DIFICULDADES DO CASAL MADURO






A geração que hoje enfrenta o esvaziamento do ninho é a mesma que lutou contra a repressão sexual e, nessa luta, se impôs a obrigação de transar intensamente. Os filhos eram a desculpa dos que fugiram a esse “ideal”. Agora, sozinhos, os casais tentam retomá-lo. Impossível. Para ter bom sexo na maturidade é preciso ter consciência da passagem do tempo.


Muito se tem falado sobre a síndrome do ninho vazio, um dos desafios que o casal maduro enfrenta. Até o cinema já abordou o assunto, em filmes como Ninho Vazio (2008), dirigido pelo argentino Daniel Burman. O roteiro é conhecido: os filhos se vão, a casa se esvazia, o ponto maior de convergência do par se dilui e subitamente marido e mulher estão nus, um diante do outro, num olhar mútuo em cujas pupilas não mais aparece a prole, mas as próprias almas, com suas verdades e mentiras, convenientes e inconvenientes. É preciso um período de adaptação não só para elaborar a perda dos rebentos, mas também para enfrentar a emergência do que até então ficara em banho-maria: as lutas burlescas pela posse de pequenos poderes e evanescentes verdades, as diferenças de concepções e comportamentos, as transferências de culpas, as projeções das frustrações... uma miríade de armadilhas de tocaia.
Mas isso não é tudo. Há um desafio adicional para os casais que vivem esse momento hoje. Ele está relacionado à condição histórica de mudança de mentalidades. O grupo etário em questão viveu a transição entre uma geração que dogmatizou a repressão dos instintos e outra, que já nasceu numa mentalidade permissiva.
As proibições paternas e sociais marcaram profundamente essas pessoas, pois elas tiveram de lutar não só contra a rígida ideologia dos pais, mas também contra os preconceitos incutidos nos seus inconscientes, que teimosamente lhes enviavam mensagens reprovativas, provocando culpa quando se atreviam a desafiar a moral sexual da geração que a precedeu. 
Uma das formas encontradas para  combater o tabu da repressão foi criar um tabu contrário: sexo livre obrigatório. Transar intensamente passou a ser um imperativo categórico. Para o casal jovem esse imperativo passava despercebido por coincidir com seus desejos apaixonados. Com a vinda dos filhos, a vida profissional e a intimidade do dia a dia, porém, a vida sexual é afetada. Ao mesmo tempo, o envelhecimento do casal provoca uma redução fisiológica da libido. Mas o imperativo categórico “transar” nunca saiu da mente do casal, que só não o realizava – justificativa-se – devido ao tempo dedicado aos filhos e à profissão, e pelo cansaço e tensão que estes acarretavam. Mas eis que chega a meia-idade, os filhos se vão, a situação financeira não mais preocupa, o tempo de lazer aumenta e os dois se vêem sozinhos, envergonhada e desconfortavelmente, indo com desespero atrás do desejo sexual da mocidade. É o imperativo categórico se manifestando: eles precisam transar, pois precisam provar aos fantasmas do porão do inconsciente que são livres.
Vejam o paradoxo: eles são obrigados a ser livres e se obrigam a transar para provar que são livres. No entanto, o ímpeto da juventude já vai longe, o corpo envelheceu e a libido amornou, manifestando-se de maneira cada vez mais espaçada, mas também mais suave, carinhosa e serena. Quando o casal conscientiza e incorpora estes aspectos como pertencentes a uma evolução humana inevitável, própria do passar do tempo, desaparece o constrangimento da obrigação sexual. Os parceiros poderão então esperar com tranquilidade a visita da libido para então usufruir um sexo deleitoso que não tem a obrigação do orgasmo, embora possa lá chegar com sua carga de paixão.

                        Nahman Armony


Primeira publicação na revista CARAS. 

METAMORFOSE

          Nas crisálidas intuitivas do ser morto
                                                   do céu vivo
          Eu me pesco em trevas derradeiras
          Sem querer, a ágata de ouro de meus passos
          Leva-me a percorrer inumeráveis traços.
          Sem cessar, sem cessar se hipnotizam dentro da tenda
          Imensas primaveras refloridas ao som descrente.
          Triste eu me ponho meditabundo
          Sem saber o que é beleza
                              O que tristeza é.

                                                                     Nahman Armony

CULTURA, SUBJETIVIDADE E VIOLÊNCIA: REFLEXÕES PSICANALÍTICAS E UM POUCO MAIS


       Vou usar a palavra cultura como um conjunto de subjetividades, dúvidas e convicções ideológicas que modelam o pensamento e a ação de um grupo humano. Vou completar a minha definição com a do Dicionário Aurélio: “... complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade”.   
        Sabemos que um de nossos instintos básicos é o de conservação da vida individual. Pois bem, a força da cultura é tão poderosa que se sobrepõe a este instinto como no caso dos homens-bomba ou dos monges orientais que se imolam como forma de protesto e combate. Temos aqui uma complicação na qual não entrarei por questão de foco e de tempo. Só farei uma referência: não podemos deixar de considerar que existe um instinto derivado do instinto de conservação da espécie: o da imortalização da cultura de um grupo.
        Nos mamíferos a sobrevivência da espécie depende também de instintos: um deles é o instinto maternal. Se não houvesse este instinto dificilmente os filhotes sobreviveriam. (Estou usando instinto na 2ª  acepção dada pelo Dicionário Aurélio: “Forças de origem biológica inerentes aos homens e animais superiores, e que atuam, em geral, de modo inconsciente, mas com finalidade precisa, e independentemente de qualquer aprendizado: instinto gregário, instinto sexual, instinto maternal”. Sem dúvida poderíamos também usar as expressões instinto de conservação individual e de conservação da espécie. Não vou entrar aqui na questão da pulsão x instinto, pois esta é uma longa e difícil querela que não cabe neste trabalho).
Eu dizia que se não houvesse o instinto maternal, dificilmente os filhotes sobreviveriam em número suficiente para que a espécie continuasse a existir. No entanto, houve épocas na história da humanidade em que os bebês e as crianças eram negligenciados. Isto mostra o poder da cultura que interfere até numa herança genética básica que é o cuidado pessoal dado aos rebentos pela genitora.
        Há um fator que diferencia o bicho-homem dos outros bichos. O desenvolvimento do lobo pré-frontal provoca um rearranjo dos circuitos cerebrais, permitindo o uso da palavra dentro de uma estrutura linguística, possibilitando o pensamento racional, a fixação mnêmica dos pensamentos e acontecimentos, a possibilidade de escolhas conscientes que levem em conta o contexto estrutural e temporal.
        Por isso o homem, muito mais que outros mamíferos, é um ser de cultura. A maneira de criar os filhos é parte da cultura. Erich Fromm em seu livro “Infância e Sociedade” nos mostra que a criança é criada e educada para se tornar um adulto adaptado à cultura do grupo. É o que nos diz também Margaret Mead em seu livro “Sexo e Temperamento”. Ela estuda três culturas tribais de Nova Guiné. Destas interessa-nos duas: a Arapesh e a Mundugumor pelo extremo contraste que apresentam. Na sociedade arapesh encontramos uma cultura maternal de paz, de confiança, de solidariedade, de mansidão. Eles são “cooperativos, não agressivos, suscetíveis às necessidades e exigências alheias” (p.267 – “Sexo e Temperamento” de Margaret Mead). É uma sociedade que tenta excluir de seu meio a agressividade. Já os mundugumor cultivam a agressividade, a violência, a desconfiança, a rivalidade, a hostilidade com os membros do mesmo sexo, o extremo egoísmo e desumanidade, “com um mínimo de aspectos carinhosos e maternais em sua personalidade”(ibid, p.268) É uma sociedade que tenta excluir a brandura de seu meio. Estes protótipos de personalidade implicam, nos Arapesh, uma criação em que os bebês e as crianças são cercados de atenção e carinho. Nas palavras de Margaret Mead homens e mulheres “unem-se numa façanha comum, que é primordialmente maternal, nutritiva e orientada para fora do eu, em direção às necessidades da geração seguinte”(IBID, p.41). Já “o menino Mundugumor nasce em um mundo hostil, mundo onde a maioria dos membros de seu próprio sexo serão seus inimigos, onde seu melhor instrumento para o êxito deve ser a capacidade para a violência...”. Eles tratam seus bebês e crianças de uma forma não carinhosa, com certo descaso, apenas atendendo as suas necessidades físicas, e às vezes nem isto.
Eu me estendi na apresentação destas duas sociedades porque elas nos facilitam falar de violência e ambiente.
        Na tribo Mundugumor a violência é culturalmente cultivada. Chamarei a esta violência de culturalmente estruturante e destina-se a incluir o ser humano na cultura de seu grupo. O homem não violento não tem lugar na sociedade mundugomor. Ou ele abandona a aldeia, ou mantém-se revoltado por toda a vida, ou se deprime. Algumas pessoas muito capazes podem conseguir um ajuste que lhes permita uma adaptação precária. Poderíamos dizer que aqueles que têm um forte componente genético resistem à violência primária da criação/educação.
Os Mundugumor são um exemplo exagerado do que acontece nas culturas que conhecemos. Todas elas apresentam uma violência culturalmente estruturante, uma violência primária, para a qual cabe bem o termo “educação”. Ela é socialmente aceita como necessária. É o caso da educação no século 19 em que as crianças em crescimento eram moldadas por castigos violentos, tornando-se elas próprias violentas.
A violência secundária seria aquela não prescrita pela cultura e exercida por uma pessoa necessitada de descarregar a sua agressividade. Por vezes a violência primária e a secundária coincidem. Pensemos em um homem do século 19. Ele podia castigar os filhos por um senso de dever, sem tirar nenhum prazer disto a não ser o de estar bem educando seus filhos. Mas também podia ser um veículo conveniente para sua necessidade de descarregar raivas acumuladas. Provavelmente este segundo seria mais agressivo do que o primeiro, mas não se poderia acusá-lo de maus tratos. É o caso dos exorcismos na Idade Média que por vezes matava o exorcizado, ou o do escritor Oscar Wilde preso por homossexualismo, ou os homens do século passado que castigavam cruelmente seus filhos.
Para continuar o artigo necessito esclarecer de que violência pretendo estar falando. Encontrei no Dicionário Mirador duas definições, uma delas jurídica, que me convêm. Começarei pela jurídica: “Constrangimento, físico ou moral, exercido sobre alguma pessoa, para obrigá-la a submeter-se à vontade de outrem: coação”. A outra definição: “Qualquer força empregada contra a vontade, liberdade ou resistência de pessoa ou coisa”. Ora, esta definição jurídica faz-nos enxergar um cruzamento entre antropologia e psicanálise através do conceito de violência primária de Piera Aulagnier. Uma citação retirada de uma resenha do livro “A violência da interpretação” de Piera Aulagnier escrita por Bruno Cancio nos orientará:
[“Dos conceptos de importancia establecidos en la obra son los de violencia primaria y secundaria.] Por violencia primaria se entiende "...lo que en un campo psíquico se impone desde el exterior a expensas de una primera violación de un espacio y de una actividad que obedece a leyes heterogéneas al yo..."(3). Se trata de una acción necesaria y que contribuirá a la futura constitución del yo. A través de ésta se le impone a la psique ajena un pensamiento, acción o elección producidos por el deseo de quien lo impone, pero que da respuesta a una necesidad a quien le es impuesto. De esta forma, se consigue entrelazar deseo de uno y necesidad del otro, dando lugar a la demanda. El deseo de quien ejerce la violencia pasará, a partir de allí, a ser demandado por quien la padece.
Por otro lado, violencia secundaria hace referencia a "un exceso por lo general perjudicial y nunca necesario para el funcionamiento del Yo"(4) y que se apoya en su precedente, la violencia primaria. En este caso se trata de una violencia ejercida contra el yo, ya sea por un conflicto con otro "yo" o con un discurso social que intenta oponerse a toda suerte de cambios que pudieran producirse en los modelos por él previamente instituídos”.
Winnicott não concorda com uma criação/educação impositiva como Aulagnier propõe. Um exemplo esclarecedor nós o encontramos no artigo “Moral e Educação”. Tentando sintetizar um artigo longo e complexo, consigo dizer o seguinte: Winnicott está respondendo a uma palestra anterior à sua onde foi citada a seguinte fala de um reitor para uma criança: “Você acreditará no Espirito Santo às 5 horas desta tarde ou a espancarei até que o faça”. Os exemplos extremos servem para deixar claro uma orientação paradigmática que neste caso é um paradigma autoritário não aceito por Winnicott. Para ele o autoritarismo é uma invasão/intrusão no self do outro, tornando-o submisso e dependente. Neste artigo ele, confronta o autoritarismo adoecedor que tenta impor conceitos exteriores à experiência do outro, com uma experiência interior, uma “crença em” que resulta de uma convivência suficientemente boa com os pais.  Quando o horizonte se abre para além dos pais, a criança que está crescendo e que precisa algo maior em que acreditar, é hora dos pais, da escola, da sociedade apresentarem as diversas possibilidades de crenças existentes, respeitando sua eventual busca por outra crença que não aquelas que lhe foram mostradas. A imposição é uma invasão do psiquismo do outro, uma tentativa de dominá-lo, colonizá-lo,  tornando-o revoltado, conformado e violento em vários graus. Mesmo os conformados --- que engolem os traumas advindos das invasões e os acumulam não sabendo de onde veem, pois a relação dominador-dominado é frequentemente inconsciente e aceita como algo natural --- podem ter uma explosão espontânea de ódio indiscriminado geralmente despertada por um fato insignificante.
Ao invés de tentar impingir uma crença dever-se-ia, segundo Winnicott, aceitar a criatividade natural do ser humano. Criatividade tem dois sentidos: um primeiro que todos nós conhecemos e um winnicottiano que é um paradoxo: criamos o que já existe. Não é preciso forçar a realidade para dentro da cabeça das pessoas, mas sim cuidar para que a criatividade de cada um encontre a sua realidade que é um arranjo pessoal do subjetivamente concebido e objetivamente percebido.   
Desenvolverei um pouco mais a ideia de criatividade winnicottiana. O ser humano cria o que já existe. Seu exemplo mor é o bebê que ainda não teve a primeira mamada e que ao sentir fome procura algo que termine com o seu anseio. Este algo é um esboço de seio que ele virá a conhecer melhor quanto mais com ele se relacionar. A vivência do bebê é de que foi ele quem criou o seio desde que o seio apareça na hora da fome. Da mesma maneira a função da sociedade é apresentar diversas alternativas para escolha aceitando a contribuição de novas opções e não impor, seja por que meio for, suas crenças. Mesmo porque o ser humano tem um impulso inerente de pertencimento e precisará escolher um gancho na cultura para exercer sua criatividade. A imposição, o conformismo e a revolta são combustíveis para a violência. Precisamos deixar para trás tanto o paradigma autoritário quanto o paradigma permissivo e aperfeiçoar um paradigma ecológico/poroso/humanitário/holístico.
Ao que parece já nos adentramos firmemente na psicanálise de inspiração predominantemente winnicottiana. Sendo eu, antes de tudo, um psicanalista, esta é a melhor contribuição que posso dar. É claro que os fatores que levam à violência são inúmeros e é preciso a colaboração de muitas disciplinas para um maior entendimento deste fenômeno que parece estar se intensificando tanto no nível macro (guerra, terrorismo, tráfico, repressão violenta, etc.), no micro (assaltos, furtos, roubos, mortes, balas perdidas, violência doméstica, violências discriminatórias, etc.) e no nano (dinâmicas bi e plurisubjetivas). Não podemos esquecer os fatores psicossociais como, por exemplo, as consequências psíquicas de um sentimento de exclusão das benesses dos mais afortunados que pode levar a ações violentas, a glamorização dos traficantes e especialmente dos chefes do tráfico que se tornam figuras fortes de identificação para uma parcela das crianças e adolescentes das comunidades que eram chamadas de favelas. O que também vemos são  jovens das classes médias altas exercendo violência através de roubos, ataques a populações marginalizadas (incendiar índios, atacar mendigos, atacar homossexuais, etc.). Podemos compreender o comportamento violento dos que se sentem inferiorizados, excluídos, injustiçados e que necessitam de figuras fortes de identificação e de uma cultura e ética própria. Mas, e os jovens da classe média alta que têm acesso ao conforto, diversão e que estão up-to-date com as tecnologias emergentes? Aqui é onde melhor a psicanálise pode dar a sua colaboração.
O ritmo atual de vida faz com que tanto o pai quanto a mãe fiquem, por muito tempo, ausentes do lar. Com isto a assistência afetiva aos filhos sofre danos. Isto é especialmente grave para os infantes, pois eles necessitam de cuidados maiores. Segundo Winnicott para que a criatura humana crie uma base psicossomática sólida necessita de um tempo de fusão com a mãe à qual ele deu o nome de dependência absoluta, seguida de um outro período que denominou de dependência relativa. A primeira se caracteriza pelo imediato atendimento pela mãe ou figura substituta das necessidades físicas e psicológicas do bebê. Para isso a mãe deverá estar em um estado de “preocupação materna primária” na qual ela se encontra hiperatenta e hipersensível em relação ao bebê de tal maneira que possa atendê-lo imediatamente ou até mesmo prever o desconforto do filho. Na dependência relativa não é mais necessário que a mãe esteja em estado de preocupação materna primária, pois é uma fase em que o bebê, para se diferenciar da mãe, sofrerá frustrações (desilusões). De qualquer maneira, embora em nível diferente, a mãe deverá continuar sensível e afinada com seu rebento, especialmente para certos comportamentos. Um dos mais relevantes é a conduta de aproximação e afastamento da mãe. A mãe sensível e sem grandes problemas em relação à oscilação do bebê entre dependência e independência, aceitará de bom grado tanto o seu afastamento quanto o seu retorno à segurança do colo materno. Para que essa dinâmica funcione bem é necessário não só que a mãe esteja presente, mas que não seja solicitada pelo trabalho profissional do qual se afastou, nem esteja preocupada  com a contabilidade da família. Este é um item problemático. Não só a vida atual envolve a mãe, deixando-a preocupada e, portanto, afetivamente menos disponível para o bebê do ponto de vista da sensibilidade porosa, mas também o hedonismo característico de nossa cultura faz com que a mãe se separe do bebê quando ele ainda não está preparado para isto. Sem falar das ausências que acontecem por conta do trabalho executivo ou de outro tipo.
Na área da criminalidade Winnicott também dá a sua contribuição. Mais que uma contribuição é uma revolução, pois ele ao procurar, nas crianças, as origens dos atos antissociais percebe que estes estão além da agressão: são pedidos de socorro e, no caso de roubos, uma apropriação simbólica de uma mãe que o está abandonando. Para entender melhor esta dinâmica vou recorrer a dois conceitos winnicottianos relacionados entre si: privação e deprivação (anglicismo derivado da palavra deprivation). O atendimento insuficiente às necessidades do bebê na fase de dependência absoluta ---- quando o ambiente ainda não se distingue do si-mesmo, só existindo um bebê que é o próprio mundo ---- facilita o ingresso no delírio e na psicose. Ele foi privado de um ambiente suficientemente bom, mas não sabe disso por não possuir ainda um eu distinto do não-eu. Porém, se ele teve a experiência de ser bem cuidado na fase de fusão, sentir-se-á lesado se na fase de dependência relativa os pais não forem suficientemente presentes e sensíveis. Ele se perceberá deprivado, pois diferentemente do privado, perdeu o que já havia tido. Sentindo-se negligenciado pelos pais passa a aborrecê-los através de birras, desafios, e também de pequenos atos delituosos como roubar, maltratar pequenos animais, etc. Estes atos são gestos de esperança de recuperação dos pais, sua maneira de chamar a atenção, o seu pedido de socorro. Exp.: (p.407 – Da pediatria à psicanálise – Tendência antissocial)   Winnicott foi procurado por uma mãe cujo filho mais velho tinha a compulsão de roubar que “estava se transformando em algo bastante sério. Ele estava roubando muito, tanto em lojas quanto em casa”. Winnicott sugeriu: “Por que você não lhe diz que sabe que quando ele rouba, não são realmente aquelas coisas que ele quer, e sim alguma outra coisa à qual ele acha que tem direito? Que é como se ele estivesse fazendo uma reclamação a seu pai e sua mãe, por sentir a falta do seu amor?.....Algum tempo depois recebi uma carta contando-me que ela havia feito o que sugeri. Dizia ela: ‘Eu lhe disse que o que ele realmente queria, quando roubava dinheiro e comida e outras coisas, era sua mãe. E devo dizer que na verdade eu não esperava que ele compreendesse, mas ele pareceu compreender. Eu lhe perguntei se ele achava que nós não o amávamos por ele ser às vezes tão difícil, e ele disse imediatamente que na sua opinião nós não o amávamos muito..... Então eu lhe disse que ele nunca, nunca deveria duvidar disso de novo, e se em algum momento ele tivesse alguma dúvida era só me lembrar que eu lhe diria de novo..... De modo que tenho feito muito mais demonstrações, a fim de evitar que ele venha a duvidar outra vez. E até este momento não houve um único roubo’. Agora oito meses depois, é possível relatar que não houve mais roubos e que o relacionamento entre o menino e a sua família melhorou muito”. (Ibid, p.407/8). Se a tendência antissocial não for tratada na fase de crescimento, tenderá, com o passar dos anos, a se tornar uma psicopatia.       
Uma criança com o eu inflado e sem limites por ação/omissão dos pais não sairá da situação de “Sua Majestade, o Bebê”. O mundo lhe deverá obediência e reverência. Nada poderá se interpor no seu caminho. Todos seus desejos terão de ser atendidos. Uma cabeça dessas acaba tomando o caminho da agressividade e violência. Isso se torna ainda mais problemático quando a mãe necessitada de simbiose não consegue colocar limites para o filho adolescente ou adulto.
Há outras condições psicológicas que facilitam o aparecimento da violência. A intolerância à frustração, as fantasias persecutórias inconscientes, a excessiva competitividade, a autoestima baixa, dificuldades na transição da dependência absoluta à dependência relativa.
HANNA ARENDT E A BANALIDADE DO MAL
Quando foi designada para a cobertura do julgamento de Adolf Eichman --- um criminoso de guerra nazista, encarregado da organização e envio de prisioneiros a campos de extermínio --- esperava encontrar um monstro e se surpreendeu ao encontrar um homem comum como muitos outros. “O problema de Eichman era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais” (Arendt, 1999, p.299 do livro “Eichmann em Jerusalém). Adolf Eichmann era um eficiente e dedicado burocrata, cumpridor fiel dos seus deveres e leal aos seus superiores hierárquicos, obedecendo diligentemente às suas ordens. Era um bom pai de família, um filho exemplar e um irmão dedicado. Quanto ao assassinato eficiente de milhões de pessoas ele apenas, burocraticamente, cumpria ordens superiores como todo bom cidadão, em sua opinião, deveria fazer. Mas não teria Eichmann consciência da monstruosidade de sua ação? Hanna Arendt estava convencida de que sim, pois Eichmann declarou várias vezes que estava com a consciência tranquila, já que cumprira seu dever e sabia que sua ação era moralmente correta. Palavras de Arendt: “Sua consciência [de Eichman] ficou efetivamente tranquila quando ele viu o zelo e o empenho com que a ‘boa sociedade’ de todas as partes reagia ao que ele fazia.  Ele não precisava ‘cerrar os ouvidos para a voz da consciência’, como diz o preceito, não porque ele não tivesse nenhuma consciência, mas porque sua consciência falava com a ‘voz respeitável’, com a voz da sociedade respeitável à sua volta” (Ibid, p.143). O conceito banalidade do mal expressa o fato do mal ser exercido não só por psicopatas e degenerados, mas também por homens comuns como qualquer um de nós. Todas as formas sociais de totalitarismo impõem uma obediência cega e servil a seus cidadãos. Difícil escapar de tal mandato pois a punição que se segue é terrível.
Hanna Arendt fala de alguns fatores que se encontram na gênese da banalidade do mal. Entre eles estão: a superficialidade das pessoas, o utilitarismo nas relações humanas ---- que torna as pessoas supérfluas e descartáveis (p. 115) ----, o servilismo como fator supostamente moral da obediência.
Pois é o servilismo e a obediência que quero examinar, sob o ponto de vista da psicologia social e da psicologia psicanalítica.
De alguns anos para cá, experimentos sobre obediência cega a uma figura de autoridade sancionada pelo social têm sido feitos. O esquema geral destes experimentações é a seguinte: um grupo de pessoas é dividido em dois. A um deles cabe fazer uma tarefa. Ao outro cabe punir as pessoas do primeiro grupo se a tarefa não é bem realizada. Ao condutor da experiência cabe estabelecer a intensidade do castigo que é passar uma corrente elétrica pelo corpo dos que erraram. Na verdade o castigo é uma simulação mas o grupo castigador não sabe disto. Para este existe realmente uma corrente elétrica passando pelo corpo das pessoas do outro grupo. Pois bem, se o mentor da experiência ordena que uma corrente máxima seja acionada, ela o será. A obediência é automática não sendo levado em consideração o sofrimento que possa causar ou mesmo o perigo que representa.
Existe pois em nossa sociedade ocidental a forte tendência em obedecer a autoridade socialmente constituída mesmo que resulte em um ato desumano. Sugiro que isto se deva a uma educação autoritária onde a criança é ensinada a obedecer sem refletir. Na psicanálise esta situação se replica, como vimos anteriormente, no conceito de violência primária de Piera Aulagnier assim como vimos que a concepção de desenvolvimento psíquico e mental de Winnicott privilegia a criatividade: os objetos da cultura são apresentados e a criatividade os inclui no espaço transicional onde o subjetivo improvisa um dueto com o objetivo. Não sei se é correto dizer que essa concepção é nova e revolucionária e que vai ao âmago da questão colonização versus independência. Acredito que por vários séculos a criação/educação do ser humano em crescimento foi dominada pela imposição, dificultando o pensamento livre, situação que ainda perdura. O ser humano ao ser criado/educado tendo como insinuância principal a criatividade, podendo então construir o mundo mediante sua própria ação está mais apto a resistir às convenções e mandatos da cultura e de suas figuras representativas, julgando por si próprio o que mais se coaduna com seus pensamentos e sentimentos. Já o ser humano criado através de atos predominantemente impositivos tenderá a aceitar a orientação da cultura e de seus representantes de uma forma submissa, obedecendo automaticamente às ordens, por mais desumanas que sejam.
Tenho a esperança de que usando a criatividade como guia, teremos uma integração ética do homem com a natureza e com seu semelhante/diferente que, narcisicamente (conforme meu artigo “Narcisismo secundário inclusivo”), passarão a fazer parte dele, diminuindo a violência no mundo.
                                                               Outubro/2014
                                                               Nahman Armony
     


               






DIFERENÇAS DE MENTALIDADE DIFICULTAM ENTENDIMENTO



Assisti recentemente ao filme “Quando um homem ama uma mulher” em exibição nos canais por assinatura. Uma película reveladora de sutilezas de comportamento relacionadas a diferentes mentalidades. Enquanto cada membro do casal está fechado em seu mundo, sem poder perceber o mundo do outro, as tenuidades da fala e da expressão corporal podem ser interpretadas como desrespeito.
O filme fala de um amor sólido, substantivo e perseverante; tão perseverante que resistiu a profundas diferenças de mentalidade que quase inviabilizaram o casamento. A união só pôde retomar sua vitalidade quando brechas no psiquismo permitiram uma compreensão mútua.
Se ficarmos atentos não só às linhas, mas também às entrelinhas do filme dele tiraremos bom proveito. Desde o início, um férreo liame uniu Alice e Michael.  Havia muito amor circulando entre os dois e, mais tarde, entre os quatro, quando um par de filhos veio se acrescentar à família. Uma tragédia porém estava à espreita. Alice retorna ao alcoolismo, afasta-se do lar e a ele mais tarde retorna tentando se readaptar à vida familiar ao mesmo tempo em que freqüenta os “alcoólatras anônimos”. Aqui já se coloca uma interrogação. Se a família era tão feliz como pôde o alcoolismo se insinuar nessa liga amorosa? Neste ponto o filme nos fornece pistas para começarmos a entender como um casal que se ama, que ama os filhos e que quer preservar o casamento pode ser corroído a partir de diferenças de mentalidade. Uma dica da dinâmica do casal nos é dada quando Alice aponta a satisfação que o marido tira de se sentir superior a uma mulher fraca e problemática. Está aí colocada uma situação de inferioridade, que também aparece no trato com os filhos: o pai aparece interferindo na relação da mãe com as crianças, tirando sua autoridade e deixando-a em segundo plano. Para Michael esta é uma situação natural. Ele é o chefe e orientador da vida da família, o dono do saber; a esposa deve aceitar sua superioridade e seguir seus preceitos. Um outro aspecto menos evidente que aparece é a excessiva objetividade do marido revelada na frase “eu só posso consertar se souber o defeito” quando tenta ajudá-la. O alcoolismo da esposa é um problema a ser resolvido, e como problema terá certamente uma solução desde que se siga a direção certa. Essa direção certa e única que desconsidera as complexidades do psiquismo é ele quem conhece. O fato dela não seguir seus preceitos, ou pior, ao segui-los fracassar, faz com que ele se sinta desprestigiado, diminuído na sua condição de um mentor de família que deve resolver todos os problemas.
         Poderia parecer que o amor do casal terminara. Pois não é esse o caso. Ao contrário, havia um amor tão sólido que ao final eles conseguem se reaproximar reavivando o afeto que surdamente habitava seus corações. Isto exigiu um grande esforço dos dois. Dele, no sentido de engolir seu orgulho de macho e passar a freqüentar um grupo de parentes de alcoólatras. O impacto de uma outra mentalidade masculina fez com que ele abandonasse de supetão a primeira reunião. Não é fácil promover modificações em um modo de ser que desde muito cedo se foi formando e terminou por consolidar-se. Há uma espécie de abalo, de terremoto na personalidade. Porém, o desejo de poder viver e amar a escolhida fê-lo persistir. Uma outra mentalidade foi-se formando, mentalidade na qual cabia não ser ele o dono do saber, a obrigação de tudo resolver, e, principalmente, a percepção que não bastava ter um plano objetivo e querer seguir este plano para conseguir resultados. Começou a perceber que a mente humana é extremamente complexa e que seus caminhos são tortuosos, inesperados e oscilantes. E ela pôde entender que a incompreensão do marido não vinha da falta de amor, mas de uma educação machista. Um recomeço tornou-se possível.

                                                                        Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS.

PESADELO

                    A bruma bruxa bruxuleia lenta
                    O bucho feio brada recheio
                    Olhos rasados abrem bocas
                    Negro terror tange Noite.

                    Boca esquálida trinca dentes
                    Alvas luas uivam rentes
                    
                    O branco brado, grande olho vazio
                                                                   Bruxeia

                    A bruma bruxa colhe
                                       A noite repentina
                    O espanto cego pare
                                       Na entranha da menina

                    A bruta bruxa olha, devora
                                                 E anseia.

                                                                Nahman Armony      


                                                                     

REPRESSÃO E RECALQUE


Como quase sempre em psicanálise a nomenclatura é imprecisa e variável. Eu uso repressão no sentido de uma força externa impedindo a manifestação de um impulso. Por exemplo: a polícia reprimindo uma manifestação popular; um pai impedindo que um bebê ou criança pegue um objeto frágil; o mesmo pai impedindo o filho de se debruçar em lugares perigosos (sacadas, janelas). Recalque já é o processo pelo a qual a pessoa, internalizando a entidade repressora, ela própria impede a manifestação do desejo ou afeto. Quando falo de recalque penso em um processo inconsciente. Porém existe um processo consciente de censura da pessoa para si mesma. Estaria conceitualmente entre a repressão externa e o recalque inconsciente. Por não se ter lhe dado realce não possui um nome. Eu prefiro ainda chamar de repressão a chamar de recalque, deixando este último termo para designar especificamente um processo inconsciente de censura e impedimento. Exemplo: A mãe proíbe um bebê de pegar um objeto. Toda vez que a criança tenta alcançá-lo a mãe fala um não que, digamos, varia do carinhoso ao enérgico (não precisa ser agressivo-assustador). Ao cabo de algumas experiências, o bebê ao se dirigir ao objeto para pegá-lo (impulso de desejo) pára dizendo para si mesma com intensidade: “não”, “não pode”. Isto significa que ela internalizou uma figura de autoridade como objeto interno ainda não inteiramente assimilado. Ela está a meio caminho entre a repressão externa e o recalque inconsciente. Após algum tempo, o “não” que era uma ordem de uma figura interna na zona objetal, torna-se incorporada ao eu, passando a fazer parte do sistema inconsciente de censura: dizemos então que houve recalque.


                                                                             Nahman Armony

CONSEQUÊNCIAS POSSÍVEIS DA DIFERENÇA DE NÍVEL NAS RELAÇÕES DE CASAL



         Por milênios não houve dúvidas quanto à superioridade do homem sobre a mulher tanto no meio social quanto no ambiente doméstico. É sobre este último que nos interessa falar. No passado a ascendência do homem na família era inconteste. Ele era o poderoso caçador, o homem público, aquele que tinha uma profissão socialmente reconhecida e valorizada, o provedor sem o qual a família morreria de fome. Ele tinha o poder que em certa época chegou a ser um poder de vida e morte sobre cada membro da família. Embora saibamos que a função caseira da mulher sempre foi da maior importância, criando e cuidando dos filhos, fornecendo carinho e conforto sexual ao marido, mantendo um lar como sólida base afetiva e organizacional que proporcionava estabilidade, segurança e confiança ao cônjuge --- apesar de todos estes atributos indispensáveis à tranqüilidade e ao bom desempenho --- a sociedade tinha um olhar desdenhoso para as mulheres como se seu trabalho fosse de tão pouco valia que nem merecesse consideração.
         Estou falando de uma atribuição de inferioridade à mulher e de superioridade ao homem situação a partir da qual se desenvolvia uma luta surda da mulher na conquista de uma posição de maior poder na família. Suas armas --- a influência sobre os filhos, a recusa ao sexo, o jogo da indiferença, do ciúme e outros --- dificilmente poderiam se igualar à grande arma do homem: a família depender dele financeira e socialmente.
         Hoje (já de algum tempo) a situação mudou. Uma significativa percentagem de mulheres é gerenciadora de família e ganha mais que o homem. Há, porém, na sua alma, uma marca ancestral de subordinação e conciliação que atrapalha a mulher no uso deste poder, um poder que pode ser empregado para estabelecer uma relação igualitária.
         Um exemplo comovente desta dificuldade de aceitar e assumir a situação de privilégio nos foi fornecido por uma sincera e generosa entrevista de Whitney Houston na televisão, falando de suas dificuldades com um marido menos famoso e menos abonado ---- que se sentindo inferiorizado a agredia ---- e de seus esforços para preservar a relação, esforços que tinham a ver com sua educação religiosa, com o valor dado à presença do pai numa família com filhos e com a crença numa conciliação possível. Para atingir seu objetivo Whitney tentou se apagar para que o marido pudesse sobressair. Pode-se bem prever o resultado desta atitude. Ela se deprimiu, tornando-se usuária assídua de drogas pesadas, entrou numa posição masoquista de quem está disposta a qualquer coisa para preservar o casamento, o que só fez estimular a atuação sádica do marido. No final do processo, já arrasada, ela finalmente se separou e pôde começar a se afastar das drogas.
         Na minha clínica tenho outro exemplo deste teor. Um marido que inicialmente detinha o saber/poder do casal, ao ensinar o que sabia da profissão à esposa, veio a se sentir superado por ela. Ela que compensava com seu não-saber o profundo sentimento de desvalia do marido, permitindo-lhe aceder a um tranqüilizador sentimento de auto-afirmação e auto-estima (mas que dependia da superioridade que sentia em relação à esposa), tornou-se a algoz que mobilizava o seu profundo sentimento de inferioridade. Decorreu daí um comportamento freqüentemente agressivo do marido cujo resultado final foi uma recusa da esposa em continuar convivendo com ele.
         Temos na atualidade uma situação nova que desestabiliza os casais e que exige um esforço de conhecimento de si e da dinâmica do casal. O homem deverá trabalhar seus sentimentos de inferioridade advindos de uma posição de regalia da esposa, e a mulher deve ao mesmo tempo tomar cuidado para não alimentar o sentimento de humilhação e inferioridade do marido, sem, porém amortecer sua própria potência de realização.
                                                              
                                                                        Nahman Armony

       Primeira publicação na revista CARAS

NUNCA MAIS

         Quando recebo o abraço insidioso da morte
      O meu Ser desfalece
      E eu viajo na escura neblina do nunca mais

      Nunca mais é de um poema de Edgar Allan Poe
      Quem me lê sabe disso 
      Mas Poe embora imortal 
      De nada sabe.

                                              Nahman Armony 

USOS BENIGNOS E MALIGNOS DA CAPACIDADE DE EMPATIA E DE IDENTIFICAÇÃO




        O borderline brando tem a capacidade de realizar identificações dual-porosas, as quais lhe permitem penetrar na subjetividade do outro, compreendendo-o e dando oportunidade ou para ajudá-lo ou para manipulá-lo em seu próprio benefício.
        Situo a origem do modo borderline de viver na fase de transição entre a dependência absoluta e a dependência relativa, portanto na fase do aparecimento do espaço potencial e do objeto transicional, que teria sido mal vivida por ele. Há defeitos na formação e utilização do objeto transicional, aquele objeto que facilita suportar a separação mãe-filho e que permite o acesso do bebê a um mundo fora da mãe. Este ser humano que viveu imperfeitamente essa fase de transição ficará intensamente apegado a figuras humanas significativas já que não pôde criar adequadamente o objeto transicional substituto. Não é que ele não tenha chegado à fase de dependência relativa com a diferenciação eu/não-eu mas ele o fez mantendo uma necessidade de proximidade com a mãe. Ela é vista como não-eu, sim, mas, além de preencher um espaço necessário ao desenvolvimento do bebê, ocupa também o lugar onde deveria estar o objeto e espaço transicional que daria acesso ao terreno da cultura, proporcionando uma satisfação para além das relações amorosas.  
        Este bebê, tendo vivido satisfatoriamente a fase de dependência absoluta, desenvolve a capacidade de identificação dual-porosa, que mais se exacerba pela presença exagerada da mãe, mal atenuada por relações com objetos transicionais.

        Se esta mãe, agora, no período de dependência relativa é sentida como abandonante o pequeno ser humano em crescimento poderá apresentar a tendência anti-social. Temos então a seguinte situação: capacidade de empatia e identificação dual-porosa plus tendência anti-social. A capacidade de identificação dual-porosa se mantém na evolução da tendência antissocial para a delinqüência e a psicopatia. Essa construção teórica daria conta da capacidade de envolvimento da sensibilidade e percepção do psicopata que sabe como conseguir tirar proveito das pessoas, insinuando-se simpaticamente, mostrando uma compreensão da subjetividade do outro, conquistando este outro e então se aproveitando dele para seu próprio benefício. Temos aí um borderline do MAL. Outros borderlines usam sua capacidade de empatia e de identificação porosa para estabelecer relações de intimidade altamente gratificantes para os participantes. 

COMPETIR X COMPREENDER


                                              

         Este texto está mais dirigido para jovens que justo por este privilégio provisório não tiveram tempo de consolidar sua autoestima e seu sentimento de identidade adulta o que eventualmente virá a acontecer quando, no futuro, realizarem-se profissionalmente obtendo o reconhecimento de seus pares, integrarem-se na comunidade, e ganharem um sentimento de competência ao aprender a lidar prática e psicologicamente com fracassos ocasionais.
Por enquanto, encontram-se vulneráveis, precisando defender uma autoestima e identidade adulta ainda em formação. Isto complica suas relações interpessoais em geral e especialmente as amorosas. Uma simples discordância poderá ser vivida como rejeição indo além da questão objetiva e atingindo profundos sentimentos inconscientes. “Se você não concorda comigo é porque não me ama, não me valoriza, não me reconhece”, diria o inconsciente da pessoa. Sem dúvida há aí um complicador que vale a pena ser mencionado. Casais jovens têm uma tendência inconsciente a fantasiar uma relação perfeita, sem nenhuma discrepância: um parceiro-espelho que pense e sinta exatamente igual. Aqui ultrapassamos a questão da autoestima e da identidade para ingressarmos na fantasia ancestral do ser completo.
         A autoestima e o sentimento de identidade frágeis exigem defesas que aparecem nas relações amorosas como competição e luta pelo poder. A pessoa tem medo de mostrar seu desejo, sua necessidade do outro, suas carências, pois acha que isto o colocará em posição inferior e a mercê do outro, sem poder se defender quando atacado.
         Um modo de eliminar o perigo representado pelo parceiro é controlá-lo por completo, obrigando-o a agir conforme o desejado e monitorando todos seus passos. Abole-se sua autonomia e neutraliza-se sua periculosidade tornando-o um escravo obediente e solícito. A ameaça aqui não está referida apenas à autoestima e identidade. Tem a ver também com o medo de abandono. Uma pessoa controlada jamais poderá deixar a relação. A idéia é a de que ela permanece na relação não por amor, mas por um controle onipotente.
         O jovem ainda inseguro de sua identidade adulta poderá afivelar uma máscara de perfeição esperando que o escolhido para cúmplice amoroso o auxilie a mantê-la no lugar; uma observação que aponte para uma falha, um erro ou uma diferença poderá ser sentida como uma traição da função asseguradora atribuída ao parceiro.
         Estas dinâmicas formam-se nas relações primitivas com figuras significativas (pai, mãe, família, etc.) e condicionam a entrada da pessoa no mundo adulto. Alguns felizardos chegarão à maturidade fácil e rapidamente enquanto que outros, atrapalhados por seus fantasmas infantis, terão mais ou menos dificuldades em fazê-lo. A aquisição de uma identidade adulta, referida à luta por um lugar no social é mais um fator de superação dos obstáculos psíquicos que inevitavelmente adquirimos ao longo de nosso desenvolvimento.
         Quanto mais próximos estivermos da maturidade mais transformaremos a relação de competição em relação de compreensão. Quanto mais deixarmos de nos preocupar com a preservação de nossa autoestima, mais livres estaremos para perceber a subjetividade do parceiro e mais prontos estaremos para compreendê-lo.
         O caminho que vai da competição à compreensão exige um esforço psíquico que se apoiará no amor pelo consorte e na importância deste amor para a vida de cada um.
É preciso apostar no futuro, na capacidade de autorrealização que trará uma maior consistência pessoal. Entrementes será preciso sentir que o esforço em abrir mão da susceptibilidade narcísica trocando-a por uma compreensão da subjetividade do outro é, a médio ou longo prazo, recompensador. “Agüentem o tranco que vale a pena” é o que tenho a dizer para jovens de todas as idades.  
          
            
                                               Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS
        
        

          

É POSSÍVEL CONSERVAR O DESEJO SEXUAL NUMA LONGA RELAÇÃO?


                               Passado o período de paixão segue-se, na melhor das hipóteses, o amor. O desejo tende a decrescer e os encontros amorosos-sexuais a rarear. O casal sente-se frustrado, amputado de uma parte essencial de sua vida.  A repressão, a vergonha, a disputa pelo poder (quem necessita de quem) tornam difícil a reaproximação e a retomada de uma vida mais plena e saudável. Diante desse quadro, o melhor é evitar que a situação chegue a este limite. Há vários caminhos para isto. O desejo sexual inicialmente movido pela paixão pode vir a, posteriormente, ser motivado pela ternura. Uma ternura que, se no início do relacionamento é um botão incipiente, poderá crescer através de uma história de companheirismo, cuidados, cumplicidade, compreensão mútua, capacidade de perdoar e de não guardar ressentimentos. Paradoxalmente, uma ternura ao mesmo tempo dessexualizada, mas também marcada por um potencial erótico que facilmente pode se realizar. Mas esse não é o único caminho. Ou é um caminho que pode ser complementado por uma espécie de jogo de sedução. E aqui também temos uma situação paradoxal. Winnicott fala da criança que se esconde, mas quer ser encontrada. Similarmente o parceiro sexual resiste, mas quer ter a resistência vencida. A resistência apimenta a relação elevando o grau de desejo. A certeza de que em algum momento a recusa ambígua chegará ao seu término permite uma tranqüilidade para prosseguir no jogo sem uma ansiedade disruptiva. Mas, de qualquer forma, a pimenta continua agindo, pois todos nós passamos, enquanto bebês, por vivências de rejeição marcando-nos indelevelmente com uma susceptibilidade -- maior ou menor -- à rejeição.  A aproximação sexual é uma das formas de exorcizar os profundos e inconscientes sentimentos de rejeição e é em grande parte por aí que o jogo de negaça exerce sua ação picante. Outra possibilidade é a manutenção de um clima erótico no dia-a-dia. Além das manifestações de carinho dessexualizado, aceitos e validados pela mentalidade social, o casal poderá, certamente vencendo resistências ancestrais, manter a sexualidade presente através de palavras, gestos, carícias fugazes; esse comportamento ajuda a manter o desejo sexual em fogo baixo sempre pronto a se tornar fogaréu, incêndio. Também conversas francas sobre as sensibilidades erógenas do casal ajudam para uma intensa e prazerosa atividade sexual.  É também preciso levar em consideração que muitas pessoas em nossa cultura, professam um sentimento inconsciente ou consciente -- que advém da subjetividade social circulante -- de que a sexualidade é algo sujo, indigno, depravado; por isto mesmo, necessitam de entrar num estado de espírito abjeto, o que fazem através de palavras e atos tornados debochados (os atos que seriam impudicos e as palavras de baixo calão não são em si pornográficos) com o intuito de sair de um plano de pureza para um plano pecaminoso, podendo então, dissociadamente, expressar livremente a sua  sexualidade. Esta é uma situação que pode, dependendo do casal, perdurar sem criar maiores problemas para a relação. Mas, se ela se torna perturbadora será preciso fazer desaparecer esta dissociação, integrando a sexualidade à vida de tal maneira que ela possa ser sentida como imaculada, feita da mesma substância que o carinho, por exemplo. Carinho terno e carícia sexual teriam a mesma legitimidade e gozariam do mesmo status.
Essas são algumas das aproximações possíveis á questão inicialmente proposta que eu relembro, para finalizar o texto: como conservar o desejo sexual após anos de convivência.    
                                                                                                                                                      Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS.

BRIGA-SE POR BOBAGENS PARA EVITAR O RISCO DE ROMPIMENTO


         O ser humano é ambivalente, ou mesmo, plurivalente, o que significa que ele deseja e sente ao mesmo tempo vários impulsos e sentimentos muitas vezes contraditórios. É uma situação pouco confortável, pois preferimos ter a sensação de saber o que queremos para poder direcionar nossa força e determinação em uma única direção. Desejar ao mesmo tempo duas ou mais coisas que se excluem mina a segurança colocando a pessoa em estado de dúvida, de incerteza que a impede de se comportar com firmeza, tornando-a hesitante e passando uma impressão de fraqueza. Por isso os casais se empenham em discussões sobre aspectos insignificantes do dia-a-dia encarniçando-se nas suas certezas. É uma maneira de afastarem a instabilidade da dúvida tornando-as firmes e seguras em bagatelas que não merecem tamanha importância e convicção. Acontece, porém que enquanto estas insignificâncias ocuparem o primeiro plano se escamoteará a principal fonte de conflito mantendo a relação num clima de intolerância em que frequentemente o mal-estar e a raiva se fazem presentes. Mas, e aí está o truque, a relação se mantém, pois o ponto de conflito que a poderia destruir fica sepultado debaixo das trivialidades.
         Darei um exemplo: digamos que duas pessoas de nacionalidades diferentes, ao se conhecerem tenham sido fisgadas por Cupido. Falo aqui de um amor visceral à primeira vista. Digamos ainda que o modo de ser de um se afine com o do outro o que permitiria que as diferenças fossem colocadas, discutidas e conciliadas. Há aqui uma auspiciosa promessa de crescimento da relação, algo raro e precioso que deveria ser conservada a qualquer preço. Mas há uma questão fundamental: cada um dos componentes do casal não abre mão de viver em seu país o que significa tirar o outro do país de origem. Há um primeiro confronto nesta área e o casal percebe que lá existe um impasse que poderá destruir a relação. Nenhum deles deseja esse desfecho. A questão fundamental é deixada de lado e eles tentam viver o seu amor sem interferências. Acontece que o ponto capital não desapareceu. Ele apenas foi enterrado continuando, contudo a exercer seus efeitos sobre o casal. Mas o engenho dos dinamismos psicológicos humanos desvia a discussão da questão fundamental para outros aspectos da relação que não são tão vitais e que, portanto podem ser suportados. Discute-se, por exemplo, como usar o tubo de pasta de dentes como se isso fosse uma questão vital; discutem-se as virtudes e vícios do povo; a bruxa da sogra e o demônio do sogro; as oportunidades de trabalho; as questões de clima. Estas discussões têm um componente de irritação proveniente do dilema inicial incontornável. Nenhuma destas questões, porém, é excludente, definitiva. O determinante é o desejo de permanecerem junto aos amigos, parentes, à cultura, às paisagens e paragens conhecidas. As outras não ameaçam a continuidade da relação; o amor à terra natal pode levar a um rompimento.
         Posso estar dando a impressão de que as discussões substitutas não deveriam existir e que seria conveniente imediatamente abordar o ponto decisivo. Não é bem o que penso. Enquanto as discussões de menor importância acontecem, trocas afetivas e fantasmáticas (conversações inconscientes) estão em curso provocando movimentos de assimilação que os prepara para uma atitude menos drástica em relação ao problema fundamental. Não se pode saber a priori para onde esta conversa inconsciente e estes movimentos afetivos levarão. Mas finalmente o casal poderá chegar a um acordo. Ou não. Mas pelo menos eles terão o consolo de ter batalhado pela continuação da relação amorosa.  
                                                               Nahman Armony

   Primeira publicação na revista CARAS.

ENCONTRO

                       Eu passeava descuidado 
                       Pelo Meier
                      Quando de longe
                      Avistei-te

                     Lá estavas
                     Distante
                     E no entanto
                     Nada nos separava

                    Tinhas de lá estar
                    Naquele dia
                    Naquela hora
                    Naquele momento

                    Pessoas se cruzam ao azar
                    Passam e desaparecem
                    Seus passos deixam intrincados traços
                    Por sobre os traços mais passantes
                    Passam e desparecem

                    E de repente
                    Tudo faz sentido

                    A súbita iluminação
                    De tua desconhecida pessoa
                    Revela o incompreendido

                    Eras e não eras um acaso

                    Por um momento lá estavas
                    Um momento
                    Um momen...
                    Um...
                                                         Nahman Armony

                           Primeira publicação na revista CARAS

NARCISISMO SECUNDÁRIO INCLUSIVO

        Confesso que estou a me aproveitar do tema proposto para falar de algo que me é muito caro e que venho elaborando, ora espontânea ora intencionalmente ao longo dos anos. Trabalharei para articular as nuvens de pensamentos já existentes e que se encontram em estado inconsciente de quase organização, com o conceito de narcisismo. Por mais que pareça tolo vou logo revelar aquilo que está prestes a ser linguisticamente apresentado para em seguida fazer uma articulação com o corpo teorizante psicanalítico. Pretendo manejar o conceito de narcisismo secundário para falar de uma aspiração: o sonho de uma convivência amorosa ecológica equilibradamente distributiva entre humanos e entre o ser humano e o universo. Para não parecer bobamente romântico remeto os ouvintes ao livro “A Revolução do Amor” do filósofo Luc Ferry, 1ª edição em francês em 2010 cujo último capítulo tem o título de “As revoluções da vida política: nem a gloria da nação, nem a ideia revolucionaria, mas a preocupação com o outro e as futuras gerações”. Mais recentemente escreveu o livro “Do Amor – uma filosofia para o século XXI” no qual continua elaborando suas ideias. Este filósofo defende a ideia de estarmos caminhando para um paradigma humanista que não tem a ver com ideais humanitários, mas sim com os sentimentos de amor individuais. Hoje não se morre pela pátria ou por um ideal de justiça ou de igualdade, mas se sacrifica por amor a uma pessoa querida.  
Minha intenção pois é introduzir o amor individual nas concepções psicanalíticas. Vamos ver se ela é realizável. Para isso vou me utilizar, à moda deleuziana, do pensamento de Freud e Winnicott.
O trabalho seminal de Freud sobre Narcisismo foi escrito em 1914 e antecedeu os artigos que denominou de metapsicológicos. Seu título em português na Edição Standard da Imago é “Sobre o Narcisismo: uma Introdução” e cabe bem na sua declaração de que a “intenção da série [artigos sobre metapsicologia] era proporcionar um fundamento teórico estável à psicanálise”. Embora não incluído nos “Artigos sobre metapsicologia” de 1915 sem dúvida o “Sobre o Narcisismo” é um artigo teórico fundamental assim como “Luto e Melancolia” também de 1915. Há porém outras menções ao narcisismo feitas antes e depois de 1914, não trabalhadas conceitualmente mas que examinadas retrospectivamente revelam indícios precursores de uma psicanálise contemporânea.  
Segundo Freud, o bebê ao nascer não tem um ego unitário. Seu ego “não existe como unidade” (Freud). As pulsões se apresentam dispersas, não integradas, distribuídas pelos vários órgãos do corpo.  É preciso que haja uma “uma nova ação psíquica” (Freud) para que ocorra uma confluência da libido, permitindo ao ego existir como unidade. Este ego agora unificado armazena então a totalidade da libido. Estamos aqui na vigência de um narcisismo que é batizado de primário por ainda não ter tido a vivência de uma realidade externa. Em seguida parte da libido narcísica armazenada no ego investe os objetos externos mantendo relações pseudópodas com eles. Se algo não vai bem, rompe-se a relação com a externalidade e a libido investida nos objetos retorna ao ego. A isso Freud chama de “narcisismo secundário”. O ego (1914) passa a ter um excesso de libido. O que acontece então com esta libido excessiva? Três possibilidades. Citação: “Ele pode ter desviado inteiramente o seu interesse sexual dos seres humanos; contudo pode tê-lo sublimado num interesse mais elevado pelo divino, pela natureza, ou pelo reino animal, sem que sua libido tenha sofrido introversão até suas fantasias ou retorno ao seu ego” (p.97 de “Sobre o narcisismo”.). Esta frase permite-me visualizar um núcleo de ego onde os objetos abandonados desaparecem tornando-se, por identificação primária, parte da pessoa; e uma periferia onde os objetos conservam sua identidade permitindo uma relação ego/objeto fantasiado. É um reforço do que Freud já dizia nas primeiras páginas de “Sobre o Narcisismo” referindo-se à psicose como “megalomania e desvios de seu interesse do mundo externo --- de pessoas e coisas”(p.90) e à neurose como uma “desistência” de sua relação com a realidade, mas que não “corta suas relações eróticas com as pessoas e as coisas. Ainda as retém na fantasia, isto é, ele substitui, por um lado, os objetos imaginários de sua memória por objetos reais, ou mistura os primeiros com os segundos, e, por outro, renuncia à iniciação das atividades motoras para a obtenção de seus objetivos relacionados àqueles objetos”. Um trecho deste mesmo artigo (p.91/92) me fornece uma ‘cabeça de ponte’ para o meu propósito de encontrar na psicanálise uma formulação que possibilite uma inclusão amorosa dos seres humanos e da Natureza no psiquismo de cada indivíduo permitindo que cada sujeito realize uma ecologia holística. Eis o trecho: “Assim formamos a ideia de que há uma catexia original do ego, parte da qual é transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada a catexias objetais assim como o corpo de uma ameba está relacionado com os pseudópodes que produz”. Usando a alegoria de Freud pode-se dizer que se a ameba não enviasse pseudópodes ao exterior ela permaneceria em estado de narcisismo primário; em enviando pseudopedes ela entra em contato com o mundo e se mantém em estado de narcisismo agora secundário. O que quero destacar é que não há como separar o investimento do ego (narcisismo primário) do investimento objetal que é um prolongamento do narcisismo original. E mais, para que a pessoa permaneça sadia é indispensável que ela saia de sua casca autística e se relacione com o mundo. É o que Freud nos diz: “Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em consequência da frustração, formos incapazes de amar” (“Sobre o narcisismo”, p.101). É preciso, portanto que amemos.  Mas pode-se falar do amor de muitas maneiras. Minha proposta terá seu ponto de partida no amor individualizado de Luc Ferry e será o resultado de um estado de porosidade que permite que os outros e o mundo passem a fazer parte de nós mesmos, de tal maneira que não haja diferença entre cuidar do si mesmo primitivo (antes do contato com o mundo) e o cuidar do si mesmo quando já se inclui o outro vivo ou inanimado. Aqui torna-se necessário falar de equidade, seleção e prioridades a serem levadas em consideração em uma avaliação ecológica de equilibração. Há situações mais urgentes e menos urgentes. Há partes de si mesmo mais amadas ou mais importantes que outras. Há situações de maior perigo ou de menor perigo para partes de si mesmo. Tudo isso torna complexa a avaliação ecológica e humanista e sua resultante comportamental. Mas a avaliação só acontece depois que uma abertura porosa incluiu o diferente e o estranho no psiquismo do sujeito.
Há pontos em comum entre esta concepção e concepção freudiana de narcisismo secundário. Para Freud o narcisismo secundário é um retorno da libido objetal para o ego. Minha concepção dá ênfase a um estado poroso que permite a entrada do outro, do mundo, do diferente, do estranho em nosso psiquismo. Sendo mais minucioso. Para Freud existe um narcisismo primário que é uma concentração no ego da libido narcísica. Esta libido investe objetos do mundo externo. Em algum momento os objetos externos provocarão uma frustração, uma decepção, um trauma e então a libido retorna ao ego. Ao retornar carrega consigo uma sombra do objeto. Esta libido retornante é chamada por Freud de narcisismo secundário. Minha concepção, calcada no pensamento de Winnicott, ao mesmo tempo se assemelha e se diferencia da de Freud. A ideia geral é de que se formos porosos poderemos incluir o estranho, o diferente, o outro, o mundo externo em nosso psiquismo favorecendo um narcisismo ecológico, humanista, equilibrado. Esta inclusão até certo ponto se assemelha à concepção freudiana de narcisismo secundário, caracterizada por um retorno ao ego da libido investida nos objetos “que são assim num certo sentido levados para o nosso ego” (Freud “Sobre a transitoriedade” Vol.14, p.347). Tanto na minha concepção quanto na de Freud o externo é interiorizado passando a fazer parte do sujeito. Porém em Freud tanto a assimilação do outro na zona do ego, na qual este outro desaparece passando a fazer parte da personalidade, quanto a introversão para a zona de fantasia em que não há total assimilação são considerados narcisismo secundário. Eu prefiro chamar de narcisismo secundário apenas o retorno da libido para a zona de fantasia, pois, nesse caso o outro continua individualizado; aquilo que foi assimilado deixando de ser o outro e passando a ser um si-mesmo volta, na minha concepção, à condição de narcisismo primário. Apesar das diferenças, as semelhanças me levaram a considerar a possibilidade de lhes dar o mesmo nome. (Percebo que é necessário fazer aqui uma interpolação para sustentar minha argumentação. Vou então inserir um fragmento tirado do artigo “Sobre o narcisismo: uma introdução” na esperança de melhor esclarecer as noções de narcisismo primário e de narcisismo secundário que apresento. Frase de Freud: “Ele pode ter desviado inteiramente o seu interesse sexual dos seres humanos; contudo pode tê-lo sublimado num interesse mais elevado pelo divino, pela natureza, ou pelo reino animal, sem que sua libido tenha sofrido introversão até suas fantasias ou retorno ao seu ego” (p.97). Por esta frase vemos que Freud admite a existência de uma zona egóica e de uma zona de fantasia. Na zona egóica assimila-se o outro; na zona de fantasia o outro internalizado mantém uma individualidade. Quando a libido retorna ao ego, o objeto desaparece, pois se torna parte da pessoa. Quando a libido retorna à fantasia o objeto pode ser alcançado pela consciência, pois sendo um objeto, é algo diferente de si mesmo. O si mesmo, aquilo que foi incorporado ao ego, é muito mais difícil de ser percebido do que o objeto da fantasia).
 É claro que minhas ideias se sustentariam mesmo não batizadas como narcisismo secundário. Mas, eu gostaria que elas tivessem um lugar no corpo teórico psicanalítico e essa é uma oportunidade de tentar fazer uma inclusão. Além disso, quanto mais associações forem feitas mais clara e consistente será esta forma de interpretar a noção de narcisismo secundário.
Eu contei a estória do narcisismo primário e secundário em Freud. Falta contar a estória de meu narcisismo secundário. Ela esta calcada no espírito winnicottiano, embora ---- deixarei logo explicitado --- Winnicott não use o conceito de narcisismo secundário. Mas isto será visto mais adiante se houver tempo. Vamos então à minha estória que será contada não em termos de indivíduos isolados, mas em termos de relacionamentos. O bebê nasce poroso o que lhe permite imediatamente fazer uma relação de fusão com a mãe. (Winnicott concede chamar à relação de fusão mãe-bebê de narcisismo primário). A porosidade, embora modificada, continua funcional na fase de dependência relativa, a não ser que ações castradoras venham a obturar a porosidade. Em conservando a capacidade de identificação porosa o sujeito poderá acolher o diferente e o estranho em seu psiquismo tornando-os uma parte de seu eu e consequentemente tratando-os com interesse narcísico (que posso chamar de amor). Esta é a minha concepção de narcisismo secundário.
Parêntesis: uma observação que se torna cada vez mais premente: não estou negando o ódio, a agressividade, a destrutividade existentes nas relações humanas. Mas aqui não é o lugar apropriado para estudá-los. Melhor voltarmos nossa atenção à sequência do trabalho.
Tendo examinado o meu conceito de narcisismo secundário à luz dos conceitos freudianos, farei o mesmo tendo como guia o pensamento winnicottiano.
Para mim foi surpreendente ter encontrado no livro “Winnicott e Kohut” de Carlos Nemirovsky o seguinte trecho: “Winnicott siempre fue reacio a emplear el concepto de narcisismo. Dice en 1966 que “...nunca me satisfizo el uso de la palabra narcisista [...] pues el concepto íntegro de narcisismo excluye las enormes diferencias resultantes de la actitud general y la conducta de la madre” (p. 114). Traduzindo: Winnicott sempre foi renitente em relação a empregar o conceito de narcisismo. Em 1966 ele disse que “...nunca me satisfez o uso da palavra narcisista [...] pois o conceito íntegro de narcisismo exclui as enormes diferenças resultantes da atitude geral e da conduta da mãe”. Vemos aí a diferença entre o paradigma de um eu solitário e o paradigma relacional.
Como a minha questão era dar vida e significado ao conceito de narcisismo secundário eu o procurei na obra de Winnicott. A certa altura resolvi pedir a ajuda de meu amigo Davy Bogomoletz. Por uma feliz coincidência ele está elaborando um dicionário sobre conceitos psicanalíticos e com o auxilio de Maria de Fátima de Amorim Junqueira encontrou na obra de Winnicott uma única citação de narcisismo secundário no artigo “A capacidade de estar só” que se encontra no livro “O ambiente e os processos de maturação”. Eis a citação: “Após raciocinar em termos de relações tripessoais e bipessoais é natural se considerar um estagio ainda anterior, em termos de relação unipessoal ou individual. O narcisismo seria a relação unipessoal, individual, tanto na forma precoce de narcisismo secundário como do próprio narcisismo primário. Sugiro que este salto da relação diádica à relação individual não pode, de fato, ser feito sem violação do muito que verificamos no nosso trabalho analítico e na observação direta de mães e crianças” (p.32). Analisando cuidadosamente a citação achei-a algo turva, uma obscuridade, em minha opinião, política, pois sua não utilização do conceito de narcisismo secundário contrariaria o pensamento psicanalítico de sua época. Ao falar da naturalidade do salto intelectual dado quando se pula da díade mãe-bebê para um bebê sem mãe (contrariando sua convicção de que não se pode falar de um bebê sem mãe, e, portanto, não se pode teorizar tendo como base um sujeito isolado) --- creio que ele está se referindo a uma tendência advinda de uma adesão a um paradigma causal que faz com que nos percamos no automatismo dos encadeamentos conceituais macroscópicos sem ter condições de perceber a possibilidade de uma observação mais apurada que o paradigma holístico permite. Pensar psicanaliticamente em um bebê sem mãe pertence a um paradigma cientificista, a uma episteme causal cartesiana que Winnicott está abandonando em favor de um paradigma holístico.
Mas se Winnicott não aceita o uso do conceito de narcisismo secundário teria eu alguma possibilidade de vinculá-lo ao pensamento winnicottiano? Acredito que sim e é o que vou tentar fazer. Começarei dizendo que Winnicott para usar o conceito de narcisismo primário de Freud teve de inserir nele um vírus holístico: a relação mãe-bebê. Enquanto Freud fala de um narcisismo primário solipsista ---- visto da perspectiva do indivíduo isolado em um sistema fechado ---- Winnicott fala de um bebê aberto ao psiquessoma da mãe e por ela sustentado. É um bebê cuja porosidade lhe permite fazer uma relação de fusão com a mãe. POROSIDADE. Esta é a palavra-virus. Assim como Winnicott se valeu da palavra-vírus MÃE para enriquecer o conceito de narcisismo primário freudiano usarei a palavra-vírus POROSIDADE para incluir a expressão narcisismo secundário que Winnicott não usa, na psicanálise de inspiração winnicottiana. A ideia geral é a seguinte: o recém-nascido tem uma porosidade própria da fase de dependência absoluta que se passa no estado de narcisismo primário. Isto significa que o bebê não tem consciência do não-eu. Sua porosidade lhe serve para uma relação íntima com a mãe que é vivida como parte dele. Vou trazer duas citações de Winnicott sobre narcisismo primário para então falar do narcisismo secundário. Citando Winnicott: “Nos estágios mais iniciais, encontramos uma total fusão do indivíduo ao seu ambiente, descrita pela expressão narcisismo primário” (Natureza Humana, p. 177)... “Anteriormente a tudo isto há o estagio do narcisismo primário, o estado no qual percebemos como sendo o ambiente do bebê e o que percebemos como sendo o bebê constituem, de fato, uma unidade. Aqui pode ser utilizada a desajeitada expressão ‘conjunto ambiente-indivíduo’. O ambiente, tal como o conhecemos, não precisa ser mencionado, porque o individuo não tem meios de percebê-lo, e na verdade o indivíduo não se encontra ali, ainda não está separado do aspecto ambiental da unidade total” (Idem, p.178/9).
O bebê da fase de fusão, exercendo uma porosidade própria da dependência absoluta, não se distingue do ambiente (a mãe é parte fundamental do ambiente). Quando a mãe começa a falhar, introduzindo a fase de dependência relativa, o bebê sente ameaçada sua continuidade de existência. Ele se depara com o abismo da desintegração e dela se defende dando um passo em direção à maturidade através da criação do objeto transicional (símbolo de 1º grau) e do desenvolvimento da mente, isto é, do intelecto. Evidentemente, com este passo adiante muda o tipo de porosidade, pois ele agora está lidando com situações frustradoras externas que afetam sua experiência de onipotência, e fazem aparecer as dualidades amor/ódio e eu----não-eu. A consciência do mundo externo faz com que ao narcisismo se acrescente um narcisismo secundário. Sua porosidade torna-se seletiva internalizando o bom objeto sintônico ao self e rejeitando o mau diferente agressivo. Será necessário um tempo de maturação, com passagem pelo concern, para que ele possa se utilizar da bondade e do amor vividos com a mãe abrindo-se ao diferente agressivo e aceitando-o como parte de si mesmo.
No narcisismo primário não há escolha. Sua porosidade é absoluta e não lhe é possível rejeitar os aspectos tóxicos de um ambiente, mesmo porque não tendo consciência do ambiente, este é parte dele. Já no narcisismo secundário existe a percepção do mundo externo, da diferenciação eu-outro e uma possibilidade seletiva que poderá ir se alargando, acompanhando o amadurecimento individual. Poderemos então pensar em um tempo utópico em que todos os seres seriam internalizados e tratados com amor narcísico. Daí o título de narcisismo secundário inclusivo. Penso em uma equilibração ecológica/humanista/holística da qual já falei quando na parte freudiana deste artigo. O conceito de narcisismo secundário nos ajudaria a compreender os acontecimentos e a teorizá-los  tendo em mente a ideia de uma internalização abrangente sem desaparecimento de identidade dos seres internalizados.   
                                                          Junho/2014
                                                                                                          Nahman Armony