Vou usar a palavra cultura como um
conjunto de subjetividades, dúvidas e convicções ideológicas que modelam o
pensamento e a ação de um grupo humano. Vou completar a minha definição com a
do Dicionário Aurélio: “... complexo dos padrões de comportamento, das crenças,
das instituições e doutros valores espirituais e materiais transmitidos
coletivamente e característicos de uma sociedade”.
Sabemos que um de nossos instintos básicos
é o de conservação da vida individual. Pois bem, a força da cultura é tão
poderosa que se sobrepõe a este instinto como no caso dos homens-bomba ou dos
monges orientais que se imolam como forma de protesto e combate. Temos aqui uma
complicação na qual não entrarei por questão de foco e de tempo. Só farei uma
referência: não podemos deixar de considerar que existe um instinto derivado do
instinto de conservação da espécie: o da imortalização da cultura de um grupo.
Nos mamíferos a sobrevivência da espécie
depende também de instintos: um deles é o instinto maternal. Se não houvesse
este instinto dificilmente os filhotes sobreviveriam. (Estou usando instinto na
2ª acepção dada pelo Dicionário Aurélio:
“Forças de origem biológica inerentes aos homens e animais superiores, e que
atuam, em geral, de modo inconsciente, mas com finalidade precisa, e
independentemente de qualquer aprendizado: instinto
gregário, instinto sexual, instinto maternal”. Sem dúvida poderíamos também
usar as expressões instinto de conservação individual e de conservação da
espécie. Não vou entrar aqui na questão da pulsão x instinto, pois esta é uma
longa e difícil querela que não cabe neste trabalho).
Eu
dizia que se não houvesse o instinto maternal, dificilmente os filhotes
sobreviveriam em número suficiente para que a espécie continuasse a existir. No
entanto, houve épocas na história da humanidade em que os bebês e as crianças
eram negligenciados. Isto mostra o poder da cultura que interfere até numa
herança genética básica que é o cuidado pessoal dado aos rebentos pela
genitora.
Há um fator que diferencia o bicho-homem
dos outros bichos. O desenvolvimento do lobo pré-frontal provoca um rearranjo
dos circuitos cerebrais, permitindo o uso da palavra dentro de uma estrutura
linguística, possibilitando o pensamento racional, a fixação mnêmica dos
pensamentos e acontecimentos, a possibilidade de escolhas conscientes que levem
em conta o contexto estrutural e temporal.
Por isso o homem, muito mais que outros
mamíferos, é um ser de cultura. A maneira de criar os filhos é parte da
cultura. Erich Fromm em seu livro “Infância e Sociedade” nos mostra que a
criança é criada e educada para se tornar um adulto adaptado à cultura do
grupo. É o que nos diz também Margaret Mead em seu livro “Sexo e Temperamento”.
Ela estuda três culturas tribais de Nova Guiné. Destas interessa-nos duas: a
Arapesh e a Mundugumor pelo extremo contraste que apresentam. Na sociedade
arapesh encontramos uma cultura maternal de paz, de confiança, de
solidariedade, de mansidão. Eles são “cooperativos, não agressivos, suscetíveis
às necessidades e exigências alheias” (p.267 – “Sexo e Temperamento” de
Margaret Mead). É uma sociedade que tenta excluir de seu meio a agressividade.
Já os mundugumor cultivam a agressividade, a violência, a desconfiança, a
rivalidade, a hostilidade com os membros do mesmo sexo, o extremo egoísmo e
desumanidade, “com um mínimo de aspectos carinhosos e maternais em sua
personalidade”(ibid, p.268) É uma sociedade que tenta excluir a brandura de seu
meio. Estes protótipos de personalidade implicam, nos Arapesh, uma criação em
que os bebês e as crianças são cercados de atenção e carinho. Nas palavras de
Margaret Mead homens e mulheres “unem-se numa façanha comum, que é
primordialmente maternal, nutritiva e orientada para fora do eu, em direção às
necessidades da geração seguinte”(IBID, p.41). Já “o menino Mundugumor nasce em
um mundo hostil, mundo onde a maioria dos membros de seu próprio sexo serão
seus inimigos, onde seu melhor instrumento para o êxito deve ser a capacidade
para a violência...”. Eles tratam seus bebês e crianças de uma forma não
carinhosa, com certo descaso, apenas atendendo as suas necessidades físicas, e
às vezes nem isto.
Eu me estendi na
apresentação destas duas sociedades porque elas nos facilitam falar de
violência e ambiente.
Na tribo Mundugumor a violência é
culturalmente cultivada. Chamarei a esta violência de culturalmente
estruturante e destina-se a incluir o ser humano na cultura de seu grupo. O
homem não violento não tem lugar na sociedade mundugomor. Ou ele abandona a aldeia,
ou mantém-se revoltado por toda a vida, ou se deprime. Algumas pessoas muito capazes
podem conseguir um ajuste que lhes permita uma adaptação precária. Poderíamos
dizer que aqueles que têm um forte componente genético resistem à violência
primária da criação/educação.
Os Mundugumor são um
exemplo exagerado do que acontece nas culturas que conhecemos. Todas elas
apresentam uma violência culturalmente estruturante, uma violência
primária, para a qual cabe bem o termo “educação”. Ela é socialmente aceita
como necessária. É o caso da educação no século 19 em que as crianças em
crescimento eram moldadas por castigos violentos, tornando-se elas próprias
violentas.
A violência
secundária seria aquela não prescrita pela cultura e exercida por uma
pessoa necessitada de descarregar a sua agressividade. Por vezes a violência
primária e a secundária coincidem. Pensemos em um homem do século 19. Ele podia
castigar os filhos por um senso de dever, sem tirar nenhum prazer disto a não
ser o de estar bem educando seus filhos. Mas também podia ser um veículo
conveniente para sua necessidade de descarregar raivas acumuladas.
Provavelmente este segundo seria mais agressivo do que o primeiro, mas não se
poderia acusá-lo de maus tratos. É o caso dos exorcismos na Idade Média que por
vezes matava o exorcizado, ou o do escritor Oscar Wilde preso por
homossexualismo, ou os homens do século passado que castigavam cruelmente seus
filhos.
Para continuar o
artigo necessito esclarecer de que violência pretendo estar falando. Encontrei
no Dicionário Mirador duas definições, uma delas jurídica, que me convêm.
Começarei pela jurídica: “Constrangimento, físico ou moral, exercido sobre
alguma pessoa, para obrigá-la a submeter-se à vontade de outrem: coação”. A
outra definição: “Qualquer força empregada contra a vontade, liberdade ou
resistência de pessoa ou coisa”. Ora, esta definição jurídica faz-nos enxergar
um cruzamento entre antropologia e psicanálise através do conceito de violência
primária de Piera Aulagnier. Uma citação retirada de uma resenha do livro “A
violência da interpretação” de Piera Aulagnier escrita por Bruno Cancio nos
orientará:
[“Dos conceptos
de importancia establecidos en la obra son los de violencia primaria y secundaria.]
Por violencia primaria se entiende "...lo que en un campo psíquico
se impone desde el exterior a expensas de una primera violación de un espacio y
de una actividad que obedece a leyes heterogéneas al yo..."(3). Se trata
de una acción necesaria y que contribuirá a la futura constitución del yo. A
través de ésta se le impone a la psique ajena un pensamiento, acción o elección
producidos por el deseo de quien lo impone, pero que da respuesta a una
necesidad a quien le es impuesto. De esta forma, se consigue entrelazar deseo
de uno y necesidad del otro, dando lugar a la demanda. El deseo de quien ejerce
la violencia pasará, a partir de allí, a ser demandado por quien la padece.
Por otro lado, violencia secundaria hace referencia a "un exceso
por lo general perjudicial y nunca necesario para el funcionamiento del
Yo"(4) y que se apoya en su precedente, la violencia primaria. En este
caso se trata de una violencia ejercida contra el yo, ya sea por un conflicto
con otro "yo" o con un discurso social que intenta oponerse a toda
suerte de cambios que pudieran producirse en los modelos por él previamente instituídos”.
Winnicott não concorda
com uma criação/educação impositiva como Aulagnier propõe. Um exemplo
esclarecedor nós o encontramos no artigo “Moral e Educação”. Tentando
sintetizar um artigo longo e complexo, consigo dizer o seguinte: Winnicott está
respondendo a uma palestra anterior à sua onde foi citada a seguinte fala de um
reitor para uma criança: “Você acreditará no Espirito Santo às 5 horas desta tarde
ou a espancarei até que o faça”. Os exemplos extremos servem para deixar claro uma
orientação paradigmática que neste caso é um paradigma autoritário não aceito
por Winnicott. Para ele o autoritarismo é uma invasão/intrusão no self do
outro, tornando-o submisso e dependente. Neste artigo ele, confronta o
autoritarismo adoecedor que tenta impor conceitos exteriores à experiência do
outro, com uma experiência interior, uma “crença em” que resulta de uma convivência
suficientemente boa com os pais. Quando
o horizonte se abre para além dos pais, a criança que está crescendo e que
precisa algo maior em que acreditar, é hora dos pais, da escola, da sociedade
apresentarem as diversas possibilidades de crenças existentes, respeitando sua eventual
busca por outra crença que não aquelas que lhe foram mostradas. A imposição é
uma invasão do psiquismo do outro, uma tentativa de dominá-lo, colonizá-lo, tornando-o revoltado, conformado e violento
em vários graus. Mesmo os conformados --- que engolem os traumas advindos das
invasões e os acumulam não sabendo de onde veem, pois a relação
dominador-dominado é frequentemente inconsciente e aceita como algo natural ---
podem ter uma explosão espontânea de ódio indiscriminado geralmente despertada
por um fato insignificante.
Ao invés de tentar
impingir uma crença dever-se-ia, segundo Winnicott, aceitar a criatividade
natural do ser humano. Criatividade tem dois sentidos: um primeiro que todos
nós conhecemos e um winnicottiano que é um paradoxo: criamos o que já existe.
Não é preciso forçar a realidade para dentro da cabeça das pessoas, mas sim
cuidar para que a criatividade de cada um encontre a sua realidade que é um
arranjo pessoal do subjetivamente concebido e objetivamente percebido.
Desenvolverei um pouco
mais a ideia de criatividade winnicottiana. O ser humano cria o que já existe.
Seu exemplo mor é o bebê que ainda não teve a primeira mamada e que ao sentir
fome procura algo que termine com o seu anseio. Este algo é um esboço de seio
que ele virá a conhecer melhor quanto mais com ele se relacionar. A vivência do
bebê é de que foi ele quem criou o seio desde que o seio apareça na hora da
fome. Da mesma maneira a função da sociedade é apresentar diversas alternativas
para escolha aceitando a contribuição de novas opções e não impor, seja por que
meio for, suas crenças. Mesmo porque o ser humano tem um impulso inerente de
pertencimento e precisará escolher um gancho na cultura para exercer sua
criatividade. A imposição, o conformismo e a revolta são combustíveis para a violência.
Precisamos deixar para trás tanto o paradigma autoritário quanto o paradigma
permissivo e aperfeiçoar um paradigma ecológico/poroso/humanitário/holístico.
Ao que parece já nos
adentramos firmemente na psicanálise de inspiração predominantemente winnicottiana.
Sendo eu, antes de tudo, um psicanalista, esta é a melhor contribuição que
posso dar. É claro que os fatores que levam à violência são inúmeros e é
preciso a colaboração de muitas disciplinas para um maior entendimento deste
fenômeno que parece estar se intensificando tanto no nível macro (guerra,
terrorismo, tráfico, repressão violenta, etc.), no micro (assaltos, furtos,
roubos, mortes, balas perdidas, violência doméstica, violências
discriminatórias, etc.) e no nano (dinâmicas bi e plurisubjetivas). Não podemos
esquecer os fatores psicossociais como, por exemplo, as consequências psíquicas
de um sentimento de exclusão das benesses dos mais afortunados que pode levar a
ações violentas, a glamorização dos traficantes e especialmente dos chefes do
tráfico que se tornam figuras fortes de identificação para uma parcela das
crianças e adolescentes das comunidades que eram chamadas de favelas. O que
também vemos são jovens das classes
médias altas exercendo violência através de roubos, ataques a populações
marginalizadas (incendiar índios, atacar mendigos, atacar homossexuais, etc.).
Podemos compreender o comportamento violento dos que se sentem inferiorizados,
excluídos, injustiçados e que necessitam de figuras fortes de identificação e
de uma cultura e ética própria. Mas, e os jovens da classe média alta que têm
acesso ao conforto, diversão e que estão up-to-date com as tecnologias
emergentes? Aqui é onde melhor a psicanálise pode dar a sua colaboração.
O ritmo atual de vida
faz com que tanto o pai quanto a mãe fiquem, por muito tempo, ausentes do lar.
Com isto a assistência afetiva aos filhos sofre danos. Isto é especialmente
grave para os infantes, pois eles necessitam de cuidados maiores. Segundo
Winnicott para que a criatura humana crie uma base psicossomática sólida
necessita de um tempo de fusão com a mãe à qual ele deu o nome de dependência
absoluta, seguida de um outro período que denominou de dependência relativa. A
primeira se caracteriza pelo imediato atendimento pela mãe ou figura substituta
das necessidades físicas e psicológicas do bebê. Para isso a mãe deverá estar
em um estado de “preocupação materna primária” na qual ela se encontra
hiperatenta e hipersensível em relação ao bebê de tal maneira que possa
atendê-lo imediatamente ou até mesmo prever o desconforto do filho. Na
dependência relativa não é mais necessário que a mãe esteja em estado de
preocupação materna primária, pois é uma fase em que o bebê, para se
diferenciar da mãe, sofrerá frustrações (desilusões). De qualquer maneira, embora
em nível diferente, a mãe deverá continuar sensível e afinada com seu rebento,
especialmente para certos comportamentos. Um dos mais relevantes é a conduta de
aproximação e afastamento da mãe. A mãe sensível e sem grandes problemas em
relação à oscilação do bebê entre dependência e independência, aceitará de bom
grado tanto o seu afastamento quanto o seu retorno à segurança do colo materno.
Para que essa dinâmica funcione bem é necessário não só que a mãe esteja
presente, mas que não seja solicitada pelo trabalho profissional do qual se
afastou, nem esteja preocupada com a
contabilidade da família. Este é um item problemático. Não só a vida atual
envolve a mãe, deixando-a preocupada e, portanto, afetivamente menos disponível
para o bebê do ponto de vista da sensibilidade porosa, mas também o hedonismo
característico de nossa cultura faz com que a mãe se separe do bebê quando ele
ainda não está preparado para isto. Sem falar das ausências que acontecem por
conta do trabalho executivo ou de outro tipo.
Na área da
criminalidade Winnicott também dá a sua contribuição. Mais que uma contribuição
é uma revolução, pois ele ao procurar, nas crianças, as origens dos atos
antissociais percebe que estes estão além da agressão: são pedidos de socorro
e, no caso de roubos, uma apropriação simbólica de uma mãe que o está
abandonando. Para entender melhor esta dinâmica vou recorrer a dois conceitos winnicottianos
relacionados entre si: privação e deprivação (anglicismo derivado da palavra deprivation). O atendimento insuficiente
às necessidades do bebê na fase de dependência absoluta ---- quando o ambiente
ainda não se distingue do si-mesmo, só existindo um bebê que é o próprio mundo
---- facilita o ingresso no delírio e na psicose. Ele foi privado de um
ambiente suficientemente bom, mas não sabe disso por não possuir ainda um eu distinto
do não-eu. Porém, se ele teve a experiência de ser bem cuidado na fase de
fusão, sentir-se-á lesado se na fase de dependência relativa os pais não forem
suficientemente presentes e sensíveis. Ele se perceberá deprivado, pois diferentemente do privado, perdeu
o que já havia tido. Sentindo-se negligenciado
pelos pais passa a aborrecê-los através de birras, desafios, e também de
pequenos atos delituosos como roubar, maltratar pequenos animais, etc. Estes
atos são gestos de esperança de recuperação dos pais, sua maneira de chamar a
atenção, o seu pedido de socorro. Exp.: (p.407 – Da pediatria à psicanálise – Tendência
antissocial) Winnicott foi procurado
por uma mãe cujo filho mais velho tinha a compulsão de roubar que “estava se
transformando em algo bastante sério. Ele estava roubando muito, tanto em lojas
quanto em casa”. Winnicott sugeriu: “Por que você não lhe diz que sabe que
quando ele rouba, não são realmente aquelas coisas que ele quer, e sim alguma
outra coisa à qual ele acha que tem direito? Que é como se ele estivesse
fazendo uma reclamação a seu pai e sua mãe, por sentir a falta do seu
amor?.....Algum tempo depois recebi uma carta contando-me que ela havia feito o
que sugeri. Dizia ela: ‘Eu lhe disse que o que ele realmente queria, quando
roubava dinheiro e comida e outras coisas, era sua mãe. E devo dizer que na
verdade eu não esperava que ele compreendesse, mas ele pareceu compreender. Eu
lhe perguntei se ele achava que nós não o amávamos por ele ser às vezes tão
difícil, e ele disse imediatamente que na sua opinião nós não o amávamos
muito..... Então eu lhe disse que ele nunca, nunca deveria duvidar disso de
novo, e se em algum momento ele tivesse alguma dúvida era só me lembrar que eu
lhe diria de novo..... De modo que tenho feito muito mais demonstrações, a fim
de evitar que ele venha a duvidar outra vez. E até este momento não houve um
único roubo’. Agora oito meses depois, é possível relatar que não houve mais
roubos e que o relacionamento entre o menino e a sua família melhorou muito”.
(Ibid, p.407/8). Se a tendência antissocial não for tratada na fase de
crescimento, tenderá, com o passar dos anos, a se tornar uma psicopatia.
Uma criança com o eu
inflado e sem limites por ação/omissão dos pais não sairá da situação de “Sua
Majestade, o Bebê”. O mundo lhe deverá obediência e reverência. Nada poderá se
interpor no seu caminho. Todos seus desejos terão de ser atendidos. Uma cabeça
dessas acaba tomando o caminho da agressividade e violência. Isso se torna
ainda mais problemático quando a mãe necessitada de simbiose não consegue
colocar limites para o filho adolescente ou adulto.
Há outras condições psicológicas
que facilitam o aparecimento da violência. A intolerância à frustração, as
fantasias persecutórias inconscientes, a excessiva competitividade, a
autoestima baixa, dificuldades na transição da dependência absoluta à
dependência relativa.
HANNA
ARENDT E A BANALIDADE DO MAL
Quando foi designada
para a cobertura do julgamento de Adolf Eichman --- um criminoso de guerra
nazista, encarregado da organização e envio de prisioneiros a campos de
extermínio --- esperava encontrar um monstro e se surpreendeu ao encontrar um
homem comum como muitos outros. “O problema de Eichman era exatamente que
muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram
e ainda são terrível e assustadoramente normais” (Arendt, 1999, p.299 do livro
“Eichmann em Jerusalém). Adolf Eichmann era um eficiente e dedicado burocrata,
cumpridor fiel dos seus deveres e leal aos seus superiores hierárquicos, obedecendo
diligentemente às suas ordens. Era um bom pai de família, um filho exemplar e
um irmão dedicado. Quanto ao assassinato eficiente de milhões de pessoas ele
apenas, burocraticamente, cumpria ordens superiores como todo bom cidadão, em
sua opinião, deveria fazer. Mas não teria Eichmann consciência da
monstruosidade de sua ação? Hanna Arendt estava convencida de que sim, pois
Eichmann declarou várias vezes que estava com a consciência tranquila, já que
cumprira seu dever e sabia que sua ação era moralmente correta. Palavras de
Arendt: “Sua consciência [de Eichman] ficou efetivamente tranquila quando ele
viu o zelo e o empenho com que a ‘boa sociedade’ de todas as partes reagia ao que
ele fazia. Ele não precisava ‘cerrar os
ouvidos para a voz da consciência’, como diz o preceito, não porque ele não
tivesse nenhuma consciência, mas porque sua consciência falava com a ‘voz
respeitável’, com a voz da sociedade respeitável à sua volta” (Ibid, p.143). O
conceito banalidade do mal expressa o fato do mal ser exercido não só por
psicopatas e degenerados, mas também por homens comuns como qualquer um de nós.
Todas as formas sociais de totalitarismo impõem uma obediência cega e servil a
seus cidadãos. Difícil escapar de tal mandato pois a punição que se segue é
terrível.
Hanna Arendt fala de
alguns fatores que se encontram na gênese da banalidade do mal. Entre eles
estão: a superficialidade das pessoas, o utilitarismo nas relações humanas ----
que torna as pessoas supérfluas e descartáveis (p. 115) ----, o servilismo como
fator supostamente moral da obediência.
Pois é o servilismo e
a obediência que quero examinar, sob o ponto de vista da psicologia social e da
psicologia psicanalítica.
De alguns anos para
cá, experimentos sobre obediência cega a uma figura de autoridade sancionada
pelo social têm sido feitos. O esquema geral destes experimentações é a
seguinte: um grupo de pessoas é dividido em dois. A um deles cabe fazer uma
tarefa. Ao outro cabe punir as pessoas do primeiro grupo se a tarefa não é bem
realizada. Ao condutor da experiência cabe estabelecer a intensidade do castigo
que é passar uma corrente elétrica pelo corpo dos que erraram. Na verdade o
castigo é uma simulação mas o grupo castigador não sabe disto. Para este existe
realmente uma corrente elétrica passando pelo corpo das pessoas do outro grupo.
Pois bem, se o mentor da experiência ordena que uma corrente máxima seja
acionada, ela o será. A obediência é automática não sendo levado em
consideração o sofrimento que possa causar ou mesmo o perigo que representa.
Existe pois em nossa
sociedade ocidental a forte tendência em obedecer a autoridade socialmente
constituída mesmo que resulte em um ato desumano. Sugiro que isto se deva a uma
educação autoritária onde a criança é ensinada a obedecer sem refletir. Na
psicanálise esta situação se replica, como vimos anteriormente, no conceito de
violência primária de Piera Aulagnier assim como vimos que a concepção de
desenvolvimento psíquico e mental de Winnicott privilegia a criatividade: os
objetos da cultura são apresentados e a criatividade os inclui no espaço
transicional onde o subjetivo improvisa um dueto com o objetivo. Não sei se é correto
dizer que essa concepção é nova e revolucionária e que vai ao âmago da questão
colonização versus independência. Acredito que por vários séculos a
criação/educação do ser humano em crescimento foi dominada pela imposição,
dificultando o pensamento livre, situação que ainda perdura. O ser humano ao ser
criado/educado tendo como insinuância principal a criatividade, podendo então
construir o mundo mediante sua própria ação está mais apto a resistir às
convenções e mandatos da cultura e de suas figuras representativas, julgando
por si próprio o que mais se coaduna com seus pensamentos e sentimentos. Já o
ser humano criado através de atos predominantemente impositivos tenderá a
aceitar a orientação da cultura e de seus representantes de uma forma submissa,
obedecendo automaticamente às ordens, por mais desumanas que sejam.
Tenho a esperança de
que usando a criatividade como guia, teremos uma integração ética do homem com
a natureza e com seu semelhante/diferente que, narcisicamente (conforme meu
artigo “Narcisismo secundário inclusivo”), passarão a fazer parte dele,
diminuindo a violência no mundo.
Outubro/2014
Nahman
Armony