qualquer outra coisa. Com isso as suas defesas baixaram, sim, mas, do ponto de vista holístico, a infecção e o resultado de uma complexidade da qual faz parte a tentativa de recuperar a  atenção perdida e ainda necessária.  

A questão da teoria modelar e da teoria ou teorização exemplar. Acho que essas palavras adjetivantes são boas. Há uma diferença entre se seguir um modelo (filosofia platônica, cartesiana, kantiana) e tomar a teoria não como um modelo fixo, mas como uma formulação advinda de uma prática clínica.
Terminarei com uma frase de Peter Tizard que se encontra na Introdução ao livro “Os bebês e suas mães” de Winnicott: “O Dr. Winnicott foi um bom escritor, às vezes muito bom, outras vezes nem tanto, mas foi muito melhor como professor e brilhante como conferencista. Para expressar suas idéias  de  modo claro e vívido, precisava da proximidade de uma platéia; além disso, tinha a capacidade de mudar de estilo e de conteúdo em função do nível de compreensão e do humor da platéia, fosse ela constituída de uma pessoa ou de centenas delas”(p.VIII).
Winnicott tinha alma de aedo: mais Homero do que Platão.

                                                Nahman Armony

A ÉTICA E O AMOR

Os pensadores da atualidade chamam a atenção para uma mudança fundamental na mentalidade humana. No passado, acreditava-se em princípios universais que, mesmo transgredidos, eram aceitos por todos em uma cultura. A pessoa, ao transgredir, sabia estar indo de encontro à Verdade de seu grupo.
Hoje temos uma dispersão da Verdade. Cada um constrói a sua ética e tenta agir de acordo com ela. A elaboração dessa ética varia de pessoa para pessoa. Nela, misturam-se mandatos advindos da educação, da realização dos desejos próprios e de um cuidado com os outros, seja por amor ou por convicção filosófica. Não estou falando de elaboração consciente, que pode existir, ou se manifestar em algum momento, mas de uma forma não-consciente de agir.
Muitas vezes a ética explícita não é a mesma do inconsciente, o que provoca mal-estar e sentimento de culpa em determinadas situações. Por exemplo: a ética de uma pessoa lhe diz que a infidelidade não é um ato reprovável e, no entanto, ela se sente culpada quando acontece. Vamos pensar em um caso concreto: um jovem adulto, criado em ambiente religioso e repressor, apresenta dificuldades sexuais, as quais o desvalorizam e revoltam. Ele se rebela contra a educação recebida e elabora uma ética própria, em que a sexualidade é um direito de todos. Algo importante está acontecendo. O rapaz desafia, a partir de seus instintos e desejos, a força dos mandatos parentais que, à sua revelia, se tornaram parte dele mesmo. E sua elaboração ética vai além. Para ele, é possível haver infidelidade na relação amorosa, pois esta não deve impedir que um desejo sexual de grande intensidade seja realizado. Sua ética está no respeito ao impulso. Pode-se pensar que este fragmento ético tem sua origem afetiva no desejo de experimentação e variedade (não quero repetir o argumento biológico darwiniano da máxima transmissão dos caracteres hereditários).
Pois bem, esta é a ética que ele apresenta à namorada: ambos teriam o direito a aventuras sexuais. Talvez peça a ela discrição, pois se vier a saber da infidelidade sofrerá. A moça, porém, tem outra ética. Para ela a fidelidade sexual é um princípio cuja quebra é inaceitável. Se o namorado tiver uma aventura, terminará o namoro. Temos aqui duas éticas em confronto, o que não acontecia no tempo em que havia apenas uma Verdade: para o rapaz o ético é não impedir a realização de um forte impulso; para a moça o ético é preservar a fidelidade a qualquer custo. Uma diferença de ajuizamento e um impasse.
O mais coerente seria terminarem o namoro antes que um aprofundamento da relação viesse a fazê-los sofrer na eventualidade de uma traição. Acontece que os dois se amam. Um deles irá ceder. Mas será uma frágil renúncia. Ou ela se sentirá ofendida se houver infidelidade ou ele se sentirá cerceado por não poder se entregar a um desejo intenso que surja. A situação poderá dar origem à dubiedade. Mantendo-se fiel a sua ética, à qual não pode renunciar já que se trata de um princípio básico, ele “sabe” que em situações excepcionais cederá ao desejo. Mas como está muito interessado na namorada, não deixa claros, nem para si nem para ela, os seus sentimentos. Ela aceita esse estado ambíguo porque não quer um rompimento. Ambos concordam em manter uma semi-mentira e uma semi-verdade. Está criado o cenário para muito sofrimento futuro.

                    Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS





POEMA DA LIBERDADE

                    Minha máquina relojoeira
                    Está trabalhando diferente
                    Não só aponta para o Norte
                    Para o Sul também
                    Para o Leste e para Oeste
                    Para qualquer de todos os lados,

                    Mas é sempre para o meu caminho.

                                                 Nahman Armony                         

AGRESSIVIDADE EM WINNICOTT

                                              

O ser humano possui uma quota de energia que precisa ser atualizada. Essa cota de energia, dependendo da perspectiva, pode ser chamada de força vital, de agressividade. Sua manifestação mais conspícua é a motilidade. Dessa maneira, de certa forma, agressividade e motilidade se confundem. É esta agressividade que tem de ser gasta.
De que maneira isso acontece? Parte da energia/agressividade é gasta na motilidade e nos procedimentos de crescimento, de experimentação e na exploração do mundo. Parte dela está ligada ao amor primário – o amor primário tem obrigatoriamente um componente agressivo. Parte encontra ou cria um obstáculo para poder se manifestar. O obstáculo que é o mundo, sua realidade, pode ser suficiente para o gasto da agressividade. Mas pode não ser, e então é preciso achar ou mesmo criar um obstáculo para gastar a energia, a agressividade. Disso tudo resulta um gasto de agressividade que pode ou não ser completo, sendo que o excedente de energia fica preso no organismo.
Existe, pois, uma agressividade inata necessária ao desenvolvimento do ser humano. Os rumos que esta agressividade tomará, dependem da maternagem. Se esta for suficientemente boa, a agressividade se tornará integrada à personalidade, podendo ser criteriosamente usada. Se o ambiente não for suficientemente bom, a agressividade se transformará em destrutividade. 
         A agressividade não é perigosa. A repressão (recalque) da agressividade, sim.
         Na época do pré-concern a agressividade (falamos aqui de uma das possibilidades) é dirigida à mãe-objeto (amor voraz) como um amor implacável, já que não houve ainda a integração da mãe-objeto com a mãe-ambiente. O amor excitado inclui um ataque imaginário ao corpo da mãe. Se essa agressão é inibida, haverá dificuldade de amar, de se relacionar com o outro. “Se a agressão é perdida nesse estágio de desenvolvimento, haverá também algum grau de perda da capacidade de amor, isto é, de se relacionar com objetos” (p. 358 – Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional, in “Da pediatria à psicanálise”).
         É possível que mesmo no estágio de concern apareça esse tipo de agressividade implacável. Isso se deverá a uma dissociação entre o aspecto tranqüilo e o aspecto excitado da personalidade. (“Um certo grau deste tipo de comportamento aparece como uma dissociação entre o aspecto tranqüilo e o aspecto excitado da personalidade, de forma que crianças comumente boas e amáveis atuarão de forma inadequada e farão coisas agressivas a pessoas que ama, sem se sentir inteiramente responsáveis por suas ações”(idem, ibidem).
         No estágio do concern, quando há uma integração das duas mães, a criança sente-se culpada por ter danificado a pessoa amada durante a relação excitada. Se o ambiente (a mãe) sustenta a situação – e aqui estamos falando de um fator temporal – dá tempo à criança de realizar uma reparação que também deve ser aceita, isto é, sustentada no tempo pelo ambiente. Quando a reparação não pode ser aceita a transformação de agressão em realizações sociais se desfaz e reaparece a agressão. (agressividade é diferente de agressão: a realização só pode ser feita quando há agressividade, mas a realização não necessita de ser agressiva. Só o será quando falhar o mecanismo da reparação).
         Então um dos caminhos da culpa é a reparação, as realizações sociais benéficas ao grupo. Mas antes disso, ou depois disso ou mesmo durante, a culpa poderá ser nada mais nada menos do que agressividade voltada contra si mesmo, provocando sofrimento psíquico e equivalentes físicos. 
Em Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional há uma frase categórica de Winnicott: “A atividade social não será satisfatória, a não ser que se baseie em um sentimento de culpa pessoal em função da agressão”. Winnicott admite que todos os seres humanos possuem uma agressão reativa. “Podemos dizer que seremos sempre capazes de detectar a agressão reativa no impulso amoroso primitivo, já que, na prática, não existe algo como uma completa satisfação do id”. (p.363, ibid).   Isso foi escrito em 1950-55. Em 1958 Winnicott assume a existência de uma atividade social desvinculada da culpa nos artistas criativos, o que eu estendi para os borderlines próximos ao normal (homem pós-moderno) de uma maneira geral (ver o artigo “Psicanálise e o sentimento de culpa” 1958 p.28-29 no livro “O ambiente e os processos de maturação”).
 “Podemos dizer que seremos sempre capazes de detectar a agressão reativa no impulso amoroso primitivo, já que, na prática, não existe algo como uma completa satisfação do id”. (p.363, ibid).
  A motilidade (agressividade) inerente, que todos nós portamos, tem de se expressar. Ela não se gasta inteiramente na atividade do id. O restante dela, ou encontra um obstáculo para ser gasta, ou permanece no organismo causando incômodo, procurando meios de se expressar e eventualmente convertendo-se em masoquismo. 
         Na última década de sua vida, Winnicott atribuiu uma missão da maior importância à agressividade na sua forma de agressão destrutiva. A passagem da relação de objeto para uso de objeto se dá por um ataque e destruição do objeto subjetivo, que só então passa a ser visto sob a ótica de objeto objetivamente percebido. A palavra “uso”, da linguagem coloquial, é então transformada em conceito, pois coloquialmente falando, também na relação de objeto existe o uso (em sentido coloquial) do analista. Também devemos tomar cuidado com a conotação pejorativa que a palavra uso pode ter, significando mais um abuso que uma utilização. Para Winnicott, o “uso” do analista, como conceito, significa que o analisando pode finalmente ver o analista como um outro, e então realmente ouvir, sentir e aproveitar o que está sendo transmitido.
         A agressividade para Winnicott é, portanto, o motor que impele a pessoa a se relacionar, a criar, a viver, a amar, a realizar, a produzir. O perigoso, para Winnicott, reside na repressão e no recalque da agressividade pois, estando fora do alcance do Cs. não poderá ser administrada.

Nahman Armony



                                                                                  

NÍVEIS DE ENTREGA


Muitas vezes ouvi mulheres reclamando dos homens que não se deixavam amar: sempre davam um jeito de quebrar o clima de intimidade quando este ia além do que seus medos podiam suportar.
Dentro de uma mentalidade patriarcal é possível compreender tal comportamento. O homem entregar-se a seus sentimentos era, na sociedade patriarcal, um sinal de fraqueza inconcebível. Uma fraqueza que o impediria de vencer na vida. Valorizava-se então a objetividade absoluta sem laivos de sensibilidade e compaixão, o que lhe permitiria manter o controle integral da situação. Era uma questão de princípio (“homem não chora”), mas era também uma questão pragmática, pois o prazer obtido no encontro amoroso poderia vir acompanhado de gratidão com um amolecimento da armadura egóica o que o deixaria mais predisposto a atender aos desejos da companheira e mais sensível às suas necessidades. Para o machismo isto é muito perigoso, pois tira o homem da posição de dominador necessária à sua autoestima e à manutenção da hierarquia. A solução é entregar-se até certo ponto, não ultrapassando a linha além da qual a gratidão e o relaxamento o fariam sair de sua posição de poder absoluto.
Esta situação era prevalecente no século passado. De lá para cá muita água passou debaixo da ponte. O machismo está em processo de dissolução e embora haja uma certa indefinição a sensibilidade masculina está em alta.
A indefinição da qual falo refere-se a uma dubiedade quanto ao papel do homem. Ele deverá ser sensível sim, mas não deverá perder certas características como pagar a conta da companheira, abrir a porta do carro e outras gentilezas exclusivas do masculino estabelecendo ainda uma diferença de gêneros.
Pelo que posso perceber o assunto ainda é confuso e está em processo de elaboração social. E mais confuso se torna quando nos deparamos com um fenômeno perfeitamente compreensível. A mulher atualmente apresenta o mesmo medo de entrega. Vamos tentar compreender.
Por séculos a mulher foi oprimida até que as condições sociais e tecnológicas vieram a permitir uma revolta contra sua condição de inferioridade. As primeiras feministas diante da força esmagadora da tradição tiveram que vestir o uniforme de supermulher disputando poder com o gênero masculino e adquirindo suas características. Na medida em que elas foram conquistando espaços e se libertando do jugo masculino essa força passou a ser desnecessária e realmente a luta se amainou. Mas permanece ainda no inconsciente coletivo feminino a lembrança arcaica e inconsciente de uma outra época terrivelmente desfavorável à mulher. E o medo inconsciente do retorno da dominação masculina faz com que atualmente a Mulher evite uma entrega completa, repetindo, por outros motivos, o antigo comportamento do Homem. Por sua vez o Homem ainda parcialmente aprisionado pelo antigo padrão de comportamento Homem/Mulher também não consegue uma entrega completa. Ambos, Homem e Mulher se entregam até certo ponto e não vão além por medo de se sentirem dominados (e também por medo da perda de individualidade que é um dos grandes fantasmas de nossa época). A incompletude da relação amorosa deixa ambos insatisfeitos facilitando o rompimento ou a procura de outros parceiros.
Espero que estas considerações possam ajudar os casais a se encontrarem o mais próximo possível da plenitude de suas potencialidades amorosas que hoje vão muito além da relação sexual padrão.
                                                       Nahman Armony
Primeira publicação na revista CARAS.

     

POEMA DA FRATERNIDADE

                    Retirar essa pedra do coração
                              Libertar meu riso
                              Dar-lhe asas de pássaro
                              E voar em direção ao horizonte
                              Em busca do arco-iris.
                              Viver livre, solto, feliz
                    Acreditando no meu amor
                    Na minha mais profunda bondade
                    No meu desejo de entender-me com os homens.
                    E acreditar que eu me possa defender
                    Poder fechar meu coração
                    Sempre que necessário
                    Na medida justa
                    Na hora justa.
                    Poder maltratar libertando
                    A ave que em outros existe
                    E voarmos todos juntos
                    Asas com asas
                    Bicos versus bicos
                    Na busca
                    Na ascenção
                    No prazer do azul
                    Do sol
                    Das tempestades
                    Até que cada um
                    Se perca no infinito.
                                            
                                          Nahman Armony