ENCONTRO

                       Eu passeava descuidado 
                       Pelo Meier
                      Quando de longe
                      Avistei-te

                     Lá estavas
                     Distante
                     E no entanto
                     Nada nos separava

                    Tinhas de lá estar
                    Naquele dia
                    Naquela hora
                    Naquele momento

                    Pessoas se cruzam ao azar
                    Passam e desaparecem
                    Seus passos deixam intrincados traços
                    Por sobre os traços mais passantes
                    Passam e desparecem

                    E de repente
                    Tudo faz sentido

                    A súbita iluminação
                    De tua desconhecida pessoa
                    Revela o incompreendido

                    Eras e não eras um acaso

                    Por um momento lá estavas
                    Um momento
                    Um momen...
                    Um...
                                                         Nahman Armony

                           Primeira publicação na revista CARAS

NARCISISMO SECUNDÁRIO INCLUSIVO

        Confesso que estou a me aproveitar do tema proposto para falar de algo que me é muito caro e que venho elaborando, ora espontânea ora intencionalmente ao longo dos anos. Trabalharei para articular as nuvens de pensamentos já existentes e que se encontram em estado inconsciente de quase organização, com o conceito de narcisismo. Por mais que pareça tolo vou logo revelar aquilo que está prestes a ser linguisticamente apresentado para em seguida fazer uma articulação com o corpo teorizante psicanalítico. Pretendo manejar o conceito de narcisismo secundário para falar de uma aspiração: o sonho de uma convivência amorosa ecológica equilibradamente distributiva entre humanos e entre o ser humano e o universo. Para não parecer bobamente romântico remeto os ouvintes ao livro “A Revolução do Amor” do filósofo Luc Ferry, 1ª edição em francês em 2010 cujo último capítulo tem o título de “As revoluções da vida política: nem a gloria da nação, nem a ideia revolucionaria, mas a preocupação com o outro e as futuras gerações”. Mais recentemente escreveu o livro “Do Amor – uma filosofia para o século XXI” no qual continua elaborando suas ideias. Este filósofo defende a ideia de estarmos caminhando para um paradigma humanista que não tem a ver com ideais humanitários, mas sim com os sentimentos de amor individuais. Hoje não se morre pela pátria ou por um ideal de justiça ou de igualdade, mas se sacrifica por amor a uma pessoa querida.  
Minha intenção pois é introduzir o amor individual nas concepções psicanalíticas. Vamos ver se ela é realizável. Para isso vou me utilizar, à moda deleuziana, do pensamento de Freud e Winnicott.
O trabalho seminal de Freud sobre Narcisismo foi escrito em 1914 e antecedeu os artigos que denominou de metapsicológicos. Seu título em português na Edição Standard da Imago é “Sobre o Narcisismo: uma Introdução” e cabe bem na sua declaração de que a “intenção da série [artigos sobre metapsicologia] era proporcionar um fundamento teórico estável à psicanálise”. Embora não incluído nos “Artigos sobre metapsicologia” de 1915 sem dúvida o “Sobre o Narcisismo” é um artigo teórico fundamental assim como “Luto e Melancolia” também de 1915. Há porém outras menções ao narcisismo feitas antes e depois de 1914, não trabalhadas conceitualmente mas que examinadas retrospectivamente revelam indícios precursores de uma psicanálise contemporânea.  
Segundo Freud, o bebê ao nascer não tem um ego unitário. Seu ego “não existe como unidade” (Freud). As pulsões se apresentam dispersas, não integradas, distribuídas pelos vários órgãos do corpo.  É preciso que haja uma “uma nova ação psíquica” (Freud) para que ocorra uma confluência da libido, permitindo ao ego existir como unidade. Este ego agora unificado armazena então a totalidade da libido. Estamos aqui na vigência de um narcisismo que é batizado de primário por ainda não ter tido a vivência de uma realidade externa. Em seguida parte da libido narcísica armazenada no ego investe os objetos externos mantendo relações pseudópodas com eles. Se algo não vai bem, rompe-se a relação com a externalidade e a libido investida nos objetos retorna ao ego. A isso Freud chama de “narcisismo secundário”. O ego (1914) passa a ter um excesso de libido. O que acontece então com esta libido excessiva? Três possibilidades. Citação: “Ele pode ter desviado inteiramente o seu interesse sexual dos seres humanos; contudo pode tê-lo sublimado num interesse mais elevado pelo divino, pela natureza, ou pelo reino animal, sem que sua libido tenha sofrido introversão até suas fantasias ou retorno ao seu ego” (p.97 de “Sobre o narcisismo”.). Esta frase permite-me visualizar um núcleo de ego onde os objetos abandonados desaparecem tornando-se, por identificação primária, parte da pessoa; e uma periferia onde os objetos conservam sua identidade permitindo uma relação ego/objeto fantasiado. É um reforço do que Freud já dizia nas primeiras páginas de “Sobre o Narcisismo” referindo-se à psicose como “megalomania e desvios de seu interesse do mundo externo --- de pessoas e coisas”(p.90) e à neurose como uma “desistência” de sua relação com a realidade, mas que não “corta suas relações eróticas com as pessoas e as coisas. Ainda as retém na fantasia, isto é, ele substitui, por um lado, os objetos imaginários de sua memória por objetos reais, ou mistura os primeiros com os segundos, e, por outro, renuncia à iniciação das atividades motoras para a obtenção de seus objetivos relacionados àqueles objetos”. Um trecho deste mesmo artigo (p.91/92) me fornece uma ‘cabeça de ponte’ para o meu propósito de encontrar na psicanálise uma formulação que possibilite uma inclusão amorosa dos seres humanos e da Natureza no psiquismo de cada indivíduo permitindo que cada sujeito realize uma ecologia holística. Eis o trecho: “Assim formamos a ideia de que há uma catexia original do ego, parte da qual é transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada a catexias objetais assim como o corpo de uma ameba está relacionado com os pseudópodes que produz”. Usando a alegoria de Freud pode-se dizer que se a ameba não enviasse pseudópodes ao exterior ela permaneceria em estado de narcisismo primário; em enviando pseudopedes ela entra em contato com o mundo e se mantém em estado de narcisismo agora secundário. O que quero destacar é que não há como separar o investimento do ego (narcisismo primário) do investimento objetal que é um prolongamento do narcisismo original. E mais, para que a pessoa permaneça sadia é indispensável que ela saia de sua casca autística e se relacione com o mundo. É o que Freud nos diz: “Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em consequência da frustração, formos incapazes de amar” (“Sobre o narcisismo”, p.101). É preciso, portanto que amemos.  Mas pode-se falar do amor de muitas maneiras. Minha proposta terá seu ponto de partida no amor individualizado de Luc Ferry e será o resultado de um estado de porosidade que permite que os outros e o mundo passem a fazer parte de nós mesmos, de tal maneira que não haja diferença entre cuidar do si mesmo primitivo (antes do contato com o mundo) e o cuidar do si mesmo quando já se inclui o outro vivo ou inanimado. Aqui torna-se necessário falar de equidade, seleção e prioridades a serem levadas em consideração em uma avaliação ecológica de equilibração. Há situações mais urgentes e menos urgentes. Há partes de si mesmo mais amadas ou mais importantes que outras. Há situações de maior perigo ou de menor perigo para partes de si mesmo. Tudo isso torna complexa a avaliação ecológica e humanista e sua resultante comportamental. Mas a avaliação só acontece depois que uma abertura porosa incluiu o diferente e o estranho no psiquismo do sujeito.
Há pontos em comum entre esta concepção e concepção freudiana de narcisismo secundário. Para Freud o narcisismo secundário é um retorno da libido objetal para o ego. Minha concepção dá ênfase a um estado poroso que permite a entrada do outro, do mundo, do diferente, do estranho em nosso psiquismo. Sendo mais minucioso. Para Freud existe um narcisismo primário que é uma concentração no ego da libido narcísica. Esta libido investe objetos do mundo externo. Em algum momento os objetos externos provocarão uma frustração, uma decepção, um trauma e então a libido retorna ao ego. Ao retornar carrega consigo uma sombra do objeto. Esta libido retornante é chamada por Freud de narcisismo secundário. Minha concepção, calcada no pensamento de Winnicott, ao mesmo tempo se assemelha e se diferencia da de Freud. A ideia geral é de que se formos porosos poderemos incluir o estranho, o diferente, o outro, o mundo externo em nosso psiquismo favorecendo um narcisismo ecológico, humanista, equilibrado. Esta inclusão até certo ponto se assemelha à concepção freudiana de narcisismo secundário, caracterizada por um retorno ao ego da libido investida nos objetos “que são assim num certo sentido levados para o nosso ego” (Freud “Sobre a transitoriedade” Vol.14, p.347). Tanto na minha concepção quanto na de Freud o externo é interiorizado passando a fazer parte do sujeito. Porém em Freud tanto a assimilação do outro na zona do ego, na qual este outro desaparece passando a fazer parte da personalidade, quanto a introversão para a zona de fantasia em que não há total assimilação são considerados narcisismo secundário. Eu prefiro chamar de narcisismo secundário apenas o retorno da libido para a zona de fantasia, pois, nesse caso o outro continua individualizado; aquilo que foi assimilado deixando de ser o outro e passando a ser um si-mesmo volta, na minha concepção, à condição de narcisismo primário. Apesar das diferenças, as semelhanças me levaram a considerar a possibilidade de lhes dar o mesmo nome. (Percebo que é necessário fazer aqui uma interpolação para sustentar minha argumentação. Vou então inserir um fragmento tirado do artigo “Sobre o narcisismo: uma introdução” na esperança de melhor esclarecer as noções de narcisismo primário e de narcisismo secundário que apresento. Frase de Freud: “Ele pode ter desviado inteiramente o seu interesse sexual dos seres humanos; contudo pode tê-lo sublimado num interesse mais elevado pelo divino, pela natureza, ou pelo reino animal, sem que sua libido tenha sofrido introversão até suas fantasias ou retorno ao seu ego” (p.97). Por esta frase vemos que Freud admite a existência de uma zona egóica e de uma zona de fantasia. Na zona egóica assimila-se o outro; na zona de fantasia o outro internalizado mantém uma individualidade. Quando a libido retorna ao ego, o objeto desaparece, pois se torna parte da pessoa. Quando a libido retorna à fantasia o objeto pode ser alcançado pela consciência, pois sendo um objeto, é algo diferente de si mesmo. O si mesmo, aquilo que foi incorporado ao ego, é muito mais difícil de ser percebido do que o objeto da fantasia).
 É claro que minhas ideias se sustentariam mesmo não batizadas como narcisismo secundário. Mas, eu gostaria que elas tivessem um lugar no corpo teórico psicanalítico e essa é uma oportunidade de tentar fazer uma inclusão. Além disso, quanto mais associações forem feitas mais clara e consistente será esta forma de interpretar a noção de narcisismo secundário.
Eu contei a estória do narcisismo primário e secundário em Freud. Falta contar a estória de meu narcisismo secundário. Ela esta calcada no espírito winnicottiano, embora ---- deixarei logo explicitado --- Winnicott não use o conceito de narcisismo secundário. Mas isto será visto mais adiante se houver tempo. Vamos então à minha estória que será contada não em termos de indivíduos isolados, mas em termos de relacionamentos. O bebê nasce poroso o que lhe permite imediatamente fazer uma relação de fusão com a mãe. (Winnicott concede chamar à relação de fusão mãe-bebê de narcisismo primário). A porosidade, embora modificada, continua funcional na fase de dependência relativa, a não ser que ações castradoras venham a obturar a porosidade. Em conservando a capacidade de identificação porosa o sujeito poderá acolher o diferente e o estranho em seu psiquismo tornando-os uma parte de seu eu e consequentemente tratando-os com interesse narcísico (que posso chamar de amor). Esta é a minha concepção de narcisismo secundário.
Parêntesis: uma observação que se torna cada vez mais premente: não estou negando o ódio, a agressividade, a destrutividade existentes nas relações humanas. Mas aqui não é o lugar apropriado para estudá-los. Melhor voltarmos nossa atenção à sequência do trabalho.
Tendo examinado o meu conceito de narcisismo secundário à luz dos conceitos freudianos, farei o mesmo tendo como guia o pensamento winnicottiano.
Para mim foi surpreendente ter encontrado no livro “Winnicott e Kohut” de Carlos Nemirovsky o seguinte trecho: “Winnicott siempre fue reacio a emplear el concepto de narcisismo. Dice en 1966 que “...nunca me satisfizo el uso de la palabra narcisista [...] pues el concepto íntegro de narcisismo excluye las enormes diferencias resultantes de la actitud general y la conducta de la madre” (p. 114). Traduzindo: Winnicott sempre foi renitente em relação a empregar o conceito de narcisismo. Em 1966 ele disse que “...nunca me satisfez o uso da palavra narcisista [...] pois o conceito íntegro de narcisismo exclui as enormes diferenças resultantes da atitude geral e da conduta da mãe”. Vemos aí a diferença entre o paradigma de um eu solitário e o paradigma relacional.
Como a minha questão era dar vida e significado ao conceito de narcisismo secundário eu o procurei na obra de Winnicott. A certa altura resolvi pedir a ajuda de meu amigo Davy Bogomoletz. Por uma feliz coincidência ele está elaborando um dicionário sobre conceitos psicanalíticos e com o auxilio de Maria de Fátima de Amorim Junqueira encontrou na obra de Winnicott uma única citação de narcisismo secundário no artigo “A capacidade de estar só” que se encontra no livro “O ambiente e os processos de maturação”. Eis a citação: “Após raciocinar em termos de relações tripessoais e bipessoais é natural se considerar um estagio ainda anterior, em termos de relação unipessoal ou individual. O narcisismo seria a relação unipessoal, individual, tanto na forma precoce de narcisismo secundário como do próprio narcisismo primário. Sugiro que este salto da relação diádica à relação individual não pode, de fato, ser feito sem violação do muito que verificamos no nosso trabalho analítico e na observação direta de mães e crianças” (p.32). Analisando cuidadosamente a citação achei-a algo turva, uma obscuridade, em minha opinião, política, pois sua não utilização do conceito de narcisismo secundário contrariaria o pensamento psicanalítico de sua época. Ao falar da naturalidade do salto intelectual dado quando se pula da díade mãe-bebê para um bebê sem mãe (contrariando sua convicção de que não se pode falar de um bebê sem mãe, e, portanto, não se pode teorizar tendo como base um sujeito isolado) --- creio que ele está se referindo a uma tendência advinda de uma adesão a um paradigma causal que faz com que nos percamos no automatismo dos encadeamentos conceituais macroscópicos sem ter condições de perceber a possibilidade de uma observação mais apurada que o paradigma holístico permite. Pensar psicanaliticamente em um bebê sem mãe pertence a um paradigma cientificista, a uma episteme causal cartesiana que Winnicott está abandonando em favor de um paradigma holístico.
Mas se Winnicott não aceita o uso do conceito de narcisismo secundário teria eu alguma possibilidade de vinculá-lo ao pensamento winnicottiano? Acredito que sim e é o que vou tentar fazer. Começarei dizendo que Winnicott para usar o conceito de narcisismo primário de Freud teve de inserir nele um vírus holístico: a relação mãe-bebê. Enquanto Freud fala de um narcisismo primário solipsista ---- visto da perspectiva do indivíduo isolado em um sistema fechado ---- Winnicott fala de um bebê aberto ao psiquessoma da mãe e por ela sustentado. É um bebê cuja porosidade lhe permite fazer uma relação de fusão com a mãe. POROSIDADE. Esta é a palavra-virus. Assim como Winnicott se valeu da palavra-vírus MÃE para enriquecer o conceito de narcisismo primário freudiano usarei a palavra-vírus POROSIDADE para incluir a expressão narcisismo secundário que Winnicott não usa, na psicanálise de inspiração winnicottiana. A ideia geral é a seguinte: o recém-nascido tem uma porosidade própria da fase de dependência absoluta que se passa no estado de narcisismo primário. Isto significa que o bebê não tem consciência do não-eu. Sua porosidade lhe serve para uma relação íntima com a mãe que é vivida como parte dele. Vou trazer duas citações de Winnicott sobre narcisismo primário para então falar do narcisismo secundário. Citando Winnicott: “Nos estágios mais iniciais, encontramos uma total fusão do indivíduo ao seu ambiente, descrita pela expressão narcisismo primário” (Natureza Humana, p. 177)... “Anteriormente a tudo isto há o estagio do narcisismo primário, o estado no qual percebemos como sendo o ambiente do bebê e o que percebemos como sendo o bebê constituem, de fato, uma unidade. Aqui pode ser utilizada a desajeitada expressão ‘conjunto ambiente-indivíduo’. O ambiente, tal como o conhecemos, não precisa ser mencionado, porque o individuo não tem meios de percebê-lo, e na verdade o indivíduo não se encontra ali, ainda não está separado do aspecto ambiental da unidade total” (Idem, p.178/9).
O bebê da fase de fusão, exercendo uma porosidade própria da dependência absoluta, não se distingue do ambiente (a mãe é parte fundamental do ambiente). Quando a mãe começa a falhar, introduzindo a fase de dependência relativa, o bebê sente ameaçada sua continuidade de existência. Ele se depara com o abismo da desintegração e dela se defende dando um passo em direção à maturidade através da criação do objeto transicional (símbolo de 1º grau) e do desenvolvimento da mente, isto é, do intelecto. Evidentemente, com este passo adiante muda o tipo de porosidade, pois ele agora está lidando com situações frustradoras externas que afetam sua experiência de onipotência, e fazem aparecer as dualidades amor/ódio e eu----não-eu. A consciência do mundo externo faz com que ao narcisismo se acrescente um narcisismo secundário. Sua porosidade torna-se seletiva internalizando o bom objeto sintônico ao self e rejeitando o mau diferente agressivo. Será necessário um tempo de maturação, com passagem pelo concern, para que ele possa se utilizar da bondade e do amor vividos com a mãe abrindo-se ao diferente agressivo e aceitando-o como parte de si mesmo.
No narcisismo primário não há escolha. Sua porosidade é absoluta e não lhe é possível rejeitar os aspectos tóxicos de um ambiente, mesmo porque não tendo consciência do ambiente, este é parte dele. Já no narcisismo secundário existe a percepção do mundo externo, da diferenciação eu-outro e uma possibilidade seletiva que poderá ir se alargando, acompanhando o amadurecimento individual. Poderemos então pensar em um tempo utópico em que todos os seres seriam internalizados e tratados com amor narcísico. Daí o título de narcisismo secundário inclusivo. Penso em uma equilibração ecológica/humanista/holística da qual já falei quando na parte freudiana deste artigo. O conceito de narcisismo secundário nos ajudaria a compreender os acontecimentos e a teorizá-los  tendo em mente a ideia de uma internalização abrangente sem desaparecimento de identidade dos seres internalizados.   
                                                          Junho/2014
                                                                                                          Nahman Armony




AVENTURA E ESTABILIDADE NAS RELAÇÕES AMOROSAS


       Tenho frequentemente me deparado com a seguinte configuração: um rapaz e uma moça sentem-se mutuamente atraídos e começam a se encontrar. Desde o início afirmam que querem uma relação “aberta” em que ambos seriam independentes, tendo a liberdade de estar juntos ou separados de acordo com o desejo e a vontade de cada um. Quando os encontros são crescentemente agradáveis e estimulantes cria-se um laço cada vez mais forte e o desejo que predomina é ficarem juntos a maior parte do tempo. Desenvolve-se uma intensa paixão sexual que funciona como imã de grande força atrativa. Finalmente a situação de fato é o casal namorando, com todas as significações dessa palavra, inclusive o desenvolvimento de um sentimento suave de propriedade negado por ambos, pois eles se consideram pessoas livres que não querem se amarrar. Estão de fato namorando, mas não querem usar a palavra, pois ela implica em compromisso. Porém o sentimento de propriedade próprio da situação de namoro acaba por se revelar através de atos falhos, provocando conflito e ansiedade mais frequentes e fortes no rapaz que luta contra seu próprio desejo de segurança.
De uma maneira geral os jovens estão pululando de desejos múltiplos, contraditórios, paradoxais. Desejam ao mesmo tempo aventura e segurança. A nomeação de uma relação amorosa como “namoro” está na direção da segurança e provoca o receio de “ficar amarrado”. A não nomeação da relação amorosa dá um maior sentimento de liberdade, mas provoca insegurança quanto à continuidade da relação. Mais rapidamente o sexo feminino opta pela segurança, alegrando-se com a formalização da relação, pois com ela conquistam um maior sentimento de estabilidade enquanto os rapazes resistem denodadamente ao seu próprio desejo de estabilidade assustando-se com qualquer coisa que cheire a compromisso, a possessão.  Apegam-se ao desejo de liberdade negando vigorosamente o desejo de segurança. Esta é uma situação que encontramos ao longo da História. O Homem com tendências mais poligâmicas que monogâmicas e a Mulher mais monogâmicas que poligâmicas. No século 19 e em grande parte do século 19 e 20 o homem desfrutava tanto da segurança através do casamento com uma mulher “do lar” submissa, quanto da aventura nos discretos encontros com amantes e “damas da noite”. A mulher, mesmo sofrendo com essa situação se calava, pois dependia do casamento para a sua sobrevivência física e social. Com a independentização da mulher essa situação mudou. Sua situação econômica e seu status social igualam-na ao homem dando-lhe poder e voz na relação amorosa. Mas permanece uma diferença atávica entre os sexos masculino e feminino que vai para além das convenções sociais. Desenvolvendo: inicialmente o desejo de liberdade predomina nos jovens de ambos os sexos estabelecendo-se relações livres de qualquer compromisso. O desejo de estabilidade surge após algum tempo de relação trazido com mais força pela mulher, o que cria conflitos, pois o homem apega-se por mais tempo ao polo da liberdade/aventura só mais tarde se dobrando ao desejo de estabilidade. Mas trata-se de uma questão de tempo para que os desejos convirjam em direção à segurança. Se não houver nenhum acidente de caminho as relações caminharão para a formação de pares amorosos designadamente comprometidos e gentilmente, disfarçadamente, e pelo menos levemente possessivos.

                                                                Nahman Armony
Primeira publicação na Revista CARAS.