A pessoa que nos procura
para tratamento traz consigo uma certa forma de
pensar, agir, um certo modo de conhecer e de se relacionar com o mundo. Essa maneira de ser é diferente
do homem de gerações anteriores. Portanto, a maneira de realizar o tratamento
atual certamente diferirá da anterior.
Pode-se pensar que tendo mudado a subjetividade do homem em
geral, certamente a dos terapeutas terá também mudado e que, portanto há um
ajuste na terapia psicanalítica. Acontece que os especialistas, de uma maneira
geral, se apegam às teorias, tendo receio de libertar-se delas e acabarem
responsáveis por um fracasso indesejado e ameaçador. Enquanto a subjetividade
da vida corre livre, a subjetividade dos especialistas, dos técnicos fica
amarrada a teorias já ultrapassadas pelos acontecimentos.
A libertação ou a modificação de teorias
que estão sendo ultrapassadas pelos acontecimentos acaba ficando a cargo de
alguns homens que poderíamos chamar de excepcionais, sendo que neste conceito
de excepcional estão embutidas muitas variáveis: a história de vida, a
liberdade interior, a conjunto da personalidade, as condições ambientais, o
acaso, a força afirmativa, o grau de submissão à sociedade, a habilidade
política e social, a autoestima, a paixão pela profissão, a filosofia de vida,
os valores e ideais, e certamente outros aspectos que não percebo.
Creio que todos concordam que um desses
homens excepcionais foi Freud. Homem extremamente inteligente, honesto na sua
busca da verdade, íntegro, idealista, político, ambicioso, versátil, culto,
implacável, conseguiu implantar a psicanálise como uma nova disciplina,
tornando-a universal e polivalente.
Uma vez aberto o campo psicanalítico
tornou-se mais fácil seu desbravamento. Mas, mesmo assim, foi necessário que houvesse
homens de visão para fazer andar a psicanálise. Poderíamos pensar em vários,
mas nos interessará um em especial que por uma razão ou outra, tornou-se hoje a
referência principal de quem busca uma nova epistemologia para compreender o
novo homem. Estou-me referindo a Winnicott.
Sua história:
Nasceu em 1896 em Plymouth,
Devon, Inglaterra, um baluarte da tradição metodista não conformista. Morreu em
1971. É, portanto um analista situado no século XX, um século em que as
alterações epistemológicas ganharam uma força e consistência cada vez maiores.
Era o único filho homem, com duas irmãs mais velhas, fazendo parte de uma
família rica e influente. “Cresceu em um universo marcado pela presença das
mulheres. A mãe, a avó, uma babá, uma governanta e as duas irmãs tiveram um
papel maior na sua educação, enquanto o lugar do pai permanecia vago”.
COMENTÁRIO: Daí
viria a sua sensibilidade para as relações
mãe-filho, e portanto, para a subjetividade feminina. Podemos, para melhor
marcar este aspecto de sua subjetividade, confrontar sua capacidade de se
colocar no papel de mãe, realizando o “holding”, o “handling” e a “apresentação
de objeto” com uma fala de Freud citada por Doolittle: “É preciso que eu lhe
diga (você foi franca comigo e eu serei com você), eu não gosto de ser a mãe na
transferência. Isto me surpreende e choca um pouco”. Um exemplo de apresentação
de objeto para uma analisanda minha. Após um ano e meio de terapia ela disse
uma frase altamente significativa. “Fulano nunca erra; entre uma afirmativa de
Fulano e uma afirmativa minha ele sempre estará certo”. Depois de dita a frase
riu como que percebendo o significado dela. Mais adiante eu lhe falei de dois
mundos, um mundo perfeito onde existe um rabi que está sempre certo e um mundo
imperfeito onde qualquer um pode errar. Pode-se dizer que nesse momento eu lhe
“apresentei” o mundo real, embora ela mesma já o tivesse feito pelo menos em
parte. Mas mesmo a sua possibilidade de deixar escapar sua fantasia, sua
maneira de organizar o seu psiquismo e o mundo tiveram a ver com minha atuação
passada que procurava mostrar-lhe a realidade e a ilusão em relação a si mesma
e ao mundo.
O
pai era um bem-sucedido e admirado comerciante e prefeito da cidade e recebeu o
título de cavaleiro em reconhecimento a seu trabalho cívico.
UMA
LEMBRANÇA DE WINNICOTT: “Meu pai tinha
uma fé religiosa simples. Um dia, quando lhe fiz uma pergunta que poderia nos
levar a uma discussão sem fim, ele se limitou a dizer: ‘Leia a Bíblia que você
encontrará a resposta certa’. Foi assim que ele deixou ---
graças a Deus ---- que eu me virasse sozinho”. COMENTÁRIO: podemos
associar a importância que esse episódio teve para Winnicott com a importância
por ele dada ao encontro da verdade não por imposição externa, mas por um
encontro com ela (a verdade pessoal) a partir dos recursos da própria pessoa.
Isto aparece em vários escritos seus. Lembro-me particularmente do artigo
“Moral e Educação” do livro “O ambiente e os processos de maturação”. Também
associo com sua conduta na terapia (uma conduta, que, não podemos esquecer,
apareceu mais tarde) de deixar o próprio analisando chegar à interpretação de
si mesmo. Penso também na idéia de que a terapia é a superposição do brincar do
analisando com o brincar do terapeuta, formulação essa que aponta para uma
certa independência das produções do analista em relação às produções do
analisando e vice-versa, o que não significa que não haja interações, mas não
situações hierárquicas de autoridade e muito menos imposições.
OUTRO
ACONTECIMENTO SIGNIFICATIVO: num acesso de raiva estragou a cabeça de uma
boneca da irmã; o pai a reconstituiu e esse
foi um acontecimento significativo que fez com que ele vivesse a experiência de
reparação.
Continuando a história: aos
14 anos (1910) passou a estudar em escola interna em Cambridge. Ao quebrar, no
ano seguinte, a clavícula, decidiu ser médico. Apaixonou-se pelas ideias de
Darwin e resolveu estudar biologia. Em seguida fez medicina. Na faculdade de
medicina converteu-se ao anglicanismo. Através de um livro de Oskar Pfister entrou em contato
com textos psicanalíticos.
Em 1923 tornou-se médico no
Padington Green Children’s Hospital onde clinicou por 40 anos. Sua clínica
evoluiu da pediatria tradicional para a psiquiatria infantil. Neste mesmo ano
iniciou uma análise com James Strachey que durou 10 anos. Segundo a correspondência
de seu analista com a esposa, Winnicott tinha problemas sexuais. Entre
1933 e 1938 fez sua segunda análise com
Joan Riviere.
Casou-se
com Alice uma pessoa com problemas psiquiátricos e que teve várias internações.
Divorciou-se em 1949. Em 1951 casou-se com Clare Britton, uma assistente social
com quem havia trabalhado na 2a. Guerra Mundial tratando da instalação de crianças
evacuadas das cidades britânicas bombardeadas. Lá supervisionou o tratamento de
delinqüentes e desenvolveu suas idéias sobre “a tendência anti-social”. Foi
presidente da Sociedade Britânica de Psicanálise por dois períodos. Vários
títulos e presidências. Palestras na BBC freqüentemente para pais.
Era um homem de grande
coragem pessoal tendo se recusado a receber supervisão de M.Klein no tratamento
de Erich, um de seus filhos. Ela era então um membro todo-poderoso da Sociedade
Britânica de Psicanálise e ele estava em supervisão com ela (supervisão entre
1935 e 1941). Ele fez parte do grupo dos independentes, não ficando nem no grupo
de M.Klein, nem no grupo de Anna Freud. Sua coragem e independência apareciam
nas suas intervenções deste conflito e nas cartas que escrevia. Há uma carta
dirigida à M.Klein em que ele fala da ditadura terminológica e conceitual por
ela imposta e o quanto isso era perigoso para o progresso da psicanálise(carta
de 17/11/1952 – p.30). Em outra carta que se tornou famosa, datada de 3/6/954,
denuncia a hipocrisia das duas líderes da escola inglesa: “considero que é de importância vital para a
Sociedade, que ambas destruam seus grupos em seu aspecto oficial. Não tenho
razões para pensar que viverei mais tempo que as sras., mas ter que lidar com
agrupamentos rígidos, que com a sua morte se tornariam automaticamente
instituições de Estado, é uma perspectiva que me apavora”. Ele próprio
foi um autor original, mas nunca desejou ser líder de uma escola ou de um
movimento. Preconizava a liberdade de pensamento para todos os psicanalistas.
Ele próprio tomou liberdades técnicas, prolongando sessões (até 3 horas de sessão),
usando o corpo como forma de comunicação e terapia, e realizando sessões
psicanalíticas avulsas ou com longos intervalos, escrevendo cartas terapêuticas
para clientes e mães de clientes. Segundo Elizabeth Roudinesco ele “não
hesitava, na linhagem da herança ferencziana, em manter relações de amizade
calorosa com seus pacientes, reencontrando sempre a criança neles e em si
mesmo”.
Tornou-se
popular fazendo conferências radiofônicas na BBC entre 1939 e 1962.
Verberou
Françoise Dolto por achá-la demasiadamente carismática e favorecedora de uma
idolatria por parte dos alunos. “Independente sem ser solitário, não gostava de
seitas, de discípulos, de imitadores. Foi por isso que, mostrando-se ao mesmo
tempo transgressor em sua prática e rigoroso em sua doutrina, não hesitou em
apoiar os rebeldes e os dissidentes
--- principalmente Ronald Laing,
um dos artífices da anti-psiquiatria”.
Sofria
de problemas cardíacos desde 1948. Morreu de ataque cardíaco em 1971. Sobre a
morte dizia: “quero estar vivo no momento
de minha morte”. Pontalis escreveu a seu respeito: “Talvez não haja nenhum
sucessor, ninguém para se dizer seu seguidor. E é melhor assim. Com mestres, a
psicanálise pode sobreviver durante algum tempo. Sem juízes nem mestres, ela
tem a possibilidade de viver indefinidamente”. COMENTÁRIO: Não é o que vemos hoje em dias. Há psicanalistas tentando
aprisioná-lo em uma metapsicologia winnicottiana, matando a essência de suas
contribuições. Uma questão a ser discutida. Focos de poder institucionalizados
tentam fazer isto.
Winnicott
preocupou-se em manter-se sensível ao sofrimento e sentimentos dos seres
humanos. Isso aparece mais claramente quando declina do convite para cuidar de
leitos do Hospital Infantil. Carta de 5/9/967: “...o sofrimento de bebês e crianças pequenas numa ala de hospital,
mesmo que muito bom, é algo terrível. Entrar na enfermaria me perturba muito.
Se eu me tornar médico de pacientes internados terei de desenvolver a
capacidade de não me deixar perturbar pelo sofrimento das crianças, do
contrário não poderei ser um médico eficiente. Portanto, vou me concentrar em
meu trabalho de ambulatório e em não me tornar insensível com a finalidade de
ser eficiente”.
Winnicott é contemporâneo
quando diz que o ambiente deve prover condições para o aparecimento do
verdadeiro self. A moralidade virá de um movimento espontâneo do ser humano em
direção ao social, não há um modelo de comportamento a ser adotado, pois cada
ser humano é singular, etc. Ele está na passagem epistemológica do modelo para
a singularidade, do indivíduo como é entendido por Foucault, para o self como o
próprio Winnicott conceitualiza.
Winnicott colocava-se como
necessitado de um movimento de aceitação, de reconhecimento do ambiente. Neste
sentido ele modifica a concepção moderna de auto-suficiência. É uma versão
adulta da mãe que aceita o objeto subjetivo da criança tornando-o transicional
pela sua aceitação. Winnicott reconhecia a importância de ser reconhecido,
aceito pelo ambiente e teoriza sobre a falta de uma reação de M.Klein a um trabalho que apresentara: Parte da carta de
17 de novembro de 1952 para M.Klein: “ o
que eu queria na sexta-feira era sem dúvida que houvesse algum movimento de sua
parte para com o gesto que fiz naquele trabalho. Trata-se de um gesto criativo
e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém
vier ao seu encontro. Acho que eu estava querendo algo que não tenho nenhum
direito de esperar de seu grupo e que tem a natureza de um ato terapêutico,
algo que não consegui em nenhuma de minhas duas longas análise, embora tenha
conseguido muitas outras coisas” (p.XVIII e p.30). Em cima desse fragmento
de carta muito se pode especular a respeito de Winnicott. Primeiro: sua teoria
e sua vida estão intimamente entrelaçadas: ele está falando do gesto criativo,
espontâneo que deverá ser aceito pelo que sobrou da personificação materna para
passar a ter existência. Em outras palavras: o gesto criativo, isto é, o objeto
subjetivo só se tornará um objeto pleno, um objeto transicional se a ele
corresponder um objeto objetivo, que, no caso, é um objeto consensual. Enquanto
apenas eu penso algo este pensamento é puramente subjetivo. É, como diz
Winnicott, um objeto subjetivamente concebido. Para que, além de subjetivamente
concebido ele seja também objetivamente percebido é preciso que ele exista na
realidade externa, no caso, numa realidade consensual. M.Klein, com a força de
seu prestígio tinha o poder de tornar consensual, e portanto objetivo, um
pensamento; tinha o poder de introduzir pensamentos originais na cultura. É
disso que Winnicott reclama, é sobre isto que ele teoriza. Segundo: existem e
devem existir atos terapêuticos na vida. Ato terapêutico aqui é mais do que um
ato limitado a um contexto de consultório; na verdade, todo ato deveria ser
terapêutico, embora muitos sejam anti-terapêuticos. Winnicott rompe pois as
barreiras do consultório, os limites de atuação. Terceiro: introduz a idéia de
que na análise as produções subjetivas do analisando, os objetos subjetivamente
concebidos deverão ser acolhidos pelo terapeuta, assim como a mãe acolhe os
gestos criativos do seu filho, colocando no lugar que o bebê está criando o
objeto objetivo de tal forma que o objeto subjetivamente concebido pelo bebê
seja também objetivamente percebido. Quando um objeto é ao mesmo tempo subjetivamente
concebido e objetivamente percebido teremos então um objeto transicional, nem
objetivo, nem subjetivo, mas transicional. Tive um exemplo da importância
clínica, isto é, da importância para a conduta do analista numa reunião
científica da Associação Brasileira de Psicossomática. Um analista apresentou
um caso clínico em que uma recém-casada não aceitou que a cama do casal fosse
aquela em que o marido dormia com a ex-mulher. Segundo este analista havia aí
um colamento (confusão) da cama – algo objetivo – com ex-mulher – um sentimento
subjetivo, pois a mulher não viria junto com a cama. O analista chamou ao
objetivo de símbolo, ao puramente subjetivo de signo, e à junção signo-símbolo
de equação simbólica. Seu trabalho analítico consistiu em separar signo e
símbolo que estavam acoplados constituindo a equação simbólica, fazendo então
que ela se tornasse razoável e aceitasse a entrada da cama no seu lar. Eu
contrapus o seguinte: que essa área intermediária em que convivem subjetivo e
objetivo é a área em que predominantemente vivemos, uma área paradoxal, mas uma
área humana e não uma área despida de afeto, robótica que aparece quando
tentamos expurgar o subjetivo de nossos atos. Em outros termos o marido deveria
ter a sensibilidade suficiente (e o terapeuta também) de aceitar o mal-estar da
esposa em relação a uma cama na qual ele tinha dormido com a ex-esposa. Essa
tentativa de alcançar o objetivo absoluto, o simbólico absoluto é ainda uma
herança cartesiana que separava corpo (sentimentos) de mente (raciocínio objetivo).
Faz portanto diferença ter uma teoria que valoriza o espaço transicional, que
leva em conta a área em que o subjetivamente concebido convive sem questões com
o objetivamente percebido. É uma área onde não cabem questões como dizer “mas é
só uma cama e minha ex-esposa não está mais nela”. Se interpretamos
cama/ex-esposa como deslocamento ou confusão (exp.: “você está confundindo a ex
com a cama”) estaremos na lógica da exclusão, na lógica cartesiana pois estarei
dizendo que ou é ex-esposa ou é cama. Se estou na lógica paradoxal, no
objeto transicional, a lógica é a
paradoxal, contemporânea, pois ex-esposa e cama convivem sem choques, e sem
necessidade de ultrapassamento.
A equação simbólica está no paradigma
dicotômico pois ou é psicose ou é simbólico. O objeto transicional está no paradigma não-dicotômico pois ele é simbólico
e subjetivo, signo e símbolo ao mesmo tempo.
3- No paradigma moderno dar-se-ia uma interpretação enquanto que no
paradigma pós-moderno o analista simplesmente ouviria a queixa do analisando aceitando
o paradoxo objetivo-subjetivo e portanto acolhendo os sentimentos da analisanda.
A maneira do analista proceder (se dando
holding e fazendo intervenções sensíveis, ou
se interpretando sem levar em conta a subjetividade, a vulnerabilidade,
a sensibilidade do paciente) dá uma forte pista da maneira dele proceder: se
ele leva em conta a subjetividade ou se exige que a subjetividade seja
recalcada para que reine a
objetividade.
Dessa mesma carta podemos retirar o seguinte: Winnicott
achava que uma teoria poderia correr o risco de se esclerosar nas palavras que
a constituíam. Palavras para ele não eram conceitos fixos, mas uma forma
especificamente humana de tentar transmitir uma experiência. O importante era
poder transmitir uma experiência e não usar palavras conceituais. (ver p.XXI ou
p.31 do livro “O Gesto Espontâneo).
Ainda nesta mesma carta de
17 de novembro, para M.Klein, podemos retirar mais uma contribuição de
Winnicott, uma contribuição que aponta para uma concepção contemporânea da
saúde e da doença. Não é que Winnicott tenha falado explicitamente dessa
questão, mas, se dirigirmos um olhar intencional para o que ele escreve,
poderemos lá encontrar essa idéia. Vou reproduzir o trecho da carta que nos
interessará. Está na pag. 33: “A questão
que estou discutindo toca bem na raiz de minha dificuldade pessoal, de modo que
o que você vê sempre pode ser posto de lado como doença de Winnicott, mas se
você desconsiderá-lo desse modo, pode perder algo que, no fundo, é uma
contribuição positiva. Minha doença é algo com que posso lidar ao meu modo e
que não está longe de ser a dificuldade inerente ao contato humano com a
realidade”. Comentário: Winnicott está falando de
saúde e doença. Sua última frase permite-me pensar doença e saúde como parte do
fluir da vida. A doença aparece então como uma reação aos obstáculos
inevitáveis que o ser humano encontra no seu percurso de vida. Este obstáculo
tanto pode ser uma bactéria que o invade, à qual ele responderá com uma
infecção que é a doença, como pode ser uma invasão materna, à qual ele poderá responder com ansiedade ou
retraimento que serão a doença. Tanto num caso como no outro haverá um desvio
ou uma parada no desenvolvimento que será retomado ou retificado após o
obstáculo colocado pela vida for removido. A diferença entre o
predominantemente psíquico e o predominantemente extra-psíquico está no
ultrapassamento do obstáculo, que é geralmente total no extra-psíquico, mas
que, quando se trata do psíquico, é internalizado continuando a exercer os seus
efeitos. O obstáculo, ou a invasão predominantemente extra-psíquica pode deixar
sequelas, e a saúde que para Winnicott é vida, terá de ser exercida com a
seqüela. Pensemos em Itzhak Perelman que exerceu a sua saúde mesmo com a
paresia, quase paralisia das pernas. Com o psíquico não é diferente. Temos de
exercer nossa saúde, nosso viver, a partir do limites que temos e que
aconteceram no processo de desenvolvimento. A reportagem de VEJA n. 37 de 2003,
o psicólogo Roger Gould que escreve na
revista americana Psychology Today, é citado: ”Quem é fisicamente mais
saudável? Um campeão olímpico fora das pistas
por causa de uma torção no
tornozelo ou um diabético do tipo I cujo nível de açucar no sangue está
temporariamente normal?” Esta é uma boa questão e entra na linha de pensamento
que coloca as doenças como vicissitudes, como parte de um viver onde saúde e
doença realizam uma dança complexa impedindo que se saiba exatamente onde está
a saúde e onde está a doença, ou ainda, emaranhando saúde e doença de maneira a
não se poder distingui-las, a não ser por um golpe de inteligência, um golpe
epistemológico. Se de um ponto de vista a gripe da criança é doença, de outro é
saúde. Saúde e doença convivem paradoxalmente. Talvez o importante seja dizer
que os dois pontos de vista epistemológicos são produtivos e necessários. Outro
comentário: “...saúde compreendida como processo e não como ausência de doença
na perspectiva da produção de qualidade
de vida, enfatizando ações integrais e promocionais de saúde”( III Conferência
Nacional de Saúde Mental, 2002).
Winnicott não abria mão de estar integralmente presente na
sessão. Pôde então falar e analisar o seu ódio pessoal do paciente. Nisto ele
foi além da relação analista-analisando colocando a sua pessoalidade na
relação. Masud Khan, um conhecido analista ex-analisando de Winnicott falou da
forte “presença psicossomática” de Winnicott na relação. Comentário: Estar “todo” presente é ultrapassar a dicotomia
corpo-/alma, presente nos primeiros cem anos de psicanálise quando o analista
tentava ocultar o seu corpo para não perturbar com a sua presença as
associações do paciente e para não se perturbar com o olhar do analisando. Essa
presença global ultrapassa a dicotomia corpo/alma. Neste sentido Winnicott é
monista. Mas é também monista na sua recusa em aceitar uma pulsão de morte. Para
ele a pulsão que temos é a pulsão de vida que em algum momento chamou de “força
vital”. A agressividade e destrutividade nascem da força vital.
Podemos colocar como
característica da modernidade o conjunto dever/disciplina/obrigação e como
característica da pós-modernidade o conjunto
criatividade/espontaneidade/surpresa. E encontramos ao longo da vida e obra de
Winnicott momentos privilegiados em que o segundo trinômio se manifesta.
Winnicott estava em uma reunião científica quando se viu dizendo “não existe
esta coisa chamada bebê”. Ele próprio ficou surpreso com a formulação, mas
compreendeu que ela vinha de um longo período de observação e elaboração. Posso
acrescentar que Winnicott ao dizer esta frase estava mudando de paradigma. Para
usar a linguagem de Edgar Morin posso dizer que ele estava complexificando o
objeto de estudo. Estudar o bebê separado da mãe pode ser considerado um
recorte da realidade caindo no paradigma da simplificação enquanto que a
inclusão da mãe complexifica e permite enxergar uma realidade mais ampla. Recorte
refere-se ao ambiente e à história e permite um estudo em profundidade de
características particulares, mas torna o homem cego ao conjunto em movimento.
Os operadores da complexificação (conjunção, distinção e implicação) permite
ver o todo, as partes, e os todos parciais que interessam para o objetivo a ser
alcançado. Uma outra frase que tem o
mesmo significado nós a encontramos em EXPLORAÇÕES PSICANALÍTICAS,
p.196/7: “Não se deve permitir que a
existência dos padrões de enfermidade obscureça a realidade de que a criança em
questão é uma criança com um irmão ou
uma irmã mais novos”. Outra surpresa para Winnicott: “Foi minha observação seguinte que me
surpreendeu tocando um ponto importante”. Está na p. 105 do O Brincar e
a Realidade.
No livro EXPLORAÇÕES
PSICANALÍTICAS Winnicott fala explicitamente de “abandonar alguns princípios dos quais esteve corretamente orgulhoso”.
A psicanálise tradicional adota o ponto de vista do “indivíduo antes do
ambiente” e Winnicott fala da necessidade de se olhar “o ambiente antes do
indivíduo”. Diz mais: “Ele [o bebê] é um
fenômeno complexo que inclui o seu potencial e mais o seu meio ambiente”. “Não
se deve permitir que a existência dos padrões de enfermidade obscureça a
realidade de que a criança em questão é uma criança com um irmão ou uma irmã” (p.196)
Comentário:
é uma frase interessante: existem padrões de enfermidade que são modelares e
que portanto caem na categoria da modernidade e da dicotomia, sim. Mas esses padrões
devem ser olhados em um contexto maior, devem ser incluídos em uma complexidade,
devem realizar uma conjunção. Ou o contrário: pode-se começar pela conjunção,
e, se necessário, chegar à disjunção, para posteriormente voltar à conjunção.
Meu exemplo: criança que faz uma gripe por falta de atenção. Portanto a gripe
tem a função de trazer o olhar dos pais para essa criança. Digamos que não seja
uma gripe, mas uma infecção. Procedimento moderno, causal, redutor: levar
material para o laboratório, fazer cultura, estabelecer o antibiótico eficiente
e receitá-lo para a criança. Este procedimento não deve ser redutor de uma
situação mais complexa. Portanto, não se deve parar nele. É preciso incluí-lo
na situação de vida. Ele passou, por algum motivo, a receber menos atenção dos
pais ou da mãe, por exemplo. A mãe pode ter tido um filho, ou pode ter ficado
deprimida, ou qualquer outra coisa. Com isso as suas defesas baixaram, sim,
mas, do ponto de vista holístico, a infecção e o resultado de uma complexidade
da qual faz parte a tentativa de recuperar a
atenção perdida e ainda necessária.
A questão da teoria modelar
e da teoria ou teorização exemplar. Acho que essas palavras adjetivantes são
boas. Há uma diferença entre se seguir um modelo (filosofia platônica,
cartesiana, kantiana) e tomar a teoria não como um modelo fixo, mas como uma
formulação advinda de uma prática clínica.
Terminarei com uma frase de
Peter Tizard que se encontra na Introdução ao livro “Os bebês e suas mães” de
Winnicott: “O Dr. Winnicott foi um bom
escritor, às vezes muito bom, outras vezes nem tanto, mas foi muito melhor como
professor e brilhante como conferencista. Para expressar suas idéias de
modo claro e vívido, precisava da proximidade de uma platéia; além
disso, tinha a capacidade de mudar de estilo e de conteúdo em função do nível
de compreensão e do humor da platéia, fosse ela constituída de uma pessoa ou de
centenas delas”(p.VIII).
Winnicott tinha alma de
aedo: mais Homero do que Platão.
Nahman Armony