CRIATIVIDADE
E SAÚDE
Nahman Armony
Tanto para Freud como para Winnicott há
uma íntima relação entre criatividade e
saúde mental. São, porém concepções que apresentam diferenças.
A primeira das
diferenças está nas conotações da palavra “criatividade”. Freud a usa no
sentido corrente, cotidiano, corriqueiro: a produção de algo novo. É o
significado dicionarizado.
Já Winnicott dá uma
conotação inédita à palavra: criatividade é “criar o que já existe”. Logo
veremos os desdobramentos deste mote. Por enquanto estou querendo distinguir as
concepções destes dois gigantes.
Para o Freud da
primeira tópica a criatividade depende basicamente da sublimação que é a
transformação da libido sexual em energia neutra. Esta então pode ser usada
para outros fins entre os quais está incluída a criatividade. A libido sexual
ao se transformar em energia neutra ou em libido narcísica cede parte de sua
força pulsional. A criatividade, pois se alimenta da sexualidade diminuindo a
força desta última. Citação em Leonardo da Vinci, v.11: “Constatamos a veracidade deste fato se ocorrer uma atrofia estranha
durante a vida sexual da maturidade, como se uma parcela da atividade sexual
houvesse sido agora substituída pela atividade do impulso dominante”.
Este mesmo sequestro
da sexualidade continua sendo postulado por Freud na segunda tópica. Citando:
(O Ego e o Id”, v.19 de 1924, cap.III intitulado “O Ego e o Superego”): “Em verdade, surge a questão, que merece
consideração cuidadosa, de saber se este não será o caminho universal à
sublimação, se toda sublimação não se efetua através da mediação do ego, que
começa por transformar a libido objetal sexual em narcísica e, depois, talvez,
passa a fornecer-lhe outro objetivo.” Em 1932, na Conferência 32 Freud
reafirma a vinculação entre as pulsões dizendo que uma pulsão pode ser
substituída por outra. O aumento da força de uma implica em um decréscimo na
força da outra.
Para Winnicott
criatividade é uma força primária e portanto não se exerce às expensas da
sexualidade. Sexualidade e criatividade são duas potências independentes e fazem
parte daquilo que Winnicott chamou de “força vital”. Força vital é o
correspondente à pulsão de vida de Freud.
Winnicott dá uma
conotação original à palavra criatividade dizendo que criar é criar o que já
existe. A situação matriz que ele descreve é a de um bebê com fome alucinando
um seio que o saciará. Se, neste instante a mãe comparece com o seu seio cheio
de leite a vivência do bebê é de que ele criou o seio. Estou simplificando uma
situação complexa e continuarei nesta linha, pois é preciso primeiro
simplificar para entender bem os conceitos deixando para depois a complexidade
dos acontecimentos. Então, para nosso objetivo o importante aqui é justamente a
vivência de ter criado o seio, isto é, ter “criado o que já existe” que é o refrão
de Winnicott. Na sua linguagem há um encontro do subjetivamente concebido (o
seio alucinado) com o objetivamente percebido (a existência real do seio).
Tendo o bebê criado o seio, este lhe pertence, é uma parte sua, mesmo que
distinga o objeto seio do seu corpo próprio. Agora apresentarei uma situação
para contrastar a criatividade que liga indissoluvelmente o ser humano ao mundo
com as consequências da ausência deste tipo de criatividade. Imaginemos duas situações:
na primeira o bebê está com fome e imagina um seio que o saciará. O seio
aparece. Ele criou o seio. Na segunda o bebê não está com fome, mas a mãe
insiste em lhe dar o peito, pois dentro de seu esquema estaria na hora de
fazê-lo. Este seio não é inventado pelo bebê, mas imposto pela mãe, pelo mundo
externo. Ele é objetivamente percebido, mas não subjetivamente concebido. O
bebê ou se revolta ou se submete ou ambas as coisas. De qualquer forma o seio é
um objeto pelo qual, naquele momento, o bebê tem aversão, pois é sentido como invasivo,
agressivo. Ele então recolhe o seu desejo verdadeiro e se submete à mãe para satisfazê-la.
Ele não mama com o seu verdadeiro self, mas com o conformismo de um falso self.
Ele não se sente afetivamente, corporalmente, ligado a esse seio. Há um
desligamento emocional que faz a amamentação perder o seu caráter afetivo.
Torna-se um ato instintivo e intelectual.
Um outro exemplo para
reforçar a compreensão do conceito e para preparar a teorização que se seguirá.
O primeiro exemplo foi do campo das necessidades básicas. Este segundo exemplo
será do campo da ética, ou, como Winnicott prefere, da moral. Winnicott usará a
religião para expor seu pensamento (MORAL E EDUCAÇÃO do livro O AMBIENTE E OS
PROCESSOS DE MATURAÇÃO). Para crer em alguma coisa a criança precisa de estar
subjetivamente disposta a crer. Se ela teve pais suficientemente bons e
confiáveis ela neles acredita, internalizando em sua subjetividade a
insinuância “crer em”. Ela está pronta a escolher e abrigar, ao menos
parcialmente, um dos objetos de crença que a cultura oferece. Em encontrando
este objeto (seja uma religião, uma filosofia, uma ideologia, etc.) que é
objetivo por ser consensual haverá o encontro do subjetivamente concebido com o
objetivamente percebido. Um encontro frutuoso do objetivo com o subjetivo. A
fome moldou um seio subjetivo que ao se encontrar com o seio objetivo criou um
forte elo entre o sujeito e o mundo. A “crença em” subjetiva, ao encontrar um
objeto consensual apropriado também vincula o objetivo ao subjetivo.
Da mesma forma que uma
mãe intrusiva impõe o seio ao bebê tornando-o um ser submisso, estorvando sua criatividade, uma sociedade intrusiva
impõe ideologias. Ambas agem no sentido de obter uma submissão impeditiva do
uso da criatividade. Ambas provocam uma dicotomia, dissociando o falso do
verdadeiro self, intelectualizando o mundo e tornando-o fútil, afetivamente sem
sentido. Tal como não se deve impor o seio, também não se deve fazê-lo com a
ideologia. Deve-se esperar que o desejo de “crer em” faça com que o ser humano busque
uma ideologia adequada a sua personalidade que então terá elementos
subjetivamente concebidos e objetivamente percebidos. Essa ideologia estará,
pois situada no espaço transicional. Portanto, fora da dissociação falso
self/verdadeiro self.
Um último exemplo: a
aurora, o pôr do sol e outros espetáculos da natureza podem deixar o espectador
indiferente ou deslumbrado. Se o espectador que tem fome de comida, fome de
ideologia, também tiver fome de beleza ele contemplará com enlevo as
manifestações da natureza. Sua subjetividade irá de encontro à objetividade do
acontecimento tingindo-o com suas emoções. Ele sabe que o sol é uma estrela que
descreve uma trajetória. Mas ao mesmo tempo é uma tocante dádiva dos deuses.
Cada aurora será vivida de forma diferencialmente diversa e semelhante, pois o
complexo subjetivo de uma ocasião é diferente do complexo subjetivo de outra.
Cada aurora será, pois recriada tantas vezes quantas for vista. Por outro lado é
possível não se ligar à beleza do acontecimento, ficando-se restrito à
objetividade sol.
Com estes exemplos eu quis distinguir
modos de ser afetivo e desafetivo. Este último busca objetificar a existência. Mas
um mundo puramente objetivo perde sua razão de ser, deixa de fazer sentido,
provocando uma sensação de tédio, de futilidade, de descolamento. O desapego
pode funcionar por algum tempo, mas em geral cobra um pesado tributo. Repetindo
e acrescentando: uma pessoa não criativa (no sentido winnicottiano) desliga-se
afetivamente do mundo que lhe aparece sem sentido, fútil, estranho. Sua ligação
com ele torna-se intelectualizada, ocupando o polo objetivo do espaço
transicional e portanto, paradoxalmente, fora do espaço transicional. É o seu
falso self que domina o psiquismo estando o verdadeiro self dissociado e
disfuncional. A sensação de ser um E.T. geralmente provoca um sofrimento que
pode levar até o suicídio. Certamente isto não é saúde. Uma condição necessária
para a saúde de uma pessoa é o
sentimento de pertencer ao mundo e o mundo lhe pertencer. E isto só acontece
quando a pessoa cria o que já existe que é o que Winnicott chama de
criatividade.
Bem, esta é a minha contribuição no que
diz respeito às relações entre criatividade e saúde mental. Mas Winnicott tem mais coisas interessantes a
dizer: na p.237 de seu livro “Pensando sobre crianças” ele afirma que a saúde
mental da criança não tem a ver com a presença ou a ausência de sintomas. A
vida e o desenvolvimento individual são tão cheios de vicissitudes que
inevitavelmente haverá sofrimentos. Se a provisão ambiental for suficientemente
boa, o individuo vencerá os percalços do desenvolvimento e prosseguirá em seu
caminho para a maturidade. Isto significa que a criança deverá ser considerada
em um contexto maior no qual estarão presentes entre outros fatores o ambiente
e desenvolvimento futuro. Eu acrescentaria que quando se trata de adultos deverá
existir uma provisão ambiental internalizada que sofrerá variações dependentes
do acolhimento do ambiente externo, isto é, da provisão ambiental externa.
Mas Winnicott tem mais
coisas interessantes a nos dizer. Tentarei resumir e falar com minhas próprias
palavras o que encontrei nas páginas 136 e 137 do livro “A Família e o
Desenvolvimento Individual”: Winnicott identifica a relativa maturidade à
saúde. Para amadurecer o ser humano necessita de um ambiente suficientemente
bom (um ambiente provedor) que acolha e lide adequadamente com as dificuldades
do crescimento pessoal. De início este ambiente é a mãe, depois a família
restrita, mais adiante a família estendida, a escola, e finalmente as
instituições e agrupamentos sociais. Na medida em que cresce, o ser humano vai
criando uma provisão ambiental interna que lhe permite, até certo ponto, suportar
um ambiente não acolhedor. Vou citar um trecho do artigo “Família e maturidade
emocional” que consta do livro acima citado: “Esse raciocínio identifica a maturidade adulta à sanidade psiquiátrica.
Pode-se dizer que o adulto maduro é capaz de identificar-se a agrupamentos ou
instituições sociais sem perder o sentido da continuidade pessoal e sem
sacrificar em demasia seus impulsos espontâneos; isto é uma das raízes da
criatividade” (p. 137). Acredito
que Winnicott esteja dizendo que para ser criativo é preciso ser espontâneo. Na
submissão a pessoa não pode ser criativa, pois tem de obedecer a preceitos que
lhe foram impostos. A criatividade é o contrário da submissão e da revolta. A
revolta contra a submissão interna é a luta para alcançar a criatividade. A
criatividade necessita da espontaneidade. A submissão necessita da obediência
irrestrita. A submissão leva a um modo de ser neurótico e a espontaneidade a um
modo de ser borderline. Citando: “Surge a
questão: o que é normalidade? Bem, podemos dizer que, na saúde, o indivíduo foi
capaz de organizar suas defesas contra os conflitos intoleráveis da realidade
psíquica pessoal, mas em contraste com a pessoa doente de psiconeurose, a
pessoa sadia é relativamente livre da repressão maciça e da inibição do
instinto. Na saúde também, o indivíduo pode empregar todo tipo de defesas, e
mudar de uma para outra, e, na realidade, não apresenta aquela rigidez de
organização defensiva que caracteriza a pessoa enferma. Havendo dito tudo isto, quero sugerir que, clinicamente, o indivíduo realmente sadio está mais
próximo da depressão e da loucura que da psiconeurose”. (Do livro
“Explorações psicanalíticas”, artigo “Psiconeurose na Infância”, p.58). Concordando
com esta citação posso dizer que o borderline brando, menos reprimido e inibido
que o neurótico está em contato mais íntimo com seu inconsciente, fonte de suas
intuições criativas. O neurótico mais defendido, mais inibido e menos
espontâneo tem dificuldades de deixar fluir as intuições, necessitando de um
grande trabalho intelectual para alcançá-las. Freud dizia que aquilo que ele
conseguia com muito esforço através de um raciocínio e elaboração demorados, os
poetas e escritores criativos conseguiam de chofre através da intuição. Essa
situação tem a ver com a camisa de força em que o neurótico está metido e a
relativa liberdade que é atributo do borderline brando. Como disse mestre
Winnicott: a criatividade e a saúde estão mais próximas da loucura que da
neurose.
Obrigado.
6/11/13