No
meu livro “Borderline: uma outra normalidade” tentei delinear a figura do
borderline normal, uma invenção minha que desenvolvi mais na 2ª edição. Indo
adiante em meu pensamento e diante das constantes transformações da
subjetividade humana pude percorrer um caminho já há tempos almejado por mim: vincular o borderline normal à teorização
winnicottiana o que realizei fazendo emergir o nome de Homem Transicional já
insinuado por Winnicott no texto “O Lugar em que vivemos”.
Meu método será começar pelas
noções apresentadas na primeira edição de meu livro “Borderline: uma outra
normalidade” para em seguida acrescentar os novos desenvolvimentos. Iniciarei
pela citação que faço do livro de Grinker de 1968. Este autor admite quatro níveis de
borderline: “Grupo 1- O borderline
psicótico – comportamento inapropriado e não adaptado. Deficiente senso de
identidade e de realidade. Comportamento negativo e raivoso em relação às
pessoas. Depressão. Grupo 2- O borderline nuclear – Envolvimento flutuante com
outros. Expressões abertas e atuadas de raiva. Depressão. Ausência de
indicações de um self consistente. Grupo 3 – Personalidades ‘como se’ –
comportamento adaptado e apropriado. Relações complementares. Pouca
espontaneidade e afeto em resposta a situações. Defesas: afastamento e
intelectualização. Grupo 4- O borderline neurótico – Depressão anaclítica
(semelhante à da infância). Ansiedade. Semelhança com caráter narcisista
neurótico”. Pautado por essa sistematização distingui nesse
conjunto humano três níveis: borderline pesado (patológico), borderline
falso-self e borderline brando (próximo da normalidade). Interessa-me neste
momento trazer para vocês a figura do borderline normal. Entre os primeiros
introdutores desta idéia estão os psicanalistas Bergeret, Bleger e Winnicott.
1-
Bergeret- “existem tantos termos de passagem entre ‘normalidade’ e psicose
descompensada no seio da linhagem estrutural psicótica fixa, quanto entre
‘normalidade’ e neurose descompensada, no seio da linhagem estrutural neurótica
fixa (...) A noção de ‘normalidade’ estaria, assim, reservada a um estado de
adequação funcional feliz, unicamente no seio de uma estrutura fixa, seja esta
neurótica ou psicótica, sendo que a patologia corresponderia a uma ruptura do
equilíbrio dentro de uma mesma linhagem estrutural”. BERGERET, 1991, p.
28/9. Bergeret
considera a estrutura psicótica superior à estrutura neurótica: “Pode-se ser ‘normal’ sem haver atingido o
nível edipiano, com a condição de haver realizado uma verdadeira estrutura;
contudo a estrutura do tipo edipiano deve, da mesma forma, ser disposta em um
nível elaborativo superior ao da organização estrutural psicótica”. Ibidem,
p. 43.
2-
Bleger- A leitura de Bleger (“Simbiose
e ambigüidade”) permite igualar o que ele chama de “personalidade ambígua” com
o que em geral chamado de borderline. É o que vemos na citação que se segue: “ ... a
personalidade ambígua, rigorosamente falando,
não carece de ego nem de sentido de realidade; ela possui um outro tipo
de ego e outro sentido de realidade. Disto se deduz que a onipotência (por
exemplo) que caracteriza a personalidade ambígua e a primitiva organização sincrética,
não constitui uma falta de sentido de realidade (em seu significado
convencional), mas sim configura uma relação distinta e um manejo diferente da
realidade, que ainda pode ser bem-sucedido para o sujeito. Neste sentido, a
onipotência da ambigüidade primitiva não é uma defesa frente à realidade, como
um escape frente à mesma, mas uma forma distinta de estruturá-la e manejá-la, o
que não exclui que possa servir como defesa por meio da regressão. O eu da
personalidade ambígua é sumamente cambiante e não se acha interiorizado como um
eu definido ou cristalizado”.
3-
Winnicott- “Os psicanalistas experientes
concordariam em que há uma gradação da normalidade não somente no sentido da
neurose mas também da psicose, e que a relação íntima entre depressão e
normalidade já foi ressaltada. Pode ser verdade que há um elo mais íntimo entre
normalidade e psicose do que entre normalidade e neurose; isto é, em certos
aspectos. Por exemplo, o artista tem a habilidade e a coragem de estar em
contacto com os processos primitivos aos quais o neurótico não tolera chegar, e
que as pessoas sadias podem deixar passar para o seu próprio empobrecimento”.
Após um levantamento e estudo intensivo equiparei, já no
último capítulo da 1ª edição, o borderline brando (“normal”) ao homem
pós-moderno da sociologia: “O processo de superposição de rostos
humanos, inventado por Galton, cuja resultante é um rosto único, é uma boa
metáfora da fusão do borderline brando com o homem pós-moderno da sociologia. A
figura resultante é lúdica, curiosa, transgressora, vive um descontrole
controlado das emoções, valoriza as experiências afetivas, as sensações
imediatas. Usa o corpo, a mente, o movimento, a emoção para pensar. Sujeita a
identificações transitórias, sua identidade é fluida, móvel, elástica.
Comunica-se, relaciona-se e conhece sem mediações. Acossada pelas intensidades,
impelida à ação, tenta realizar suas fantasias infantis no social, sobrepondo
fantasia e realidade. Tende a esgotar suas emoções, busca o alargamento do eu,
explora novas possibilidades indo à procura do inédito. Preserva o frescor
infantil, a curiosidade, o interesse, a multiplicidade, a busca de prazer, a
construção e expansão de si mesmo. A vida passa a ser uma arte. A porosidade de
suas fronteiras promove uma variante ética na qual o outro e o mundo ficam
incluídos no campo narcísico. Este homem, tendo preservado ou readquirido sua
aptidão empática e sua capacidade para a identificação dual-porosa, mantém uma
liberdade, flexibilidade e rapidez de deslocamento que lhe permite acompanhar a
velocidade adquirida pelos acontecimentos na civilização pós-industrial. A aceleração crescente das modificações
técnicas, culturais, sociais e econômicas tem, justamente, sua resposta na
flexibilização das mentalidades, na capacidade para a apreensão do novo, na
coragem em abandonar convicções e posições anteriores, na possibilidade de
embarcar no embalo dos acontecimentos. O modo borderline de existência coloca o
homem na dimensão do desafio da velocidade, da inconsistência e inconstância da
pós-modernidade”.
Reconheço, ao reler o que escrevi
há mais de uma década haver uma certa glorificação do borderline que beira o
exagero. Minha desculpa é que eu estava na ocasião ressaltando os aspectos
positivos do borderline brando, pois estávamos então mergulhados numa
depreciação do modo de vida borderline, não só o patológico, como também o
brando transgressor, singular, diferente. Vou dar um exemplo deste tipo de
borderline com seus prazeres, realizações,
dificuldades e sofrimentos.
Ex. de borderline brando:
Paula- vive um estado de agitação constante interrompido por
períodos de exaustão quando descansa e dorme, o que a recupera. Seu estado de
agitação é usado produtivamente no trabalho e na diversão. Está disponível para
relações dual-porosas envolvendo-se intensamente com os acontecimentos
externos, com histórias ficcionais e não-ficcionais das pessoas, com as
vitórias, fracassos, prazeres e dores de seus amigos que são muitos, de vários
graus. Com isso vive grandes alegrias e grandes sofrimentos de uma maneira quase
tão intensa quanto vive suas próprias derrotas e triunfos. Diante de situações
inusitadas e chocantes fica paralisada, sem reação, sem conseguir articular
pensamentos e, embora raramente, com distúrbios de identidade (certa vez
esqueceu o próprio nome numa situação altamente estressante). É uma pessoa bondosa,
sem ressentimentos. Sempre que pode ajuda quem está à sua volta mesmo que tenha
de se sacrificar pessoalmente. Mas isto tem um limite, pois seu instinto de
sobrevivência é poderoso sendo capaz de fortes atos defensivos/agressivos.
Muito susceptível facilmente sente-se atacada e ridicularizada; quando não se
paralisa descarrega (desde que haja segurança) sua raiva no momento da situação
ou, mais freqüentemente após, em ambiente protegido. Em pouco tempo recupera-se
das feridas narcísicas restabelecendo relações duais-porosas. Faz também relações
de amor/ódio com objetos inanimados. Exp.: Seu carro, individualizado e
humanizado por um nome próprio, e amado como se fosse um ser humano, certa vez
enguiçou em um momento em que dele precisava para resolver questões urgentes.
Ela o tratou como um amigo que a tivesse traído, socando-o, chorando e gritando
a pergunta “por que você está fazendo isto comigo?” Após descarregar os
sentimentos gerados pela sensação de decepção pôde tomar as providências objetivas
que a situação requeria. É impulsiva o que a faz agir com alguma freqüência, de
forma inadequada, mas é capaz de imediatamente corrigir a conseqüência de sua
impulsividade restabelecendo uma boa relação com a realidade. Quando em
situações de grande desejo ou sentidas como de grande perigo, tem diminuída sua
capacidade de usar o pensamento objetivo.
Um bom exemplo
desta perturbação de sua relação com a realidade objetiva aconteceu em um vôo
em zona de trepidação. Ela, com toda calma e como se fosse a coisa mais natural
do mundo chamou a comissária de bordo e muito seriamente pediu para falar com o
piloto, pois queria orientá-lo no sentido de evitar a zona de trepidação.
Passado o perigo ela se deu conta do absurdo de seu ato, e pôde rir dele. Embora
o desejo, o medo e fortes convicções façam com que as idéias subjetivamente
concebidas imperem por períodos variáveis de tempo, elas acabam se integrando numa
visão objetivamente percebida. Com isso o seu trabalho é ousado, imaginativo,
original, fecundo, estimulante e bem-sucedido. Um trabalho que de início pode
facilmente ser criticado e mesmo ridicularizado, mas que acaba por se impor por
sua eficiência pragmática. É um trabalho amoroso que leva em consideração os
aspectos subjetivos do humano. Um trabalho claramente realizado em um espaço
potencial e que acabou por lhe valer um reconhecimento expresso em prestígio,
homenagens e convites para trabalhos de excelência. Sofre bastante com as
somatizações e frustrações decorrentes de suas relações pessoais. Uma de suas
muitas alegrias é ser muito solicitada como profissional e como amiga.
Este exemplo já
não está no meu livro. E o que se segue tem muito de desenvolvimento, refinamento e inovação.
SUBJETIVIDADE
NEURÓTICA E SUBJETIVIDADE BORDERLINE
Um primeiro refinamento: haveria uma
subjetividade neurótica apropriada à modernidade vitoriana e uma subjetividade
borderline solidária à pós-modernidade (também chamada de modernidade líquida
por Bauman e de hipermodernidade por Lipovetsky).
ALICERCES
DAS SUBJETIVIDADES NEURÓTICA E BORDERLINE
A
SUBJETIVIDADE NEURÓTICA tem como seu principal sustentáculo o recalque. Comporta
desde o neurótico grave necessitado de tratamento até o neurótico “normal”. Podemos
ler isto em Freud: “Não
podemos negar que também as pessoas sadias possuem, em sua vida mental, aquilo
que, por si só, possibilita a formação tanto dos sonhos como dos sintomas; e devemos concluir que também elas efetuaram repressões,
que despendem determinada quantidade de energia a fim de mantê-las, que seu
sistema inconsciente oculta impulsos reprimidos ainda catexizado com energia, e
que uma parte de sua libido é retirada e deixa de estar à disposição do ego.
Assim, também uma pessoa sadia é virtualmente um
neurótico; mas os sonhos parecem ser os únicos sintomas que ela é capaz
de formar. É verdade que, se alguém submete a um exame mais atento sua vida
desperta, descobre algo que contradiz essa aparência – ou seja, que essa vida pretensamente sadia está marcada aqui e ali por
grande número de sintomas banais e destituídos de importância prática”. (p.532/3
do vol. XVI).
Freud nos diz
não só que a normalidade é uma neurose branda, mas também que o dinamismo
constitutivo desta neurose branda é o recalque. Uma outra citação abonará esta
afirmação: “A
análise, contudo, capacita o ego, que atingiu maior maturidade e força, a
empreender uma revisão dessas antigas repressões; algumas são demolidas, ao
passo que outras são identificadas, mas construídas de novo, a partir de um
material mais sólido. O grau de firmeza dessas novas represas é bastante
diferente do das anteriores; podemos confiar em que não cederão facilmente ante
uma maré ascendente da força instintual. Dessa maneira, a façanha real da
terapia analítica seria a subseqüente correção do processo original de
repressão, correção que põe fim à dominância do fator quantitativo”(p.259/260
do vol. XXIII – Edição Standard da Imago, 1975).
Da mesma maneira a subjetividade borderline abrange
a gama que vai do borderline próximo da psicose --- borderline pesado ---- até
o borderline próximo da normalidade ----- borderline leve. A subjetividade
neurótica tem como seu principal sustentáculo o processo psíquico do recalque. Em
sua genealogia encontramos a forte influência da repressão exercida pela
sociedade sobre os impulsos afetivos. O resultado é uma tendência à uniformização
dos seres humanos dentro de um modelo de conduta convencional. A principal
repressão era exercida sobre a pulsão sexual, um dos mais fortes impulsos do
ser humano, que uma vez recalcada, tornada inconsciente e impedida de se
manifestar, retornava à consciência (retorno do recalcado) disfarçada de
sintomas causando desconforto no neurótico normal e sofrimento no neurótico grave.
O desconforto do neurótico normal pode vir a ser administrado de modo a não
impedir o trabalho fecundo, o amor, o prazer, o usufruto da vida, enquanto que
o sofrimento do neurótico grave dificulta-lhe o viver prazeroso e produtivo.
A SUBJETIVIDADE BORDERLINE tem como um de seus suportes
o processo psíquico de cisão. Em contraste com o recalque que transfere os
desejos para o inconsciente para não mais tomar conhecimento deles, a cisão os
mantêm lado a lado mesmo quando incompatíveis ficando, portanto imediatamente
acessíveis à consciência. A “onipotência mitigada” é outro suporte do
borderline. Como esta expressão não se encontra na literatura psicanalítica (ao
que eu saiba ela foi criada por mim) vou expô-la mais extensamente. Ela surgiu
da observação de um comportamento onipotente do borderline que não desafia
propriamente a realidade, mas aprende a driblá-la, manipulá-la, enganá-la,
mantendo assim seu sentimento de onipotência. Para melhor explicá-la irei às
suas origens. Winnicott fala de uma experiência de onipotência irrestrita na
fase de dependência absoluta. Uma experiência que é também um sentimento. O
bebê é o criador do mundo. Quando na fase de dependência relativa descobre a
existência do não-eu, sua onipotência sofre um revés. Mas não deixa de existir.
Adquire uma forma que chamei de onipotência mitigada. A criança ou o bebê, na
fase de dependência relativa, tem o poder de até certo ponto conseguir da mãe o
que almeja; uma insistência e persistência criativas acabam por dobrar a mãe
que então cede ao desejo de seu pimpolho. É uma experiência de onipotência
mitigada que reforça o sentimento de onipotência. Daí a pertinácia borderline
diante do aparentemente impossível. Ele sente-se capaz de dominar o mundo. As
experiências de fracasso e vitória que levam o neurótico a recalcar o
sentimento de onipotência, saindo do ciclo “ou tudo ou nada”, adquirindo uma
capacidade social e profissional competentes que chamamos de “potência” têm
outro efeito no borderline: em seu processo de divisão ora se sente onipotente quando
vitorioso, ora impotente quando fracassado. Não tendo reprimido os sentimentos
de onipotência/impotência vive no ciclo exaltação/depressão. O fracasso não faz
desaparecer o sentimento de onipotência que em algum momento retorna e tenta
mais uma vez realizar-se no concreto. O que muitas vezes acontece fazendo do
borderline uma força transformadora.
Outro
elemento constitutivo da personalidade borderline é a porosidade. Enquanto no
homem edípico existem barreiras que dificultam a percepção do inconsciente
próprio e alheio, pessoal e social, fechando a porta para a entrada/saída das
fantasias, dos afetos e para a comunicação intersubjetiva, o borderline com sua
dual-porosidade deixa entrar em seu psiquismo e dele saírem afetos e fantasias;
ele não só se deixa penetrar pela atmosfera subjetiva que o rodeia como com ela
interage o que o integra à corrente dos acontecimentos. Ele influi no e
é influído pelo caminhar das histórias que formam a História.
ASPECTOS
ANTROPOLÓGICOS E FENOMENOLÓGICOS
1- Normalidade neurótica- A sociedade vitoriana era uma sociedade
notadamente repressiva. As empresas desse período necessitando acumular capital
não instigavam o consumo compulsivo. Segundo Foucault a disciplina reinava
onipresente desde os primeiros dias de vida. A acumulação, a ascese, a renúncia
aos prazeres, a moderação, eram estimuladas. A educação era repressiva. Na casa
e na escola valorizava-se o regramento, o dever, a decoreba, o bom
comportamento. A criança era cumpridora de obrigações. Qualquer desvio das
normas era punido. As empresas procuravam funcionários focados, dedicados a uma
área restrita do trabalho, “certinhos”, disciplinados, cumpridores de deveres,
assíduos, burocráticos, devotados à firma que, em contrapartida, lhes oferecia
segurança e generosa aposentadoria. O homem vitoriano ideal era educado,
formal, comedido, correto, disciplinado, cumpridor de suas obrigações, honesto,
íntegro, retilíneo em sua trajetória de vida, confiável, honrado. Um
cavalheiro, um gentleman. Ordem,
dever, organização, controle, disciplina eram os preceitos a serem seguidos.
Dedicava sua vida à tarefa de crescer lenta e seguramente dentro da atividade
e/ou empresa escolhida. As regras eram estritas e aquele que as seguia era
valorizado e recompensado. A sexualidade, o feminino, os sentimentos de
fraqueza, dor, tristeza, a espontaneidade, a empatia e a capacidade de
identificação eram desvalorizados, reprimidos, recalcados e confinados ao
universo da mulher. O recalque provocava um empobrecimento da vida afetiva.
Normalidade e
patologia borderline- A normalidade perfeita é sempre um ideal impossível, pois
não se conhecem homens sem traços neuróticos, já que aquilo que produz neurose compõe
a personalidade, nem homens sem traços psicóticos, pois a criatividade,
intuição e comunicação não verbal bebem na mesma fonte da psicose. Winnicott
destaca a valor da inquietude borderline em confronto com a placidez alheada da
neurose normal. Citação:
“Para nós é de suma importância reconhecer
que a ausência de doença psiconeurótica pode ser saúde, mas não é vida. Os
pacientes psicóticos que pairam permanentemente entre o viver e o não viver
forçam-nos a encarar esse problema, problema que realmente é próprio, não dos
psiconeuróticos, mas de todos os seres humanos”. (Winnicott, 1967b, p.139).
Direi
simplificadamente, que o perigo da neurose está no empobrecimento da
personalidade e o do borderline criativo, na inadequação, dispersão e
fragmentação. A priorização da linha normalidade-psicose, e, portanto, do
borderline, fará com que o analista tenha uma atitude terapêutica diferente
daquele que prioriza a linha normalidade-neurose. Na normalidade borderline o
não verbal ganhará presença encaminhando o sujeito para a manutenção da
disponibilidade e capacidade para a identificação, uma das insinuâncias dos
analistas dessa linha. Ainda hoje há bastante controvérsia sobre o que seja um
borderline. Não estou aqui falando do borderline brando, mas do borderline patológico
do qual falam os autores psicanalíticos. Como acontece com quase todos os
termos da psicanálise, borderline é também uma palavra polissêmica, permitindo
diversas visões, que, de alguma maneira, se aproximam e se suplementam.
Tentando fazer uma síntese delas direi que o borderline pesado (ou patológico)
é polissintomático, ambulatório, necessitando eventualmente de internação, com
dificuldades na área afetiva das relações interpessoais por suas susceptibilidades
narcísicas exacerbadas. No processo psíquico do neurótico o dinamismo dominante
é o recalque; o correspondente no borderline é a divisão sendo que no
borderline mais grave pode chegar ao nível da dissociação. A tendência a
atuação é outra característica do borderline que na patologia mais séria
apresenta-se como impulsividade descontrolada. Apresenta também problemas na
área da identificação e identidade. Necessita de uma circunvizinhança humana
para atuar e pacificar os seus fantasmas. Apresenta ainda: labilidade de humor,
tendência a uma exacerbada dependência afetiva muitas vezes negada
reativamente, uma extrema sensibilidade e susceptibilidade. É incomumente
permeável ao próprio inconsciente, ao inconsciente do outro e à subjetividade circulante.
Confunde suas necessidades com o desejo do outro: excesso de identificação
projetiva. Desaparecimento de suas necessidades diante das demandas do outro:
excesso de identificação introjetiva. Dificuldade de
contenção dos sentimentos e pensamentos pressiona o borderline para uma atuação
imediata. Para Grotstein o borderline caracteriza-se por sua inabilidade em
disfarçar suas tendências psicóticas e seu subjacente primitivismo sob
condições não estruturadas. Para Kernberg caracteriza-se por uma divisão
defensiva (não primária) e para Bergeret por uma anaclise (adesividade)
proveniente da depressão.
Se peneirarmos
o borderline acima de modo a obtermos a farinha depurada do borderline brando,
encontraremos a tendência à atuação, a necessidade afetivo/dinâmica de uma
circunvizinhança humana para nela atuar seus fantasmas e realizar seus desejos
infantis, o uso da divisão/compartimentação e da onipotência mitigada de forma
não incompatível com a tolerância social, a extrema sensibilidade, a incomum
permeabilidade ao próprio inconsciente, ao inconsciente do outro e à
subjetividade circulante; tal permeabilidade permite-lhe identificar-se
continuamente, em devir, com o que o rodeia. A essa identificação dei o nome de
“identificação dual-porosa”, “identificação transital” (em trânsito),
“identificação contínua”, e, posso agora acrescentar, “identificação em devir”.
O borderline brando tende mais à multiplicidade do que ao polissintomático, o
que significa que não inibe os vários aspectos de sua criatividade em favor de
um único aspecto, mantendo as suas várias capacidades disponíveis para serem
usadas. No que diz respeito à sensibilidade/susceptibilidade narcísica ela
apresenta-se menos como uma ferida e mais como um instrumento de conhecimento do
outro; a permeabilidade das fronteiras do eu, que poderia torná-lo vulnerável
às afetações do outro se mantém como sensibilidade que permite conhecer o
outro, propiciando o desenvolvimento de afetos e sentimentos pertinentes à
relação em curso. Assim, ao invés de um fechamento nas próprias fantasias, há
uma abertura para o conhecimento das fantasias do outro. A permeabilidade das
fronteiras, que no borderline pesado pode ser usada contra o outro ou pode dar
lugar a um excesso de identificação projetiva e introjetiva, no borderline
brando muda de qualidade, transformando-se em identificação dual-porosa, uma
identificação que permite um regime de trocas fantasmáticas e afetivas
contínuas entre os seres humanos entre si e com o mundo que o rodeia. A
porosidade tanto funciona em relação a um outro humano, à cultura, à natureza,
ao planeta, quanto ao mundo interno, isto é, na percepção do próprio
inconsciente. Em se tratando do borderline brando, as trocas fantasmáticas e
afetivas criam um espaço potencial ou equivalente, onde o objeto subjetivamente
criado é, ao mesmo tempo, objetivamente usado. O subjetivamente concebido é ao
mesmo tempo objetivamente existente. A identificação dual-porosa mostra-se um
precioso instrumento de conhecimento, relação e comunicação, permitindo surfar
nas ondas do devir, possibilitando ao borderline deslizar e se enlear nas sutis
e infindas variações de um mundo em constante mutação. A necessidade de
dependência do borderline pesado, traduz-se no borderline brando pelo
reconhecimento da necessidade afetiva de um outro também dual-poroso, de tal
maneira que um regime de trocas, onde vigore tanto o subjetivamente concebido
quanto o objetivamente percebido, possa ser estabelecido.
CASTRAÇÃO E LIMITE
Acho importante dedicar um espaço para
diferenciar castração e limite. Castração é um termo usado pela primeira vez
como conceito psicológico/psicanalítico por Freud e é a esta castração que vou
me referir nas próximas linhas. Coloco a castração como pertencente ao campo do
neurótico e o limite ao campo do borderline. A castração, palavra evocadora de brutalidade
e que em Freud se refere à proibição do incesto com a mãe, é, quando examinada
de um ponto de vista mais amplo, uma metáfora da injunção ao abandono de
características femininas como empatia, identificação dual-porosa, etc., para poder
se tornar um verdadeiro Homem. Ser homem com H maiúsculo é proibir o feminino no
menino e no adulto do sexo masculino, estimulando a dureza, a implacabilidade,
a impiedade. (Filmes: “A árvore da vida”; “Fita branca”).
Já na colocação de limites, o carinho e
sensibilidade da mãe no trato com a criança presentifica modos de
relacionamento e valores que não à-toa chamamos de femininos tais como empatia,
dual-porosidade, compaixão, percepção sutil, intuição, atividade conciliadora,
etc. Em não havendo uma interferência castradora os modos de relacionamento e
os valores da mãe advindos da relação afetuosa com o filho são preservados, só
aparecendo a questão do incesto e fixação materna em situações de
desenvolvimento distorcido quando então uma ação terapêutica se faz necessária.
A castração é um conceito cunhado por Freud e refere-se a uma ação dura, cruel,
enquanto que a colocação de limites é uma atividade realizada com afeição e
sensibilidade. Citações de Freud e Winnicott.
Freud: “O superego conservará o caráter do pai, e
quanto mais intenso foi o complexo de Édipo e mais rapidamente se produziu a
sua repressão (pela influência da autoridade, a doutrina religiosa, a educação,
a leitura), tanto mais rigoroso será depois o império do superego como
consciência moral, talvez também como sentimento inconsciente de culpa, sobre o
ego”. Outra citação de
Freud: “O superego
reteve características essenciais das pessoas introjetadas — a sua força, sua
severidade, a sua inclinação a supervisar e punir. Como já disse noutro lugar,
é facilmente concebível que, graças à desfusão de instinto que ocorre
juntamente com essa introdução no ego, a severidade fosse aumentada. O superego
— a consciência em ação no ego — pode então tornar-se dura, cruel e inexorável
contra o ego que está a seu cargo. O Imperativo Categórico de Kant é, assim, o
herdeiro direto do complexo de Édipo”.
Winnicott: “Fica claro que, de acordo com a teoria que uso
em meu trabalho, você está possibilitando ao seu filho desenvolver um sentido
de certo e de errado ao ser uma pessoa confiável nessa fase formativa inicial
das experiências da vida dele. Se não tiver êxito com o seu bebê desse modo (e
certamente se sairá melhor com um bebê do que com um outro), terá de tirar o
melhor proveito possível de ser estritamente um ser humano, embora saiba que
coisas muito melhores poderiam estar acontecendo no processo de desenvolvimento
natural da criança. Se fracassar por completo, então deve tentar implantar
idéias de certo e errado através do ensino e do treinamento assíduo. Mas isso é
um substituto para o procedimento realmente válido, é uma confissão de fracasso
e você vai detestar essa idéia; e, em todo caso, esse método só funciona desde
que você, ou alguém atuando no seu lugar, esteja presente a fim de impor a sua
vontade. Por outro lado, se puder dar a partida para o seu bebê de modo que,
através da sua confiabilidade, ele desenvolva um sentido pessoal de certo e
errado, em vez de medos primitivos e toscos de retaliação, você descobrirá mais
tarde que pode reforçar as idéias de seu filho e enriquecê-lo com as suas
próprias idéias”.
A
distinção entre a castração freudiana e o que chamo de limite winnicotianno é tão
mais nítida quanto mais radical e traumática é a castração.
Na subjetividade neurótica o acesso ao feminino do homem é impedido mediante uma
ação castradora. Na prática esta castração é principalmente exercida pelo pai
que impede o acesso da criança aos seus aspectos femininos de empatia,
capacidade de identificação, sensibilidade sutil, etc. Hoje, na classe média
educada e informada a brutalidade castradora encontra-se atenuada e pode-se
mesmo dizer que está se espalhando uma ação não mais de castração crua, mas de
colocação sensível de limites. Quando falo de castração penso em violência em
seus diversos graus. Quando falo de limites também penso em graus de serenidade
e sensibilidade, respeitadoras da subjetividade da criança. Gosto de usar para
a castração a imagem de um muro compacto contra o qual a criança irá se chocar
e se machucar; já o limite eu o vejo como uma cortina de veludo, macia e
flexível que oferecerá proteção e limite à criança sem machucá-la. O pai
impiedosamente castrador do século XIX que vemos em filmes como “A fita branca”,
“A árvore da vida” está desaparecendo nas classes médias dos centros urbanos.
Os pais em geral são amorosos com os filhos e as proibições são realizadas de
uma forma delicada, carinhosa e sensível. A repressão que vem dos pais já não é
mais traumática, castradora, violenta e isto faz uma diferença. Não podemos
porém esquecer que as proibições que a criança impõe a si mesma podem ser poderosamente
mandatórias mesmo quando os limites são dados por uma figura benigna. Esta
benignidade tem sua importância, pois evita a introjeção de uma personificação despótica.
A pressão que a criança necessariamente tem de exercer sobre si mesma para
conter seus desejos imaturos emanam da força ditatorial das palavras em si e
não do pavor/pânico provocados por uma figura tirânica assustadora vociferando ordens.
Esta nova maneira de colocar limites muda a qualidade do recalque e permite que
processos de divisão do eu tenham um lugar mais proeminente no psiquismo.
Voltarei mais adiante a esse assunto.
Meu livro em sua 1ª edição sugere que a normalidade neurótica da modernidade está, na
pós-modernidade, se encolhendo, cedendo seu lugar à normalidade borderline. Já
na segunda edição vislumbra-se a idéia de que processos neuróticos e
borderlines convivem na mesma pessoa e que esta seria a normalidade utópica do
futuro, um horizonte norteador de nossos passos. Na
seqüência dos acontecimentos históricos e da evolução do meu pensamento a separação
entre neurótico e borderline estava deixando de ser tão importante. Falarei
aqui de um ponto de virada que tornou nítida a mudança de meu deslizamento.
Refiro-me a um trecho do prefácio escrito por André Martins para a 2ª edição do
meu livro “Borderline: uma outra normalidade”: “Seja mais, seja menos, temos todos nossos
traços neuróticos e psicóticos, ou neuróides e psicóides. Somos todos
borderlines. Entre os borderlines, as dificuldades e a organização psíquica
variam. Mas a saúde psíquica não está mais do lado da neurose, como tampouco
passou a estar do lado da psicose. Ela se encontra na franja central, não no
justo meio, que não há, mas na busca da expressão de nossa criatividade com um
mínimo de defesas, e em lidar bem com elas, nem tornando-as rígidas, como na
neurose, nem abrindo inteiramente mão delas, recaindo em um descontrole
emocional e da percepção da realidade, como na psicose (p.XIX)”. Este fragmento acendeu uma luz em meu cérebro e lembrei-me
de um artigo de Freud de 1924 “A perda da realidade na neurose e na psicose”. E
lá encontrei o que estava buscando: “Chamamos
um comportamento de ‘normal’ ou ‘sadio’ se ele combina certas características
de ambas as reações — se repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas
se depois se esforça, como faz uma psicose, por efetuar uma alteração dessa
realidade. Naturalmente, esse comportamento conveniente e normal conduz à
realidade do trabalho no mundo externo; ele não se detém, como na psicose, em efetuar mudanças
internas. Ele não é mais autoplástico,
mas aloplástico”(p.231, v.19).
(Aqui não resisto a um
parêntesis. Na p.123 de meu livro encontro algo muito parecido: “O
borderline, nem rigidamente estruturado e defendido como o neurótico, e nem
fora da realidade como o psicótico, teria em comum com o primeiro uma
capacidade de avaliar a realidade e de comum com o segundo um contato íntimo
com suas fantasias mais primordiais, sem, no entanto transformá-las em
delírios”.) Voltando
a Freud: ele fala, portanto de um comportamento ‘normal
ou sadio’ quando processos comuns à neurose e à psicose estão em ação. Esta
aproximação de neurose e psicose aparece em um trecho mais adiante: “A distinção nítida entre neurose e
psicose, contudo, é enfraquecida pela circunstância de que também na neurose
não faltam tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra que
esteja mais de acordo com os desejos do indivíduo. Isso é possibilitado pela existência
de um mundo de fantasia, de um domínio que ficou separado do mundo
externo real na época da introdução do princípio de realidade. Esse domínio,
desde então, foi mantido livre das pretensões das exigências da vida, como uma
espécie de ‘reserva’; ele não é inacessível ao ego, mas só frouxamente
ligado a ele. É deste mundo de
fantasia que a neurose haure o material para suas novas construções de
desejo e geralmente encontra esse material pelo caminho da regressão a um
passado real satisfatório” (idem, p.233). Também em “Análise terminável e interminável” Freud
pondera sobre normalidade: “O ego, se com ele quisermos poder efetuar um pacto deste
tipo, deve ser um ego normal. Mas um ego normal dessa espécie é, como a
anormalidade em geral, uma ficção ideal. O ego anormal, inútil para nossos
fins, infelizmente não é ficção. [Na verdade, toda pessoa normal é apenas
normal na média. Seu ego se aproxima do ego do psicótico num lugar ou noutro e
em maior ou menor extensão e o grau de seu afastamento de determinada
extremidade da série e de sua proximidade da outra, nos fornecerá uma medida
provisória daquilo que tão indefinidamente denominamos de “alteração do ego” ](Vol.XXIII – p.267/8).
O conjunto dessas
citações trouxe à minha mente o trabalho de Winnicott denominado “O lugar em
que vivemos” (capítulo 8 do “O Brincar & a Realidade). Resumindo entendi que
Winnicott nos fala que vivemos a maior parte de nosso tempo em um espaço
intermediário onde o subjetivo e o objetivo se encontram, possibilitando a
criatividade. Esta não poderia existir se vivêssemos em um mundo exclusivamente
subjetivo ou exclusivamente objetivo, pois no primeiro estaríamos aprisionados
pelo não acesso ao mundo externo e no segundo aprisionados pela realidade
física ou consensual. A normalidade do homem pós-moderno
começa a se apresentar para mim como um misto de neurótico e borderline onde
convivem a onipotência mitigada, as divisões do eu, o recalque traumático
adequado. A idéia de “recalque traumático adequado” surgiu de seu contraponto,
o “recalque excessivamente traumático” largamente exercido na época vitoriana.
Vide os filmes “A fita branca” e “Árvore da vida” entre outros.
No recalque excessivamente traumático temos um pai
tirânico que exerce a repressão com aspereza, violência e insensibilidade. A interdição
fica indissoluvelmente ligada a uma figura assustadora que, internalizada, irá
assombrá-la como superego cruel, atacando impiedosamente o seu eu, impedindo a
elaboração da interdição.
No “recalque traumático adequado” a interdição é
colocada com firmeza, mas sem desabrimento e com a brandura possível, o que
permite sua elaboração. Sabemos que a interdição ao se defrontar com os
intensos impulsos primitivos infantis perde o seu caráter de suavidade para que
os impulsos possam ser detidos. É comum ouvirmos uma criança falando para si
mesma diante de um objeto ou ato interditados um “não pode” repetidas vezes, em
um tom autoritário, com voz de comando. A suavidade paternal transforma-se em
severidade impositiva. Porém a figura dos pais mantém-se benigna e assim são
internalizados. A severidade e o rigor ficam colocados na interdição ela
própria e não naqueles que a exerceram.
Devemos distinguir a voz de comando à qual a criança recorre para a
aceitação de limites (que podem ter sido colocados pelos pais com a maior
doçura) da imposição severa e insensível dos pais. Eu chamaria a primeira de proibição
auto-induzida na qual não se dá a
introjeção de uma Personificação de Pai imperial e insensível, e a segunda de proibição
autoritária na qual uma Personificação Tirânica de Direito Olímpico
Inabalável e Incontestável se impõe como figura ameaçadora. No primeiro caso os
bebês (as crianças) internalizam a proibição respeitando seus processos de
equilibração subjetiva. No segundo caso há uma imposição castradora que não
respeita os tempos de equilibração do bebê invadindo seu psiquismo e lá
deixando sua marca danosa. Uma marca diferente daquela benigna que o próprio
bebê se coloca, pois a que ele se coloca está dentro de suas possibilidades de suportar
o trauma sem uma quebra significativa da continuidade de ser. Usando os
conceitos que Winnicott apresentou no artigo “O conceito de trauma em relação
ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família” (em Explorações
Psicanalíticas, p.114) podemos dizer que a auto-imposição do bebê (da criança) é
um trauma benigno enquanto que a imposição dura, severa e insensível dos pais é
um trauma que será tão mais maligno quanto mais ríspida, violenta e insensível
for a intervenção paterna. Neste caso o pai será internalizado como uma
Entidade Maligna Invasiva e não como um pai amoroso protetor.
Feita esta distinção posso
continuar a desenvolver meu pensamento, agora tentando articular as variedades
de neuróticos e borderlines com as relações parentais.
A família patriarcal prototípica do período vitoriano era
composta por uma mãe suficientemente boa e por um pai que impunha, a qualquer
custo, com a aquiescência da mãe, as leis da casa; isso incluía a ação de
castração na época apropriada. A mãe através da relação fusional e de
mutualidade propiciava ao filho o desenvolvimento da capacidade de empatia, de
identificação, da sensibilidade sutil, do sentimento de compaixão. Estas
características eram consideradas, na sociedade moderna vitoriana, “coisas de
mulher”, enfraquecedoras de crianças do sexo masculino que então deveriam livrar-se
desta subjetividade. Os meninos deveriam recalcá-la para tornarem-se fortes,
duros, impiedosos: uma masculinidade bem desenvolvida lhes permitiria vencer a
dura luta pela sobrevivência, alcançando um padrão de vida consoante o seu
grupo social. Para conseguir este resultado o Pai (ou a função pai) proibia
duramente o acesso à mãe; ele exercia a função de castração da qual resultava uma
interdição do feminino. O resultado era o provável desenvolvimento de um
neurótico normal desde que a mãe fosse
suficientemente boa e o pai castrador suficientemente bom; refiro-me a uma mãe
suficientemente disponível, sensível e responsiva às modificações da
subjetividade do filho e a um pai suficientemente presente, justo, protetor,
respeitador da lei, qualidades que fariam dele uma boa figura de identificação.
Ser justo e íntegro tinha uma enorme importância:
fornecia fortes e seguros pontos de referência ao filho criando uma confiança
na equanimidade do social.
Ao
contrário do neurótico padrão que constituiu um forte superego e um consistente
ideal de ego, o borderline tem um superego maleável e um ideal de ego múltiplo.
Partindo da teoria da insuficiência de identificações como um dos principais
fundamentos do borderline propus substituir a expressão “insuficiência de
identificação” que tem uma conotação negativa, por “valências identificatórias
abertas”. O interjogo lúdico e amoroso incorporado pelo bebê em sua relação com
a mãe continua a ser exercido na idade adulta desde que não seja obturado por
uma ação drástica de castração paterna, pois neste caso haverá um recalque do
feminino e a modelagem de um macho patriarcal autoritário.
A combinação de uma mãe insuficientemente boa com um pai autocrático
tenderia a produzir uma dissociação entre psique e mente e, portanto um borderline
falso self. O solo materno instável levaria o filho a procurar estabilidade nos
preceitos morais e intelectuais portados pelo pai.
Em
não havendo uma intervenção súbita e brutal de um pai edípico, as valências
identificatórias paternas ficarão insaturadas. Duas possibilidades:
1- Quando a mãe for
insuficientemente boa a identificação da criança com o materno será de má
qualidade e mais tarde buscará em primeira instância uma personificação de mãe (ou
de pai) para com ela realizar uma relação anaclítica na tentativa de suprir as
deficiências de origem.
2- Já uma mãe suficientemente boa, tendo
fornecido um solo identificatório seguro, permite às valências identificatórias
abertas voltarem-se mais para os aconteceres externos do que para relações
anaclíticas. Estaríamos então em uma área intermediária, resultado do
acoplamento das valências insaturadas com o devir do mundo. Citando Winnicott: “É útil, portanto, pensar numa terceira área do
viver humano, uma área que não se encontra dentro do indivíduo, nem fora, no
mundo da realidade compartilhada. Pode-se pensar nesse viver intermediário como
ocupando um espaço potencial, a negar a idéia de espaço e separação entre o
bebê e a mãe, e todos os desenvolvimentos derivados desse fenômeno” (“O Brincar
& a Realidade”, p. 152).
Entre os
desenvolvimentos derivados do “viver intermediário” estão a identificação
dual-porosa, a sensibilidade sutil, a empatia, a compaixão, a equilibração do
subjetivamente concebido com o objetivamente percebido.
Penso já ter elementos
para debutar o meu Homem Transicional. Este Ser teria tido uma mãe
suficientemente boa possibilitando-lhe a internalização de valores femininos
que persistem na vida adulta por não se defrontarem com a castração paterna,
mas sim com a colocação de limites tanto do pai quanto da mãe, ambos realizando
uma mesma tarefa que poderíamos chamar de masculina. Isso acontece
principalmente e com mais freqüência nas camadas sociais citadinas e
esclarecidas. Por outro lado vemos nessas mesmas camadas o homem exercer o
papel feminino de cuidar do bebê. Haveria, pois, um intercâmbio dos papéis
masculinos e femininos que tanto poderiam ser exercidos pelo homem quanto pela
mulher. É preciso, porém, assinalar que a gestação e a amamentação ao seio
pertencem exclusivamente à mulher e estabelecem um forte e indelével vínculo entre
mãe e bebê o que pode vir a criar futuras dificuldades em “soltar” seu rebento
para os perigos da vida em geral e do
social em particular só ultrapassados com esforço e com ajuda do pai que não
tem tantas dificuldades em expor o filho a esses perigos. Um exemplo: a mãe ao
proibir o filho de velejar encontra um pai que diplomaticamente interdita a
proibição levando-o ao mar. Este é um tipo de limite que deverá ser distinguido
da colocação de limites em geral, pois afeta muito diretamente o
desenvolvimento do ser humano. Seria o equivalente benigno da castração da
castração freudiana.
No final das contas o
menino que teve pai e mãe com as características acima apontadas pôde
amenamente assimilar os modos de ser masculino e feminino vivendo
simultaneamente o objetivo e o subjetivo. Essa criança virá a ser, se nada
atrapalhar sua trajetória, o Homem Transicional, cujo lar será na maior parte
do tempo, o espaço potencial, nele aprendendo a balancear o subjetivamente
concebido e o objetivamente percebido.
agosto/2011
Nahman
Armony