DELEUZE E A VELHICE

DE COMO A FILOSOFIA PODE AJUDAR UM PSICANALISTA 
         Coube-me apresentar, do dicionário de Deleuze a palavra “maladie” (doença). Deleuze encontra-se doente e a palavra maladie adquire um caráter pessoal. Em maladie já não se encontram conceitos teóricos mas sim reflexões sobre a própria vida. Aqui uma primeira questão: é válido usar-se reflexões íntimas (não tão íntimas assim pois foram expostas à entrevistadora) de um autor teórico? Terão elas um interesse teórico? Até a algumas décadas atrás os teóricos das humanidades e especialmente das ciências duras procuravam ser objetivos em sua escrita, evitando falar de si mesmos e de sua relação com seus pensamentos e teorias. Isso vem mudando aceleradamente. Muitos escritores falam de si mesmos, de como chegaram a cogitar dos problemas apresentados em seus escritos, qual a influência de suas experiências. Um autor que imediatamente me vem à lembrança é o físico Murray Gell-Mann que no prefácio de seu livro “O quark e o jaguar” escreve coisas como “O quark e o jaguar” não é uma auto-biografia, embora contenha reminiscências de minha infância e um certo número de casos sobre meus colegas de trabalho”; “No começo da primeira parte descrevo algumas experiências pessoais que me levaram a escrevê-lo”. Ambas as citações estão na p.9. Na minha opinião isto acontece porque cada vez mais se reconhece que a teoria está ligada à vida e vice-versa. Apesar do nível de abstração da filosofia de Deleuze podemos encontrar as raízes de seu pensamento na cotidianidade. Ao falar de Platão, Deleuze aponta para a questão do modelo, da boa cópia e do simulacro. A boa cópia é o verdadeiro pretendente, aquele que tem direito de dirigir a República. Os simulacros são para Platão falsos pretendentes sem direito a nenhuma reivindicação. O platonismo ao ser revertido acaba com a diferença entre modelo, cópia e simulacro. Todos podem ser pretendentes. O platonismo é uma filosofia máquina de Estado que tem a função de perpetuar a elite no poder reprimindo o simulacro. Dando-se ao simulacro o mesmo estatuto da boa cópia, e mais, acabando com a diferença entre modelo, cópia e simulacro introduz-se uma máquina de guerra que desafia o poder do Estado. Estamos portanto falando de uma teoria que tem tudo a ver com a vida. Mas antes de chegarmos a este nível vejamos o que Machado em seu livro “Deleuze e a filosofia” cita de Deleuze no que diz respeito à função da filosofia: “o verdadeiro objeto da ciência é criar funções, o verdadeiro objeto da arte é criar agregados sensíveis e o objeto da filosofia é criar conceitos”. Essa criação de conceitos filosóficos vem não só do estudo da filosofia mas de uma varredura de vários campos de conhecimento e atuação humanos. Ele examina esses campos para deles retirar conceitos filosóficos que têm um profundo parentesco pois pertencem todos a uma mesma época e subjetividade. Se fazer filosofia é criar conceitos, o que deve um psicanalista fazer diante de algum material que lhe é oferecido? A função do psicanalista, na minha opinião, é compreender o ser humano para ajudá-lo. Se eu me debruço sobre a vida de Deleuze - um ser humano singular - certamente poderei encontrar elementos de reflexão sobre o homem e a vida. Pergunta: o que a vida de Deleuze tem a ver com sua filosofia? Sua filosofia é criar conceitos. Mas os conceitos são tirados de várias disciplinas ligadas à vida. Então posso pensar os conceitos como ligados à vida, tal como mostrei acima. Posso portanto pegar os fragmentos de vida que ele apresenta e examiná-los à luz de sua teorização e de meus interesses. Posso pegar algumas falas suas referentes à velhice: “a grande maravilha é que as pessoas deixam a gente de lado, a sociedade deixa a gente de lado... Ser deixado de lado pela sociedade é uma alegria tamanha!” “Caem todos os parasitas que você carregou a vida inteira” “O velho é alguém que é...ele adquiriu o direito de ser”. “Mas um velho simplesmente, que é apenas velho, é o ser”. Em suas teorizações Deleuze fala de aparelho do Estado que é a imposição da mesmice, do platonismo e fala também de máquina de guerra que é a oposição a essa mesmice, uma oposição que tem como fulcro filosófico a filosofia da diferença. Ele opõe a teoria filosófica da representação (Platão) à teoria filosófica da diferença (Nietzsche). Encontramos claramente esta oposição nas palavras de Roberto Machado na p.135: “Différence et répétition salienta várias vezes o caráter conformista desse pensamento ortodoxo, incapaz de romper com a doxa, com a opinião, visto que apenas a universaliza ao elevá-la ao nível racional, conservando dela o essencial, isto é, a forma, ou o uso das faculdades que lhe correspondem; por outro lado, considera a finalidade prática desse pensamento como sendo a recognição, o reconhecimento dos valores estabelecidos, o que o coloca a serviço dos poderes das Igrejas, dos Estados. Mille plateaux, retomando a análise da imagem do pensamento nos quadros da dicotomia entre aparelho de Estado e máquina de guerra, expõe a mesma idéia: reafirma não só que a crítica à imagem do pensamento se faz não privilegiando os conteúdos, mas a forma, isto é, sua conformidade a um modelo, mas também ---- e principalmente ---- que esse modelo do pensamento é o aparelho de Estado ou, em outros termos, que a imagem do pensamento é a forma-Estado desenvolvida no pensamento”. “Desde que a filosofia se atribuiu o papel de fundamento não mais deixou de benzer os poderes estabelecidos e de decalcar sua doutrina sobre os órgãos de poder de Estado. O senso comum, a unidade de todas as faculdades como centro do Cogito, é o consenso do Estado levado ao absoluto. Foi notadamente a grande operação da crítica kantiana, retomada e desenvolvido pelo hegelianismo” (citação do Mille Plateaux).
         Bem que eu tinha razão de ligar as teorias em geral à vida e a vida de cada homem à sua teoria. Posso especular, sabendo que estou abusando de uma licença dramatizante, que Deleuze sentia-se incomodado por ter de atender a convites do establishment. Ele estava diante de um aparelho de Estado e reagia como uma máquina de guerra. Isto até o momento em que velhice lhe deu a oportunidade de sair da luta e simplesmente SER, o que significa DEVIR. Não posso deixar de lembrar os três momentos do homem trazido por Nietzsche: o camelo (ter de carregar o peso do establishment, dobrar-se ao aparelho de Estado); o leão, a máquina de guerra que luta contra o aparelho de Estado; e a criança que está em um tempo aiônico, portanto fora desta luta. A partir deste novo estado as forças se reconfiguram. Isto para nós analistas é importante no sentido de sabermos valorizar as circunstâncias externas e internas, não tratando o analisando fora de sua inserção de seu período histórico nem fora de sua história particular; e para conhecer a história, especialmente a particular é preciso que ele, o analisando, a conte, isto é, que o analista sem preconceitos ouça a sua história. Neste momento me vem à mente “As duas análises de Mr. Z” de Kohut. O paciente desta análise realizada por Kohut, no período dos 11 aos 13 anos teve uma relação homossexual com o seu instrutor de ginástica de 30 anos. A primeira reação é de horror, é de achar que o menino terá sido extremamente prejudicado por esta relação. E, no entanto, este foi um dos melhores períodos da vida de Z com repercussões positivas no seu futuro. Com outro analisando poderia ser o contrário, mas com esse foi dessa maneira o que mostra a importância de uma escuta não preconceituosa. Almodóvar é mestre em nos mostrar as situações por dentro, driblando os preconceitos. Isto ele o faz em vários filmes. Quero lembrar especialmente o filme “Fale com ela” em que um estupro é um estupro para a máquina de Estado mas não é um estupro para o devir da mulher que foi amorosamente possuída pelo enfermeiro. Oliver Sacks é outro mestre em nos mostrar como os horizontes humanos ao diferirem organizam formas de viver diferentes. Vou relatar e citar um de seus casos do livro “Um antropólogo em Marte”. Depois de um acidente um artista, pintor, tornou-se daltônico o que de início foi terrível e alterou sua percepção do mundo e seu modo de vida. Vejamos a continuação nesta citação: “O sr. I, com sua apurada sensibilidade visual e estética, achava essas mudanças particularmente intoleráveis .... A percepção da cor havia sido parte essencial não só do sentido visual do sr. I, mas de seu sentido estético, sua sensibilidade, sua identidade criativa, uma parte essencial de como construía seu mundo --- e agora a cor havia desaparecido, não apenas da percepção, mas também da imaginação e da memória. Os ecos dessa condição foram muito profundos. De início, ficou intensa e furiosamente consciente do que perdera (ainda que “consciente”, por assim dizer à maneira de um amnésico)). Podia olhar fixamente para uma laranja, enfurecido tentando forçá-la a recobrar sua cor verdadeira....Viu-se num mundo não apenas empobrecido, mas alienado e incoerente, quase um mundo de pesadelo..... Mas aí, com a aurora “apocalíptica”, e a pintura que fez dela, surgiu o primeiro sinal de mudança, um impulso de reconstruir o mundo, de reconstruir sua sensibilidade e identidade. Parte disso era consciente e deliberado .... Mas boa parte se passou abaixo desse nível, num nível de processamento neuronal não diretamente acessível à consciência ou ao controle”.  Houve “uma transformação de valores, de forma que a sua completa estranheza e alienação do mundo a partir de seu daltonismo, que de início tinha uma qualidade de horror e pesadelo, passou a ter um estranho fascínio e beleza”(p.52). O sr. I mudou seus hábitos de vida: tornou-se notívago. Palavras de I: “Vou me tornando aos poucos um notívago. É um mundo diferente: há muito espaço --- você não fica encurralado nas ruas, pelas pessoas... É um mundo completamente novo”. Temos aí um outro mundo a ser repeitado e que só pode ser entendido por um analista despido de quaisquer preconceitos e disposto a penetrar nesta outra subjetividade tão diferente da sua. A reorganização deste mundo pessoal depende das novas capacidades surgidas a partir da perda da visão colorida.  Um outro mundo a ser entendido e respeitado. Se tal indivíduo estivesse em análise o analista teria de se mover em águas desconhecidas apenas abrindo espaço para a reconstrução de identidade. O que é berrante neste caso apresenta-se em cores pastéis em outros, como no caso da velhice que traz novas capacidades (e perdas de outras) que permitem modificações. No caso de Deleuze ele deixa de ser uma máquina de guerra para se tornar um devir/ser. “O velho é alguém que é. Ponto final. Podem dizer que é um velho rabugento, etc. Mas ele é. Ele adquiriu o direito de ser”(p.3/4).
Vamos examinar o que é Ser para Deleuze: “Nietzsche não suprime o conceito de ser. Propõe uma nova concepção de ser. A afirmação é ser. O ser não é o objeto da afirmação... A afirmação só tem a si mesma como objeto. A afirmação como objeto da afirmação: isto é o ser. Nela mesma e como a afirmação primeira ela é o devir. Mas ela é o ser enquanto que ela é o objeto de uma outra afirmação que eleva o devir ao ser ou que extrai o ser do devir. É por isso que a afirmação em toda a sua potência é dupla: afirma-se a afirmação. É a afirmação primeira (o devir) que é ser, mas apenas como objeto da segunda afirmação. As duas afirmações constituem a potência de afirmar em seu conjunto”. (Nietzsche e a Filosofia). Na velhice Deleuze finalmente pode ser, isto é, pode devir. Para nós analistas é uma sugestão de respeito às condições históricas da vida de cada analisando.          

Nietzsche foi o primeiro a denunciar as teorias que matam a vida. Deleuze segue na esteira de Nietzsche. Ele é um pensador que pensa a vida no seu devir. O Deleuze que tenho dentro de mim não se oporia a que examinássemos suas concepções acerca de si mesmo na relação com o mundo para enriquecermos nosso acervo de experiências, assim como nos enriquecemos com suas formulações mais abstratas. Em minha opinião uma teoria psicanalítica só terá amadurecido dentro de nós quando pudermos usá-la não como referência teórica transcendente, mas como experiência incorporada tornada imanente. É claro que há uma jornada a ser percorrida e também é claro que muitas vezes recorremos a um apoio transcendente para lidar com uma situação. Mas o desenvolvimento desejável das teorizações seria passarem de uma transcendência para uma imanência. Deleuze diria que as atividades das diversas áreas do quefazer humano devem poder permitir a criação de conceitos filosóficos, pois tudo o que acontece numa época tem um fio subjetivo ligando-os. Como psicanalista interessa-me poder compreender e ajudar ao meu analisando e para isso preciso estar em contato e em intimidade com ele. Não posso ouvi-lo pensando em conceitos, mas devo relacionar-me diretamente com ele com o meu ser de experiência que é um ser que congrega tudo o que já pensei e passei: desde minhas vivências até meus estudos transformados em experiências. Para Deleuze filosofar é criar conceitos. E para criar conceitos Deleuze, segundo Roberto Machado, invade várias áreas do conhecimento humano para extrair conceitos para a sua filosofia. Se o filósofo cria conceitos o que faz o psicanalista? Ele tenta entender a maneira de ser de cada pessoa, pois ele terá de lidar com pessoas em sua clínica e quanto mais ele souber sobre pessoas, mais apto estará para ajudá-las. Se eu arranho o entendimento da pessoa Deleuze, criador de importantes conceitos da pós-modernidade, conceitos que têm a ver com a vida a ser vivida, então acrescento alguma coisa ao meu acervo psicanalítico.  Exercer a função psicanalítica é pôr minha experiência a serviço do analisando. Eu não deveria passar pela teoria para formular uma interpretação ou realizar um gesto. A fala e o gesto devem emanar diretamente da relação e são diferentes de uma fala e gesto comuns por terem uma intenção terapêutica. Esta intenção terapêutica fica incorporada à experiência como uma insinuância. 

         Voltando a Deleuze: “Adquiri todos os direitos de uma saúde fraca”. “O fato de eu ter uma saúde tão frágil me dava muita segurança para recusar qualquer viagem....A doença me libera muito. É ótima neste sentido”. “Ele (o velho) adquiriu o direito de ser”... “(Com a velhice) caem todos os parasitas que você carregou a vida inteira”... ”Mas o velho que é apenas o velho é o ser”. Todas estas frases nos mostram de como Deleuze pessoa estava condicionado à representação, à identidade, ao aparelho de Estado. A velhice o libera para o ser/devir o que significa que antes ele tinha de pautar a sua diferença pela identidade imposta pelas obrigações sociais e morais de sua convivência com as pessoas e as instituições. A diferença pura é uma utopia filosófica da qual ele se aproxima na velhice que o libera. Também o libera para ser/devir a saúde fraca. Para a psicanálise essa dualidade psicológica ---- estar subordinado ao superego cultural (identidade) e desejar ser (devir) ---- é um paradoxo que deve ser cuidado com delicadeza. O superego cultural é uma influência forte que desafiada pode desestabilizar a pessoa, mas o desejo de devir tem também a sua força. O equilíbrio entre estas forças estará a cargo do analisando e não de uma avaliação do analista. Assim como todo equilíbrio de todas as forças, todos os desejos, todos os medos e todas as defesas estão também a cargo do analisando. É ele quem pode encontrar o seu próprio equilíbrio e não o analista que apenas abre caminho para que este equilíbrio (instável) seja encontrado pelo próprio analisando de acordo com as forças e defesas que o afetam.
         Deleuze procurou formular uma filosofia da diferença pura, absoluta em que o desenvolvimento de cada um dar-se-ia não por comparação, por competição, por submissão, por reação, mas por um movimento interno de vontade de potência. Mas esta diferença pura parece ter de conviver com aspectos de identidade. Eis o que escreve Roberto Machado no seu livro “Deleuze e a filosofia”: “É difícil saber – e de todo modo é ainda bastante cedo para decidir – se essa crítica do dualismo, realizada em nome do pluralismo mas obrigada a criar novas dualidades, é uma questão terminológica, um problema de escritura, ou se aponta para uma dificuldade conceitual constitutiva da filosofia de Deleuze proveniente da inadequação entre suas propostas e seu funcionamento ou da diferença entre gritar “viva o múltiplo” e “fazer o múltiplo”. Esta questão filosófica colocada por Machado é correlata à dificuldade de escapar das obrigações sociais (identidade) e à necessidade de um certo contexto para que as obrigações sociais sejam superadas pela possibilidade de ser/devir. Continuando a citar Machado: “Não há dúvida de que a grande ambição de Deleuze é realizar, inspirado sobretudo em Bérgson, uma filosofia da multiplicidade...Isso não impede, contudo, como estamos vendo, que sua filosofia seja dualista no sentido preciso de situar o pensamento, de modo geral, em dois espaços não apenas diferentes, mas antagônicos”. Ele está falando do espaço do modelo platônico que é o espaço da identidade, da subordinação da pessoa a modelos, e do espaço da multiplicidade, do devir, da diferença pura quando desaparece essa subordinação. A dualidade persiste pois a vida nos impõe esta dualidade da qual alguns, como Deleuze tentam escapar. Esta dualidade fica explícita no livro “Diferença e repetição” onde Deleuze “salienta várias vezes o caráter conformista desse pensamento ortodoxo (o pensamento da representação, do modelo)....por outro lado considera a finalidade prática desse pensamento como sendo a recognição, o reconhecimento dos valores estabelecidos, o que o coloca a serviço dos poderes das Igrejas, dos Estados”. “Mille plateaux, retomando a análise da imagem do pensamento nos quadros da dicotomia entre aparelho de Estado e máquina de guerra, expõe a mesma idéia....esse modelo de pensamento é o aparelho de Estado... é a forma-Estado desenvolvida no pensamento”(Machado, Deleuze e a Filosofia, p.135).
         Temos aí a luta entre o aparelho do Estado e a máquina de guerra. Eu incluo no aparelho do Estado as obrigações sociais e  os constrangimentos profissionais pelos quais temos de passar. E Deleuze ao valorizar a doença e a velhice como lhe permitindo um status diferente está falando de sua antiga sujeição parcial ao aparelho do Estado por mais que ele fosse uma máquina de guerra. Como analistas temos de nos lembrar da força do aparelho do Estado para que não passemos a idéia de que ela não é uma força poderosa; é sim uma força atuante que não pode ser ignorada. O analista precisa estar ciente de que o analisando está sujeito a forças poderosas de várias origens não forçando uma barra para enfrentá-las ou negá-las. A idéia de que podemos nos desenvolver exclusivamente segundo nossas potencialidades --- uma idéia individualista que não leva em conta o meio ----- é falsa e pode ser prejudicial quando inconscientemente passada para o analisando.
         Aqui surge mais uma questão. A questão da neutralidade. Hoje sabemos que a neutralidade não é possível. De alguma maneira passamos nossas convicções, nossa weltanschauung (visão de mundo) ao nosso analisando, certamente não diretamente, mas pelo conjunto de verbalizações e expressões corporais. A idéia de que podemos ser poderosos prescindindo ou ignorando o meio ambiente é anti-terapêutica. As palavras de um Deleuze experiente são importantes para desfazer a impressão de que não estamos de forma nenhuma sujeitados ao aparelho de Estado. Deleuze enquanto saudável e jovem é uma máquina de guerra em luta com o aparelho de Estado. Na velhice o aparelho de Estado deixa de incomodá-lo e ele não precisa ser uma máquina de guerra. Na velhice ele pode apenas ser. Isto serve como um alerta para nós psicanalistas. Não podemos ignorar, descartar o aparelho de Estado em suas múltiplas manifestações, inclusive como superego social. Aqueles que desejam escapar das ordens do aparelho de estado serão máquinas de guerra. Mas, até que ponto podem ser máquinas de guerra sem se desequilibrarem excessivamente? Como fica a negociação da máquina de guerra com o aparelho do estado? Esta negociação é absolutamente individual. O que o analista pode é propiciar a negociação. A distribuição de forças não está no conhecimento do analista, mas sim do analisando. Um analisando meu queixa-se de sua analista anterior dizendo que ela tentava fazer com que ele largasse suas atividades artísticas e fizesse uma faculdade. Isto não era dito diretamente, mas passado nas entrelinhas. Certamente este tipo de intervenção ideológica é prejudicial ao analisando. É preciso que o analista tenha consciência de seus preconceitos para que eles não interfiram na análise. E não é só uma questão de palavra, mas de passar sutil e inconscientemente a própria ideologia. Neste caso é preferível por em confronto direto as duas ideologias para que o analisando possa se defender da ideologia do analista. Não é que o analista não possa dar dados de realidade em relação às possibilidades das várias carreiras. Até pode, mas ele deve parar aí. A escolha, isto é, o equilíbrio pertence ao analisando. E mais: ganhar ou não dinheiro, viver na pobreza ou riqueza, agradar ou não as figuras influentes é uma questão do analisando. A questão do analista é torná-lo o mais livre possível dentro de suas circunstâncias e limitações para escolher seus caminhos.
         De um lado a prisão da representação e de outro a liberdade do devir. No meio o leão que com sua máquina de guerra luta contra o aparelho de Estado. E que na velhice é a criança do devir. Todas estas são etapas que devem ser levadas em consideração pelo analista.

Uma outra citação de Deleuze que está em Mil Plateaux: “Desde que a filosofia se atribuiu o papel de fundamento não mais deixou de benzer os poderes estabelecidos e de decalcar sua doutrina sobre os órgãos de poder de Estado”. Ele é uma máquina de guerra ao escrever isto, mas até certo ponto submete-se ao aparelho do Estado ao concordar com atividades que ele finalmente pode recusar na velhice. Esta é, para ele, uma das vantagens da velhice.

A ideologia do analista não seria no sentido da libertação, mas das possibilidades de um acordo dentro de cada pessoa, dentro das possibilidades de cada pessoa entre as obrigações (aparelho do Estado) e a liberdade. Por um tempo ele será uma máquina de guerra, uma máquina de guerra que fará os arranjos possíveis com o aparelho do Estado. Certos fatores poderão mais ou menos liberá-lo desta luta. No caso de Deleuze é a saúde fraca e a doença.

Deleuze nos diz que a saúde fraca favorece a proposta de pensar. “Sempre me cansei facilmente. A questão é saber se isso facilita. Se alguém que se propõe ---- nem estou falando do sucesso desta empreitada ---- mas alguém que quer, que gosta e tem como proposta pensar ou tentar pensar, saber se o fato de ter uma saúde fraca lhe é favorável. ... acho que a saúde fraca favorece este tipo de escuta”(p.1).

Até aqui estive falando do homem como máquina de guerra e que pode se tornar devir em certas circunstâncias como a velhice. Seria a seqüência camelo-leão-criança de Nietzsche. Agora se trata de algo um pouco diferente embora com parentesco próximo. O conhecimento de si próprio condicionando as possibilidades de estar no mundo. É assim que estou interpretando a fala de Deleuze. Sua saúde fraca facilita o exercício do pensamento. Aquilo que cada um é dá-lhe um leque de possibilidades de ser, de estar no mundo. O analista deve ter isto em mente. Estou evidentemente pregando uma ideologia de psicanalista que é a ideologia de um psicanalista, a minha ideologia. Mas esta é a minha contribuição a partir das considerações pessoais do Deleuze. Foi o que Deleuze despertou em mim. Assim como Deleuze usa as várias áreas do conhecimento humano para delas extrair conceitos para a filosofia (filosofia para Deleuze é criar conceitos) assim eu, um psicanalista desconhecido uso as confissões de Deleuze para pôr em relevo a minha direção de pensamento referente a como encaro um ser humano na vida e principalmente um analisando na clínica. Até aqui tirei duas direções: 1- não é possível ignorar o aparelho de Estado. Cada pessoa lida com este aparelho de Estado da maneira que lhe é possível. Não adianta o analista estimular o analisando a ir contra o aparelho do Estado além da medida de suas possibilidades. Então não adianta o analista fazer exortações, provocar repressões, negações, etc. Ele deverá oferecer um ambiente onde o próprio analisando descubra suas forças e fraquezas, e, naturalmente, se quiser lutar com suas dificuldades até poderá estar de acordo com o desejo do analista, mas isto é uma decisão do analisando que “sabe” até onde pode chegar sem se prejudicar. 2- O analisando deve permanentemente estar em estado de autoconhecimento em atualização para escolher seu caminho de acordo com suas características, seus talentos, ambições, habilidades, ideais. Serve aqui o exemplo do velho e os vários exemplos de Oliver Sacks que fala do mundo individual de cada um e como este mundo muda por efeito de acontecimentos. Então o analista deverá proporcionar um ambiente que facilite este permanente saber processual de si mesmo. Não deve tentar encaminhá-lo para nenhum lugar, mas esperar que ele, o analisando, a partir do conhecimento de si decida por onde e como quer ir. Se o analisando pedir auxílio nesta busca e nesta pesquisa o analista certamente não deverá se omitir. 3 – Finalmente, a fala de Deleuze sobre Fanny abre mais um campo de reflexão no campo humano/psicanalítico, isto é, no campo do ser, estar e atuar no mundo. Repetindo a fala de Deleuze: “E com Fanny, acho que também não é um problema. Mesmo se para ela...Não sei...É difícil imaginar o que teria feito a pessoa que ama se tivesse vivido outra vida. Suponho que Fanny teria gostado de viajar. Ela certamente não viajou como talvez tenha desejado. Mas o que ela descobriu que não teria descoberto se tivesse viajado? Como ela teve uma formação literária muito forte, quantas coisas ela descobriu em romances esplendidos que valem por mil viagens? Claro que há problemas, mas estão acima de minha compreensão” (p.4). Comentário: Fanny escolheu o amor, perdeu as riquezas das viagens, mas descobriu as riquezas da literatura. Sua vocação seriam a viagem e o amor. Ela poderia ter escolhido a viagem e encontrar o amor nas viagens. Ela escolheu o amor e encontrou as viagens nos livros. Não há um único destino possível e inelutável. O destino é feito de circunstâncias momentâneas. Em dado momento vários caminhos se apresentam. Não existe aquele que é o certo. Será o conjunto de forças atuantes que fará a pessoa escolher este ou aquele caminho. Ao analista cabe facilitar ao analisando perceber quais são as forças atuantes. Ao analisando cabe escolher o caminho.  

                                                                     Nahman Armony      

AMOR E COMPROMISSO


         “Até que a morte os separe” era (e ainda é) uma frase dita pelo padre ao consagrar um casamento e tem o significado de um pacto irreversível, o de permanecerem juntos “na saúde e na doença, no infortúnio e na felicidade, até que a morte os separe”. Está embutida na idéia de infortúnio os desentendimentos menores e maiores, as pequenas e grandes incompatibilidades que ocorrem na situação de casal. O compromisso aponta para um além da manutenção do amor; também fala da indissolubilidade da união de duas pessoas que ficam amarradas para sempre e que portanto de alguma maneira deverão se suportar aconteça o que acontecer. Porém os tempos estão mudando. Como muito bem disse nosso grande poeta pop/erudito Vinicius de Moraes a respeito do amor: “que não seja imortal posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. Ao infinito no tempo (o eterno), Vinicius contrapõe um infinito em profundidade. Se no passado a assunção de um compromisso “para sempre” era a regra, hoje os casais admitem a possibilidade de um encontro sem previsão de término. No entanto, permanece latente na maioria de nós o desejo de eternidade, de constância, de solidez, de “envelhecer juntos”, de um companheiro para sempre. Tendo desaparecido de cena o contrato formal, ou mesmo informal (os casais já não mais dizem para sempre), haveria alguma coisa que permitisse vislumbrar uma indissolubilidade? Nestes tempos de narcisismo egoísta e superficialidade de sentimentos se algo incomoda o mais fácil é descarta-se do estorvo. Já não existe um compromisso assumido perante a sociedade ou perante o outro de manter a relação. A tolerância às diferenças, às susceptibilidades e idissioncrasias está mais para zero do que para infinito e, em não havendo um comprometimento formal ou informal a relação se desfaz. No entanto encontramos na maioria das pessoas, ao lado do narcisismo egoísta e superficial um anseio profundo de uma relação sólida, de um amor verdadeiro e eterno. A ausência de compromisso facilita a separação quando alguma coisa vai mal na convivência, sem que o casal se esforce por superar o desentendimento. Como então atender ao anseio profundo de segurança fora da idéia de obrigação contratual?
         Vislumbro duas possibilidades: a primeira é quando o desejo de viver em companhia de um amor é tão grande que o casal encara o sofrimento que os desentendimentos causam como menos aflitivos que uma vida solitária. Em nome do desejo de ter um companheiro para sempre se faz um esforço de superação das desavenças. A outra possibilidade, mais romântica, é quando a relação do casal é tão infinita (no sentido do verso de Vinicius de Maraes) que todo rompimento é seguido de um retorno. Após algumas experiências repetitivas de separação-retorno o casal conforma-se com os periódicos mal-estares que acontecem entre eles e os superam, pois sabem que mais cedo ou mais tarde retornarão. Em uma coluna anterior eu usei a expressão “amor visceral” para falar de um afeto cujo protótipo é a relação mãe-filho. Assim como a mãe sente o filho como uma parte sua, no amor visceral os amantes sentem-se parte um do outro não sendo admissível a idéia de separação. Vemos assim que não é só o compromisso formal que mantém duas pessoas juntas para o resto da existência. Também a valorização de um amor a dois, de uma companhia constante e a existência de amores viscerais provocam este efeito. Com a experiência as pessoas aprendem que o amor estável é imensamente reconfortante. Até certo ponto é compensador suportar as susceptibilidades, os desencontros, as agulhadas na autoestima, as eventuais farpas, desde que se consiga superar estas questões pela fala ou pelos comportamentos compensatórios. As pesquisas psicológicas e as neurociências têm confirmado isto. Portanto, amigos, mãos à obra.

                                                                                                      Nahman Armony

                                                                  


AS AMIGAS

          Quando,
              nas manhãs do Rio
       Passo pela Lagoa Rodrigo de Freitas
       Uma grande árvore esquinal
       Baloiça seus galhados braços
       E me cumprimenta:
       Bom dia! Bom dia!


       Suas irmãs enfileiradas, em coro repetem:
       Bom dia! Bom dia!

      
       E eu sigo meus caminhos
       De asfalto e concreto

       Suavizados pelo verde...


                                    Nahman Armony     


          
    

EROS/THANATOS

EROS/THANATOS
Uma exegese e uma pragmática de
“Além do Princípio do Prazer”

 

 

Nahman Armony





“Além do princípio do prazer”1, trabalho no qual Freud desenvolveu suas idéias sobre pulsão de vida, pulsão de morte, compulsão à repetição, etc. é segundo ele próprio, um trabalho que se nutre de especulação2. A atividade especulativa difere por sua natureza da atividade raciocinante. Ela permite-nos a suprema ousadia de avançar por espaços desconhecidos, liberando novas formas de pensamento e sensibilidade. Enquanto a Razão nos mantém atados ao conceito – abstração das realidades estéticas – o Pensamento nos fornece idéias que estão fora de senso comum. Eros/Thanatos produtos do pensamento e não da Razão, são idéias e não conceitos3.
Existe, sem dúvida, um parentesco destas idéias com as idéias platônicas. Delas diferem por não se pretenderem reguladoras nem modeladoras. Enquanto na filosofia platônica idéias são essências perfeitas e exatas subsumindo contingências inexatas, as idéias freudianas serão aqui tratadas como essências anexatas subsistentes, idéias sentido. Como tais, são idéias nômades, o que as torna adequadas ao turbilhão mutativo e paradoxal do devir. É este nomadismo que nos permitirá, neste momento, arrancar as idéias da região do pensamento, levando-as, com as inevitáveis modificações de passagem, para o plano da sensibilidade, onde poderemos criar uma base experiencial inicialmente convencional para logo após ultrapassá-la e assim nos introduzir nos vôos especulativos de Freud.
Consideramos pois, uma situação muito simples. Um homem acaba de acordar. Sobre este tema teçamos duas idealizações: na primeira, nosso herói já acorda esperto, ativo, com disposição para a luta, pensando alegremente nos desafios que terá de enfrentar durante o dia, nas situações novas com as quais irá se defrontar; esta expectativa atiça-o, fá-lo sentir-se vivo, capaz, potente; ele crê na sua inteligência e inventividade para dar conta do inesperado que certamente surgirá. Sente-se forte e portanto capaz de tirar prazer do ato de lutar. Regozija-se com a expectativa de enfrentar situações novas como oportunidade de utilizar os seus poderes e capacidades; anseia pelos estímulos que a vida traz, pois isto fá-lo-á sentir a voluptuosidade de movimento, um movimento em si, já jubiloso, mas que ainda mais se o torna na experiência de transformação, criatividade e potência. Neste levantar-se para a luta, nosso herói encontra adversários e aliados, amigos e inimigos, simpatias e antipatias, amor e ódio, formando uma malha de relações que o inclui necessariamente em uma comunidade mais ampla. Estamos diante de Eros, a pulsão de vida a tecer sua rede, unindo células individuais em corpos maiores numa atividade sem fim. Eros, de corpo escancarado para os estímulos, incluindo-os em sua matéria, perene transmutação. Eros-hólons, organizações individuais que se reúnem em organismos maiores sem perder sua individualidade. Eros, a raiz das complexificações, das sínteses, dos agrupamentos. Eros, idéia que atravessa as várias possibilidades de manifestação da matéria/energia dando sentido a uma gama variada de acontecimentos, desde aqueles promovidos pelas forças de atração da matéria inanimada (força da gravidade, forças eletromagnéticas etc.) até aqueles dependentes de sentimentos humanos gregários, tais como o amor, a sexualidade, o carinho, a solidariedade, etc.
Na outra variante, nosso personagem acorda vagarosamente, espreguiça-se languidamente, maldiz a necessidade de ter de se levantar pois preferiria ficar gozando as delícias da modorra em que se encontra. Seu desejo é de relaxamento, de ausência de preocupação; nada de atividade e lutas; elas o incomodam, cansam, amedrontam, fazem-no quase sofrer. Seu desejo é ser esquecido pela vida, pelo mundo e pelos homens para poder continuar gozando daquele maravilhoso nirvana, por onde não passa nem leve aragem de agitação. Se pudesse passaria o resto de sua vida em repouso naquela cama, naquela modorra, naquele paraíso despido de movimento, de preocupações. Horroriza-se diante de qualquer tentativa de se lhe levar algum problema, alguma situação dúbia, optativa, que exija resoluções. Estamos diante de Thanatos, a pulsão de morte. Pensamos então em uma individualidade fusionada com a absoluta imobilidade do todo da natureza-mater, penetrada por um cosmos indiferenciado, dissolvida no universo; um indivíduo desativado, apassivado, entregue, desindividualizado. Estamos diante de paz, tranqüilidade, morte, indiferenciação, nirvana. A natureza inerte chama-o para o seu seio; a Grande-Mãe apaziguadora protege-o, embala-o e desintegra-o em seu corpo magno-magnífico. Os braços acalentadores da mulher amada tranqüilizam-no, trazendo-lhe confortos calmosos. Thanatos, pulsão de morte, a grande igualadora e pacificadora, a desintegradora que conduz à indiferenciação. Thanatos que, mais que repulsão, é entropia, tendência ao pagamento de todas as diferenças.
Pensadas a partir da sensibilidade, pulsão de vida e pulsão de morte apresentam semelhanças e diferenças. Semelhança na tendência à integração no Todo e diferença na forma de realização da integração; na pulsão de vida cada elemento conserva sua individualidade e na pulsão de morte perdem-se os limites diferenciadores das individualidades. Esta característica que têm as pulsões de impelir o organismo para a integração no Todo é um aspecto fundamental do que Freud chama de “compulsão à repetição”. Esta expressão, inicialmente um conceito abstraído da clínica, ganha aqui o fórum de uma idéia diretamente vinculada à idéia de pulsão. No pensamento freudiano, a Totalidade é a condição originária; a pulsão ao perseguir o Todo estaria buscando recuperar/repetir um estado primevo; por isto mesmo Freud considera as pulsões conservadoras. Se o leitor reler minha descrição inicial de pulsão de vida dificilmente a considerará conservadora. Portanto, não é suficiente o plano de sensibilidade para alcançar a ideação freudiana de pulsão, já que ela não esclarece a característica conservadora que possui. Mas, assentados neste primeiro plano, estamos agora em melhores condições de acompanhar Freud em suas articulações especulativas.
Em sua primeira elaboração da compulsão à repetição Freud a considerou um substituto da rememoração e, por conseguinte, esperava que o trabalho de desrecalcamento e conscientização fizesse desaparecer a necessidade de repetir4. Como esta esperança só precariamente se cumpriu, Freud, ainda que mantendo o plano fenomenal de compreensão-explicação, enveredou por caminhos imaginativos-ideativos. Iniciemos pelas suas especulações sobre experiências biológicas realizadas com organismos unicelulares. Citando Freud: “As experiências com os protistas já demonstraram que a conjunção, isto é a coalescência de dois indivíduos que se separam logo após sem que qualquer divisão celular subseqüente ocorra, tem efeito fortalecedor e rejuvenescedor sobre ambos. Nas gerações posteriores, não mostram sinais de degeneração e parecem aptos a opor resistência mais prolongada aos efeitos prejudiciais de seu próprio metabolismo. Essa observação isolada pode, penso eu, ser tomada como típica do efeito produzido também pela união sexual. Mas, como é que a coalescência de duas células apenas ligeiramente diferentes pode ocasionar essa renovação da vida? O experimento que substitui a conjunção dos protozoários pela aplicação de estímulos químicos ou mesmo mecânicos (cf. Lipschutz, 1914) permite-nos dar o que é, indubitavelmente, uma resposta conclusiva a essa pergunta. O resultado é ocasionado pelo influxo de novas quantidades de estímulo. Isto condiz bem com a hipótese de que os processos vitais do indivíduo levam, por razões internas, a uma abolição das tensões psíquicas ao passo que a união com a substância viva de um indivíduo diferente aumenta essas tensões, introduzindo o que pode ser descrito como novas ‘diferenças vitais’ que devem então ser vividas”5.
Se neste momento imobilizarmos o fluxo de seu pensamento, a pulsão de morte aparecerá, filosoficamente, como Ser Subsistente, enquanto que para Eros ficará reservado um papel acidental-contingente.É neste ponto que se insere sua famosa afirmação de que as pulsões de autoconservação, guardiãs da vida, são também lacaios da morte, o que significa que todo organismo almeja morrer, porém à sua própria maneira. Mas a biologia é um mero porto de decolagem da ideação freudiana. Não fora assim Freud ter-se-ia detido na contradição existente entre imortalidade celular e pulsão de morte. Justamente não o faz por não estar pensando biologicamente; Freud transcende os fatos e interpretações biológicas realizando o que se pode chamar de uma metabiologia, uma especulação que se vale de biologia, porém ultrapassando-a Da mesma maneira, o que se segue não será uma cosmogonia, mas uma metacosmogonia.
Nos tempos imemoriais havia uma matéria inanimada contínua6. Forças cósmicas agindo sobre esta matéria, dividiram-na, individualizaram-na e deram-lhe vida. Era porém uma vida muito precária que logo retornava ao inanimado(pulsão de morte). Só aos poucos foi-se fixando na matéria aquilo que pode ser chamado de pulsão de vida, uma tendência a manter e ampliar a vida adquirida. Esta pulsão de vida, de início tão frágil, acaba por se afirmar diante da pulsão de morte, deixando de ser mero acidente para ganhar o estatuto de Ser Subsistente, igualando-se à pulsão de morte. No plano metacosmológico a pulsão de vida independentiza-se de pulsão de morte.
Mantém-se, porém, a ligação de origem. Assim como Eva, formada por uma costela de Adão, fica a ele indissoluvelmente ligada, assim a pulsão de vida, nascida da pulsão de morte, não mais se liberta desta origem. Não é por acaso que estamos penetrando na área mítica; é nesta região que a intuição de Freud, abandonando os suportes materiais, cósmicos e biológicos exprime uma arcaica aspiração. Freud vale-se do mito dos seres completos/imcompletos, contando por Aristófanes em “O Banquete”7 de Platão, para revelar a íntima união pulsão de morte/pulsão de vida: inicialmente, três eram os gêneros existentes: o primeiro constituído por duas partes masculinas, o segundo por duas femininas, e o terceiro por uma parte masculina e outra feminina. Eram porém seres muito presunçosos “de uma força e de um vigor terríveis” e que se voltaram contra os Deuses tentando destronar Zeus. Como castigo foram cortados, divididos em duas metades: “Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer um longe do outro... E então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois de curar a natureza humana... A ninguém com efeito pareceria que se trata de união sexual, e que é porventura disso que um gosta da companhia do outro assim com tanto interesse; ao contrário, que uma coisa quer alma de cada um, é evidente... Se diante deles, surgisse Hefesto e com seus instrumentos lhes perguntasse: Que é que quereis, ó homens, ter um do outro?, e se, diante do seu embaraço, de novo lhes perguntasse: Porventura é isso que desejais, ficardes no mesmo lugar o mais possível um do outro, de modo que nem de noite nem de dia vos separeis um do outro? Pois se é isso que desejais, quero fundir-vos e forjar-vos numa mesma pessoa, de modo que de dois vos torneis um só e, enquanto viverdes, como uma só pessoa, possais viver ambos em comum, e depois de morrerdes, lá no Hades, em vez de dois ser um só, mortos os dois numa morte comum; mas vede se é isso o vosso amor e se vos contentais se conseguirdes isso. Depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um só diria que não, ou demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que há muito estava desejando, sim, unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só. O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; e portanto ao desejo e procura do todo se dá o nome de amor”8.
Até aqui percorremos com Freud o seguinte caminho: na metabiologia- pulsão de vida tributária da pulsão de morte; na metacosmogonia- pulsão de vida independente da pulsão de morte, no mito- pulsão de vida mesclada à pulsão de morte. Em suas considerações finais de “Além do Princípio do Prazer”, Freud reúne o cosmogônico, o biológico e o mítico em um mesmo movimento do devir: “Seguiremos a sugestão que nos foi oferecida pelo poeta-filósofo e aventurar-nos-emos pela hipótese de que a substância viva, por ocasião de sua animação, foi dividida em pequenas partículas, que desde então se esforçaram por reunir-se através dos instintos sexuais? De que esses instintos, nos quais a afinidade química da matéria inanimada persistiu, gradualmente conseguiram, à medida que evoluíam pelo reino dos protistas, sobrepujar as dificuldades colocadas no caminho desse esforço por um ambiente carregado de estímulos perigosos, estímulos que os compeliram a formar uma camada cortical protetora? De que esses fragmentos estilhaçados de substância viva atingiram dessa maneira uma condição multicelular e finalmente transferiram o instinto de reunião, sob a forma mais atualmente concentrada, para as células germinais?”9. Se a substância inanimada ao se transformar em viva foi estilhaçada em pequenas individualidades, se essas pequenas individualidades se transformaram em organismos complexos transferindo o “instinto de reunião” (Eros ou pulsão de vida) para as células germinais, e se a pulsão de vida contida agora nas células germinais busca recuperar a Totalidade primeva, então pulsão de vida e pulsão de morte são duas idéias intimamente imbricadas que, neste momento, se miscigenam. Assim, Freud engloba em uma só visada do vir-a-ser, a morte e a vida, o animado e o inanimado, o cosmogônico, o biológico e o psicológico. Pulsão de vida e pulsão de morte revelam-se idéias nômades subsistentes, podendo pois sustentar pequenas fábulas, versões modernas de mitos ancestrais de completude/incompletude: quando somos muitos jovens esperamos encontrar no par amoroso o nosso complemento, “a outra metade da maçã”. De decepção em decepção aprendemos não existir, na vida real, este encaixe perfeito; o desejo, porém, permanece em nossa fantasia inconsciente. Continuamos procurando no parceiro a tranqüilidade, o relaxamento, a igualdade e encontramos a diferença, o estimulante, o espicaçante. Procuramos a paz, o nirvana, a “morte” e encontramos o estímulo, o conflito, a vida. Na clínica psicanalítica deparamo-nos com a mesma espécie de comportamento, a mesma busca de paz, completude, nirvana. O analisando insiste em conseguir estados de fusão, simbiose, complementação, nos quais analista/analisando seriam um único ser, esperando assim dar aquele suspiro de alívio de quem, liberto das tensões da vida, encontrou ou paraíso. O analista, porém, a partir de sua alteridade, quebra a expectativa do analisando introduzindo na relação a tensão, o conflito, a vida. A reiterada repetição destes desencontros acaba por reprimir os aspectos ligados à pulsão de morte, só (aparentemente) subsistindo a pulsão de vida.
A solidariedade holística sugerida por Freud em “Além do Princípio do Prazer” leva-nos a encontrar o mesmo fenômeno em outras esferas, além da psicológica: a matéria viva ter-se-ia em certo momento independentizado da matéria inanimada; as células germinais ter-se-iam independentizado do corpo somático e entrado em conflito com ele. É preciso porém ultrapassar o plano do fenômeno para alcançar, através da ideação, um mais fundamental entranhamento das pulsões de vida com as pulsões de morte; é o que Freud nos possibilita fornecendo-nos instrumentos para darmos um sentido mais abrangente aos aconteceres do cotidiano. Na vida, como na terapia psicanalítica, negar-se a simbiose a quem dela necessita é lançá-lo precocemente numa alteridade esmagadora que poderá destruí-lo. Por outro lado, manter indevidamente uma situação simbiótica com quem clama por individuação é uma forma de mata-lo em vida, arruinando suas possibilidades de se abrir para o mundo, para novos estímulos. Podemos ainda reconhecer situações de alternância e de coexistência simbiose/individuação. Uma periódica realização fantasmática de união simbiótica, de perda de limites, de união com a Totalidade é revigoradora para quem consegue atingi-la e dela se retirar. Pulsão de vida e pulsão de morte seriam duas faces de uma moeda em constante rodopio, sem que jamais pudéssemos distinguir uma da outra. Há muitos anos, assisti a uma instigante peça teatral, de cujo nome, infelizmente não lembro. Tratava-se de um grupo de pessoas que, perseguido, refugia-se em uma casa. Todos mantém a perspectiva de uma volta à vida, exceto um que enlouquece. Terminando o período de perseguição, as pessoas saem para recompor sua vida, salvo o que enlouqueceu. Este permanece recluso e vivencia sua liberdade balançando-se numa gangorra infantil levada por ele aos pontos pendulares extremos; os ciclos oscilatórios são realizados com uma expressão de felicidade e beatitude máximas, não isenta, porém, de desespero. Lá estão sua prisão e sua liberdade, sua vida e sua morte. O próprio movimento da gangorra inclui um tempo morto, parado, que paradoxalmente, faz desaparecer a morte. Estamos em um tempo absoluto onde não há morte nem vida; na eternidade do imobilismo confundem-se vida e morte. Em contraste, seus companheiros ao saírem da reclusão e dirigirem-se para o mundo, encaminham-se também para a morte: o tempo absoluto agora cronologiza-se, vida e morte entredevoram-se e a morte se faz presente a cada passo dado em direção à vida. Caminha-se para a vida e para a morte.


NOTAS

1-Freud, S. (1920) – “ Além do Princípio do Prazer” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XVIII, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1976.

2-“O que se segue é especulação, amiúde forçada, que o leitor tomará em consideração ou porá de lado, de acordo com sua predileção individual. É mais uma tentativa de acompanhar uma idéia sistematicamente, só por curiosidade de ver até onde ela levará”. Freud, S., “Além do Princípio do Prazer”, p. 39.

3-“...é impossível perseguir uma idéia desse tipo exceto pela combinação repetida de material concreto com o que é puramente especulativo e, assim, amplamente divergente da observação empírica”. Ibid, p. 80.

4-Ver Sigmund Freud: “Recordar, Repetir e Elaborar”. Edição Standard Brasileira, Editora Imago, Rio de Janeiro.

5-Freud, S. (1920) – “Além do Princípio do Prazer”, ibid, p. 75/76.

6-Ibid, pág. 56 e pág. 79.

7-Plantão – “O Banquete”, Editora Difel, 1986.

8-Ibid – p. 128-132.


9-Freud,S. – ibid, p. 79.

A INDECÊNCIA PODE SER SAUDÁVEL


Descobri que D. H. Lawrence, autor do famoso livro “O amante de Lady Chatterley”  tem um poema cujo título é “A indecência pode ser saudável”. Título instigante que me pôs a pensar. Resolvi começar pelo significado da palavra indecência. Ela é o oposto da decência. Decência segundo o dicionário de Houaiss é “o que está em conformidade com os padrões morais e éticos da sociedade”. É uma definição ampla se pensarmos que indecência é na grande maioria das vezes usado no sentido sexual. Neste sentido indecência é todo ato de natureza sexual que desafia a repressão imposta pela moral social. A sexualidade fica então aprisionada numa camisa de força não podendo se manifestar. Como disse o próprio Freud isso gera um mal-estar difuso assim como gera sintomas visíveis e dizíveis que atrapalham a vida sexual.
O sentimento de indecência tem um duplo aspecto. Ele nos protege de sermos inconvenientes ou grosseiros e nos faz sofrer com inibições e sintomas que interferem em nossa vida sexual.  A inconveniência e grosseria têm a ver com os valores da cultura. O que é inconveniente numa cultura pode não ser em outra. Este valor é inculcado desde a mais tenra infância pela ação social sendo por isso mesmo vivido como uma naturalidade, como uma evidencia em si mesma, como uma verdade não questionável. O sentimento de indecência se manifesta sem a participação da vontade individual. Seu aparecimento é automático e está profundamente entranhado no ser da pessoa. Esta não participação da vontade perpetua a inibição e o aprisionamento dos desejos sexuais e dificultam o relacionamento erótico tornando-o complicado e sofrido.
É, portanto de toda conveniência que a pessoa possa retirar a indecência de seu recinto sagrado. Não para praticar uma iconoclastia cega, mas para apreciar o valor que tem para a pessoa. A pergunta seria: o que é para mim sexualmente decente e o que é indecente? Vale, porém a pena recuar mais ainda as perguntas: o que é indecente para os animais e para o bebê? A resposta que de imediato aparece é que nada é indecente para estas duas categorias. E por que os atos se tornam indecentes?
A resposta a esta pergunta exigiria um longo estudo político, histórico e ético. E o que nos interessa aqui é que a ideia de indecência mais atrapalha que ajuda na qualidade de vida. Precisaríamos então encontrar um caminho de desativação desta ideia. Será que isto é possível?
No filme “Um divã para dois” um casal que há muitos anos não tem relações nem carinhos sexuais procura um terapeuta sexual na esperança de salvar o casamento. Fica claro que há muitos problemas psicológicos envolvidos. Porém, além deles, existe um pudor, uma vergonha quanto a algumas questões da sexualidade. Existem certas “indecências” que não devem ser feitas, que não podem acontecer. Pois bem, a terapia se orienta mais no sentido de fazer o casal enfrentar situações de indecência estabelecendo exercícios que obrigam a realizar atos sentidos como “indecorosos” do que fazer interpretações sobre as motivações. Esta atitude se justifica exatamente porque o sentimento de indecência preexiste às questões psicológicas que surgem com a convivência de casal, embora estas agravem a situação de dificuldade.
Conheci um adolescente que não conseguia dizer palavrões e que por isso sofria bullying de seus pares. Um dia ele se obrigou a se trancar num quarto e ficou falando palavrões por muito tempo. A repetição deste exercício fê-lo mais íntimo dos palavrões e finalmente pôde falá-los diante de seus colegas de escola. Acredito que esse pequeno acontecimento possa ser inspirador para casais que trazem enraizados no seu ser, sentimentos de indecência.
                                                       Nahman Armony

                                     Publicado originalmente na revista CARAS