Winnicott
é um extraordinário humanista que busca o melhor do ser humano, sem negar suas
tendências e ações destrutivas. Sempre procura o que há de positivo e,
portanto, de potencialmente redentor no Homem. A reviravolta que sua concepção
de ato antissocial provoca no arraigado pensamento tradicional sobre o mal radical
(Kant) e sobre a pulsão de morte (Freud) é bem um testemunho desta afirmação.
Não posso deixar de colocar aqui minha admiração sobre sua inventividade,
capacidade de percepção, descolamento do instituído, e coragem de expor uma proposição
que desafia um pensamento axiomático milenar.
Na sua filosofia humanista ele procura,
mesmo no mais sombrio do ser humano, o seu melhor, a sua possibilidade de
redenção. Isto o torna mais sensível aos aspectos positivos do ser humano possibilitando-lhe
criar formulações que surpreendem e desafiam o status quo. Por vezes a sua
intuição se afasta tanto do convencional, é tão estranha, tão E.T que sequer é
levada em consideração, passando despercebida. É verdade que tempos depois, com
as transformações históricas da subjetividade, a comunidade psicanalítica se dá
conta do imenso valor psicanalítico, social e filosófico de seus achados. Hoje
já se fala deles com uma facilidade que denotaria uma ultrapassagem da ideia de
mal inato. O verbo denotar está no condicional pois uma parte expressiva da
comunidade psicanalítica, significativa pelo número e pela importância teórica,
mantém o conceito de pulsão de morte. E é bom que assim seja para se poder
contar com mais uma perspectiva que nos ajude a compreender a enorme
complexidade do psiquismo humano. Acredito que muitos colegas psicanalistas se
depararam com situações em que o conceito de pulsão de morte surgiu
espontaneamente como organizador daquelas situações. Não acho que duas teorias
aparentemente opostas tenham de se anular: para sair do que seria um impasse da
lógica cartesiana a filosofia usa o conceito de paradoxo. E aqui cabe a ideia
de paradoxo. O conceito de pulsão de morte tanto organiza o pensamento quanto o
atropela. Depende de como se apresenta o campo intersubjetivo.
Quando falei do valor psicanalítico das
concepções winnicottianas estava pensando nos benefícios que uma nova e amorosa atitude
pessoal proporciona. A má conduta, seja o roubo, a agressão a destrutividade, é
geralmente vista como uma maldade inata sem origem e sem motivação; uma
situação irremediável que provoca medo e retira o transgressor das trocas
humanas, isolando-o afetivamente. É como se sua “maldade” pudesse se manifestar
a qualquer momento sendo preciso então evitá-lo, isolá-lo. Não haveria nada de
humano na sua “maldade” o que o tornaria diferente das demais pessoas. Pois
bem, Winnicott, com sua acuidade desfaz esta fábula. O ato antissocial é
consequência de desilusões excessivas (x+y+z) de um bebê ou de uma criança que
na fase de dependência absoluta foram bem cuidados e que sofrem um excesso de
frustração na fase de dependência relativa. Com o ato antissocial procura
chamar a atenção dos pais tentando recuperar o status anterior. (Respondendo a
uma mãe que já não sabia mais o que fazer com um filho que roubava
compulsivamente aconselha: “Por que você não lhe diz que sabe que, quando ele
rouba, não são realmente aquelas coisas que ele quer, e sim alguma outra coisa
à qual ele acha que tem direito? Que é como se ele estivesse fazendo uma
reclamação a seu pai e sua mãe, por sentir a falta de seu amor?”-p.407 – “Da
Pediatria à Psicanálise”).
Ao mesmo tempo o ato
antissocial pode ser uma vingança da criança ao que ele sente como uma perda
injusta. Este comportamento só difere em espetaculosidade daquilo que acontece
com praticamente todos os seres humanos de todas as idades que em resposta a um
comportamento insensível retaliam com atos de pouco relevância, em nada
espetaculosos, mas que pretendem atingir a sensibilidade do parceiro sem chegar
a um nível que possa ser chamado de agressão: algum esquecimento, alguma frase
ambígua, alguma interferência nos hábitos do companheiro produzem um efeito de desagravo.
São atos antissociais que, embora irritantes, não causam maiores transtornos
fazendo mesmo parte da rotina das relações humanas. Não há portanto uma
diferença essencial entre o homem comum e aquele que vindo de uma linhagem que
começa no ato antissocial doméstico, continua-se no ato antissocial ostentoso e
repetitivo tanto no lar como fora dele, quando então a criança recebe o epíteto
de desajustada. O passo seguinte é a delinquência e finalmente chega-se à
psicopatia. É possível que atos criminosos tenham também outras origens; isto
porém não tira o valor da intuição de Winnicott que se atém à linhagem que
começa nos atos antissociais.
Resta falar de uma
questão que, se não esclarecida, pode causar confusão. Refiro-me ao seu
conceito de destrutividade inata que aparentemente é o equivalente winnicottiano da pulsão de morte. Mas não é. A
destrutividade winnicottiana não existe independente do amor, pois “é parte do
amor primitivo, que devora (e assim destrói). Tem como consequência (se não há
retaliação) destruir o objeto subjetivo e perceber, no objeto do mundo externo,
algo dotado de vida própria que, afinal, pode ser utilizado” (“Natureza
Humana”, p. 81, nota de rodapé). Trata-se, pois, de uma destrutividade
necessária à percepção da existência de um mundo externo e portanto necessária
à vida. Já para Freud a pulsão de morte é definida como uma tendência a voltar
para o inanimado e é oposta à pulsão de vida que é a tendência à
complexificação. A pulsão de morte não está acoplada à pulsão de vida o que a
diferencia da destrutividade winnicottiana amalgamada ao amor e com a função de
preservar a vida. Não é preciso lembrar que Freud considera a agressividade e a
destrutividade como uma deflexão do instinto de morte, que se volta para fora a
fim de preservar o organismo. Ana Lila Lejarraga, no final de seu esclarecedor
artigo “Agressividade em Freud e Winnicott” escreve: “Em Winnicott a noção que
não teria como alvo desfazer unidades ou desligar laços. Além do mais, na sua
visão, a destrutividade não constitui uma tendência o principio que se oponha
ao potencial erótico. Em Freud, Eros e Tanatos opõem-se entre si, lutando como
dois poderosos ‘inimigos imortais’ (FREUD, 1930/1988, p.140), e fortalecendo-se
um a expensas do outro. Em Winnicott, a destrutividade e o potencial erótico
são, de alguma forma complementares, já que é pela via da destrutividade que se
chega ao reconhecimento da externalidade do objeto, condição para amá-lo. Por
outro lado, como foi explicitado, a destrutividade originaria winnicottiana
soadquire sentido e pode ser concebida em relação ao ambiente”. Lejarraga
escreve mais um parágrafo em que ela aproxima Freud de Winnicott considerando
que em ambos a destrutividade decorrem de falha humana. Mas a minha questão não
é cotejar as teorias de Winnicott e Freud mas sim, chamar a atenção para a
força conceitual da expressão “tendência antissocial” e as qualidades humanas
que permitiram a Winnicott inventar tal expressão. Refiro-me ao seu humanismo,
sua coragem, sua inventividade, sua aguda penetração psicológica, sua
independência. E, finalmente, não quero deixar de mencionar (out of the paper)
uma sua outra importante qualidade: seu espírito conciliador.
Nahman
Armony