UMA VISÃO PSICANALÍTICA DOS OBJETOS FETICHES ABSTRATOS DA MODERNIDADE

Dedico este trabalho a Odette Wildhagen, esta incrível pesquisadora intuitiva que me auxilia para além do texto. Agradeço a Ana Lila Lejarraga cuja leitura crítica do primeiro esboço deste artigo contribuiu para estruturá-lo.

Coloco o objeto fetiche como um dos habitantes do espaço potencial/transicional.

        Para facilitar meu pensamento vou figurar este espaço através de uma linha com um extremo imerso no subjetivo, o outro extremo ocupado pela objetificação do mundo e entre ambos o espaço transicional preenchido ao mesmo tempo pelo subjetivamente concebido e objetivamente percebido. A tendência do homem é viver a maior parte do tempo no espaço transicional, fora dos pontos extremos. 

        Tendo em mente esta figuração começarei pelo extremo subjetivo. Quando as pessoas sonham, devaneiam, fazem fantasias desligando-se da objetividade do mundo externo estaremos nesta extremidade. Ela nos é muito útil como um lugar de repouso no sentido principalmente de não se ter a preocupação nem o trabalho de distinguir o objetivo do subjetivo, pois o objetivamente percebido deixa de ter importância. A relação é com o objeto subjetivamente concebido.

    No outro extremo os objetos são objetificados. Para alcançar essa meta é preciso desconsiderar as impregnações emocional, inefável, afetiva, poética, misteriosa, numinosa que desmaterializam o objeto tornando-o incerto e fascinante. É uma tentativa de controlar o acaso inerente ao devir do mundo. Mas a consequência é o esvaziamento dos afetos, gerando uma sensação de vazio, de inutilidade, de falta de sentido, de tédio. A pessoa facilmente se sente solitária mesmo em presença de outros. No polo objetivo não será possível estabelecer relações intersubjetivas. A relação se dará com os objetos objetivamente percebidos.

      Examinemos agora os objetos fetichistas. A minha maneira de usar a palavra fetiche pede uma digressão. Eu me apoiarei inicialmente no sentido dado por De Brosses: fetiche é um objeto divinizado, adorado, com poderes mágicos que dá segurança àquele que o possui.  Freud fala da existência de bonecos-fetiche nas culturas tribais. Trata-se de uma réplica do dono e o substituirá nas horas da aplicação do castigo por atos condenáveis. Assim o amo se livra do castigo e da culpa que ficam colocados no fetiche. (Mal-estar na civilização. P.150).
Até aqui estamos falando do fetiche dos povos chamados primitivos.        Desde então fetiche sofreu várias interpretações ao ser utilizado em outras áreas do saber: para Alfred Binet (“O fetichismo no amor” publicado em 1887) trata-se de um investimento libidinal em objetos inanimados e partes do corpo. Na concepção de Freud (“Fetichismo” em 1927) o fetiche é um objeto parcial que representa o pênis. Para Marx a mercadoria é um fetiche que esconde o valor de uso dos objetos. Já Adorno(Textos escolhidos, 1963) fala de um fetichismo musical.

        A mesma coisa nos é dito por Maria Helena Fernandes em relação a um fetichismo que tem como objeto o corpo. Trecho de seu artigo “O corpo e os ideais no mal estar feminino” (Revista Científica de Ockham, vol.10 n.1 Enero-junio 2012). No I Colóquio Internacional sobre Praticas e usos do corpo na modernidade, que ocorreu na Universidade de Rennes II, em 2007, eu enfatizei que a clínica psicanalítica da anorexia e da bulimia, ao colocar em evidencia a fetichização do corpo, o apego ao ideal e a amplitude do mecanismo da recusa e da clivagem, revelava sua potencialidade para engendrar uma contribuição, propriamente psicanalítica, a respeito das vicissitudes do mal estar contemporâneo”.

       Este nomadismo conceitual me anima a propor que se ponha em circulação a ideia de fetiches abstratos modernos. A concepção de fetichismo musical de Adorno permitirá compreender melhor minha concepção de fetichismo abstrato moderno. Começarei por uma citação que se encontra na p. 87 do livro T.W.Adorno – Trechos escolhidos da Editora Nova Cultural de São Paulo, editado em 1996.

“A consciência da grande massa dos ouvintes está em perfeita sintonia com a música fetichizada. Ouve-se a música conforme os preceitos estabelecidos pois, como é óbvio, a depravação da música não seria possível se houvesse resistência por parte do público, se os ouvintes ainda fossem capazes de romper, com suas exigências, as barreiras que delimitam o que o mercado lhes oferece.”

No meu entendimento, Adorno está nos dizendo que quando o mercado impõe ao público um gosto musical  está abafando o autêntico gosto singular de cada um. Está substituindo um aspecto do verdadeiro self pelo falso self.
        Usando a mesma concepção considerarei que certos objetos abstratos são objetos fetiches, imposições falso self da sociedade.

Chamarei então de fetiches às ideias de winner, perfeição, sucesso, celebridade, fama, e outras que tais quando levadas ao exagero e, portanto não integradas no conjunto corpopsiquemente. São fetiches por terem a característica de serem adorados, por se lhes atribuir poderes mágicos e pelo recurso da duplicação. Estes atributos quando integrados em um quadro mais amplo de vida, em um campo que inclua as relações humanas com os seus afetos amorosos e agressivos, estará sob a vigência de uma integração corpopsique/mente e, portanto com um pertencimento ao campo transicional propriamente dito, o que impedirá sua exponenciação. Se a mente se apodera dos desejos aqui citados separando-os do psiquessoma poderão se tornar fetiches, migrando para o polo objetivo radical do espaço transicional.

 O objeto transicional estabelece uma ponte entre o subjetivo e o objetivo englobando-os em uma unidade paradoxal. Digamos que eu seja um juiz julgando um amigo. Terei sentimentos carinhosos por ele e tentarei protegê-lo; ao mesmo tempo, quererei exercer a minha função de juiz analisando objetivamente os fatos. Eu poderia dar logo uma sentença que seria um misto de legalidade (objetividade) e clemência (subjetividade); ou poderia transitar por mais ou menos tempo entre meus sentimentos por ele e minha fidelidade à lei até encontrar uma sentença que estivesse de acordo com o conjunto de meu psiquismo. Neste caso a ideia de justiça estaria transitando pelo espaço transicional. Porém, se eu, como juiz, me ater estritamente à Lei, transformando-a em fetiche, deixarei de transitar entre o objetivo e subjetivo, tornando-me um ser exclusivamente racional, uma pedra sem sentimentos. O objeto transicional “Lei” objetifica-se passando a ser um objeto fetiche; de uma ligação viva entre o objetivo e o subjetivo passa à condição de um lócus sem fluidez temporal onde habitam objetos despojados de seu potencial transicional por carência de conexão subjetiva. Mutatis mutandis trata-se da mesma situação do menino do cordão descrito por Winnicott. O menino inicialmente usou o cordão como objeto transicional tornando presentes as pessoas ausentes; com o tempo o cordão perdeu suas propriedades transicionais e tornou-se uma negação da separação. “O cordão se torna uma coisa em si”, diz Winnicott (Winnicott – O brincar e a realidade, p.36).  O cordão transicional evoca a relação intersubjetiva entre os membros da família. O cordão fetichista ocupa o lugar da relação intersubjetiva. Aqui eu penso em artistas de cinema talentosos que viviam e transmitiam os sentimentos dos personagens e que viraram canastrões, imitando sentimentos que no passado tinham autenticamente vivido, mas que agora estão esvaziados de emoção, sem possibilidade de envolver afetivamente a plateia. Encontramos essa mesma situação em pessoas comuns que desenvolveram autenticamente uma sensibilidade em relação aos sentimentos do outro e que perdendo-a passam a representar discreta e teatralmente uma sensibilidade falsa, inautêntica, entrando na área do falso self. Elas imitam aquelas pessoas que eram no passado transformando-se em fetiches de si mesmas. Usam a memória mental, racional para realizarem esta imitação. Outro exemplo: acompanhei a carreira de uma violinista famosa que tocava com alma, transmitindo seus sentimentos à plateia e que perdeu a capacidade de comunicação emocional embora as nuances expressivas estivessem presentes. Mas essas nuances não mobilizavam os sentimentos da plateia dando a impressão de que ela copiava a violinista que fora. Ao término de seu desempenho os aplausos foram convencionais e frios. Poderíamos hipotetizar que na ânsia de manter sua virtuosidade e capacidade  interpretativa ela delegou esta tarefa ao intelecto. E isto teria acontecido por ter ela em algum momento “escorregado” o que lhe era inaceitável, devido ao fetiche “perfeição”. Deixando de confiar na sua espontaneidade teria delegado á mente a tarefa de uma fiscalização onipotente. Isto ficará mais claro no exemplo seguinte que retirei do livro “A humilhação” de Philip Roth. Seu personagem principal, Axler, um famoso ator de 65 anos, no auge de sua carreira, torna-se um observador consciente do seu desempenho. “Ele tinha consciência da pior maneira possível, de cada instante que passava no palco. Antes, quando ele atuava, não pensava em nada. O que fazia bem, fazia por instinto. Agora pensava em tudo, e tudo que havia de espontâneo e vital era destruído ---- ele tentava controlá-lo com o pensamento e acabava destruindo-o.”(p.8). “Uma imitação de si próprio havia surgido, algo que não existia antes, uma autoimitação que não tinha base em nada, e ele era aquela autoimitação, e como foi que aquilo tinha acontecido?”(p.14). Finalmente ele se suicida representando o papel de Konstantin Gravilovich da peça teatral “A Gaivota”. Seu bilhete de despedida com apenas 8 palavras dizia: “O fato é que Konstantin Gravilovch se matou”. Axler, ao tentar controlar seu desempenho para que fosse perfeito, entregou à mente esta tarefa, dissociando-a do psiquecorpo. Transformando-se em falso self a vida perdeu a beleza, a emoção, o mistério, tornando-se fútil, sem sentido. Uma hipótese dinâmica: o comportamento inicialmente espontâneo permitiu que Axler se tornasse um grande ator, admirado, festejado, amado. O receio de que as inevitáveis falhas viessem a prejudicar os sentimentos positivos de seus admiradores, fez aparecer o desejo de alcançar o fetiche “Perfeição” e transformou o comportamento espontâneo que advém de um equilíbrio entre psiquecorpo e mente para um comportamento dirigido pela mente, portanto dominado pelo racional. Pertence ao paradigma moderno em declínio mas ainda vigente, a concepção de que a mente é a única capaz da proeza de um comportamento onipotentemente controlado e, portanto perfeito. Maria Helena Fernandes, já citada acima, tem uma percepção semelhante à minha: “Uma questão se coloca: por que a alimentação vem adquirindo lugar de destaque no cenário contemporâneo? A meu ver a preocupação com a alimentação tem se convertido em fetiche privilegiado do controle do corpo na atualidade. É o corpo fetichizado que parece servir de estandarte do projeto higienizador e totalitário de controle da existência humana na modernidade” (Ibid, a.137).

O dinheiro é um exemplo esclarecedor da dinâmica fetichista: a moeda foi uma grande conquista da humanidade que facilitou a circulação de mercadorias e de forças de trabalho. Estava, portanto no campo do valor de uso. Com o passar do tempo, a moeda passou a ser um valor ela própria, sem ligação com o seu uso. Tornou-se um fetiche. Uma ótima caricatura desta situação é o Tio Patinhas que tinha uma piscina cheia de moedas na qual mergulhava com deleite e devoção. As moedas provocavam-lhe orgasmos psíquicos. A moeda transforma-se em fetiche quando perde sua conexão com objetos vivos e passa a ter um valor em si. Exatamente o que Winnicott fala do cordão. Exatamente o que acontece quando uma pessoa torna-se um falso self. Ela não mais se identifica com a realidade subjetiva do outro mesmo que a perceba e a use. Ao mesmo tempo, não estando afetivamente ligado ao outro podemos também dizê-lo autista (não estou me referindo ao autismo descrito por Tustin mas sim ao que hoje é chamado de espectro autista). São pessoas que sofrem de solidão independentemente do número de conhecidos e amigos que tenham. Voltando ao exemplo do juiz poderemos dizer que lhe é fácil aplicar a lei quando o aspecto subjetivo, amoroso não está presente. Neste caso ele estará no polo objetificante do espectro transicional. Ele até poderá intelectualmente levar em consideração o aspecto amoroso, não por senti-lo, mas por estar sob escrutínio público, sujeito a crítica, reprovação e até repulsa e sentimentos de asco. O objeto fetiche deste juiz seria a Lei que lhe permitiria viver uma vida emocionalmente afastada da subjetividade de seus semelhantes.

EM RESUMO: ao tentar controlar intelectualmente os afetos referidos aos objetos fetiche abstratos e acreditando na onipotência da mente racional, a pessoa acaba dissociando a mente do psique/corpo, colocando-se no extremo objetificante do espectro transicional, transformando-se num falso self com o seu cortejo próprio de sofrimentos.  
       
                                                               Nahman Armony
   
Em 26/11/2013

CRIATIVIDADE E SAÚDE


                                  
        Tanto para Freud como para Winnicott há uma íntima relação entre criatividade e saúde mental. São, porém concepções que apresentam diferenças.
A primeira das diferenças está nas conotações da palavra “criatividade”. Freud a usa no sentido corrente, cotidiano, corriqueiro: a produção de algo novo. É o significado dicionarizado.
Já Winnicott dá uma conotação inédita à palavra: criatividade é “criar o que já existe”. Logo veremos os desdobramentos deste mote. Por enquanto estou querendo distinguir as concepções destes dois gigantes.
Para o Freud da primeira tópica a criatividade depende basicamente da sublimação que é a transformação da libido sexual em energia neutra. Esta então pode ser usada para outros fins entre os quais está incluída a criatividade. A libido sexual ao se transformar em energia neutra ou em libido narcísica cede parte de sua força pulsional. A criatividade, pois se alimenta da sexualidade diminuindo a força desta. Citação em Leonardo da Vinci, v.11: “Constatamos a veracidade deste fato se ocorrer uma atrofia estranha durante a vida sexual da maturidade, como se uma parcela da atividade sexual houvesse sido agora substituída pela atividade do impulso dominante”.
Este mesmo sequestro da sexualidade continua sendo postulado por Freud na segunda tópica. Citando: (O Ego e o Id”, v.19 de 1924, cap.III intitulado “O Ego e o Superego”): “Em verdade, surge a questão, que merece consideração cuidadosa, de saber se este não será o caminho universal à sublimação, se toda sublimação não se efetua através da mediação do ego, que começa por transformar a libido objetal sexual em narcísica e, depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo.” Em 1932, na Conferência 32 Freud reafirma a vinculação entre as pulsões dizendo que uma pulsão pode ser substituída por outra. O aumento da força de uma implica em um decréscimo na força da outra.
Para Winnicott criatividade é uma força primária e portanto não se exerce às expensas da sexualidade. Sexualidade e criatividade são duas potências independentes e fazem parte daquilo que Winnicott chamou de “força vital”. Força vital é o correspondente à pulsão de vida de Freud.
Como prometi desenvolverei a ideia contida na frase “criar o que já existe”.
Repito: Winnicott dá uma conotação original à palavra criatividade dizendo que criar é criar o que já existe. A situação matriz que ele descreve é a de um bebê com fome alucinando um seio que o saciará. Se, neste instante a mãe comparece com o seu seio cheio de leite a vivência do bebê é de que ele criou o seio. Estou simplificando uma situação complexa e continuarei nesta linha, pois é preciso primeiro simplificar para entender bem os conceitos deixando para depois a complexidade dos acontecimentos. Então, para nosso objetivo o importante aqui é justamente a vivência de ter criado o seio, isto é, ter “criado o que já existe” que é o refrão de Winnicott. Na sua linguagem há um encontro do subjetivamente concebido (o seio alucinado) com o objetivamente percebido (a existência real do seio). Tendo o bebê criado o seio, este lhe pertence, é uma parte sua, mesmo que distinga o objeto seio do seu corpo próprio. Agora apresentarei uma situação para contrastar a criatividade que liga indissoluvelmente o ser humano ao mundo com as consequências da ausência deste tipo de criatividade. Imaginemos duas situações: na primeira o bebê está com fome e imagina um seio que o saciará. O seio aparece. Ele criou o seio. Na segunda o bebê não está com fome, mas a mãe insiste em lhe dar o peito, pois dentro de seu esquema estaria na hora de fazê-lo. Este seio não é inventado pelo bebê, mas imposto pela mãe, pelo mundo externo. Ele é objetivamente percebido, mas não subjetivamente concebido.
O bebê ou se revolta ou se submete ou ambas as coisas. De qualquer forma o seio é um objeto pelo qual, naquele momento, o bebê tem aversão, pois é sentido como invasivo, agressivo. Ele então recolhe o seu desejo verdadeiro e se submete à mãe para satisfazê-la. Ele não mama com o seu verdadeiro self, mas com o conformismo, de um falso self. Ele não se sente afetivamente, corporalmente, ligado a esse seio. Há um desligamento emocional que faz a amamentação perder o seu caráter afetivo. Torna-se um ato intelectual.
Um outro exemplo para reforçar a compreensão do conceito e para preparar a teorização que se seguirá. O primeiro exemplo foi do campo das necessidades básicas. Este segundo exemplo será do campo da ética, ou, como Winnicott prefere, da moral. Winnicott usará a religião para expor seu pensamento(MORAL E EDUCAÇÃO do livro O AMBIENTE E OS PROCESSOS DE MATURAÇÃO). Para crer em alguma coisa a criança precisa estar subjetivamente disposta a crer. Se ela teve pais suficientemente bons e confiáveis ela neles acredita nos pais, internalizando em sua subjetividade a insinuância “crer em”. Ela está pronta a escolher e abrigar, ao menos parcialmente, um dos objetos de crença que a cultura oferece. Em encontrando este objeto (seja uma religião, uma filosofia, uma ideologia, etc.) que é objetivo por ser consensual haverá o encontro do subjetivamente concebido com o objetivamente percebido. Um encontro frutuoso do objetivo com o subjetivo. A fome moldou um seio subjetivo que ao se encontrar com o seio objetivo criou um forte elo entre o sujeito e o mundo. A “crença em” subjetiva, ao encontrar um objeto consensual apropriado também vincula o objetivo ao subjetivo.
Da mesma forma que uma mãe intrusiva impõe o seio ao bebê tornando-o um ser submisso, estorvando  sua criatividade, uma sociedade intrusiva impõe ideologias. Ambas agem no sentido de obter uma submissão impeditiva do uso da criatividade. Ambas provocam uma dicotomia, dissociando o falso do verdadeiro self, intelectualizando o mundo e tornando-o fútil, afetivamente sem sentido. Tal como não se deve impor o seio, também não se deve fazê-lo com a ideologia. Deve-se esperar que o desejo de “crer em” faça com que o ser humano busque uma ideologia adequada a sua personalidade que então terá elementos subjetivamente concebidos e objetivamente percebidos. Essa ideologia estará, pois situada no espaço transicional. Portanto, fora da dissociação falso self/verdadeiro self.  
Um último exemplo: a aurora, o pôr do sol e outros espetáculos da natureza podem deixar o espectador indiferente ou deslumbrado. Se o espectador que tem fome de comida, fome de ideologia, também tiver fome de beleza ele contemplará com enlevo as manifestações da natureza. Sua subjetividade irá de encontro à objetividade do acontecimento tingindo-o com suas emoções. Ele sabe que o sol é uma estrela que descreve uma trajetória. Mas ao mesmo tempo é uma tocante dádiva dos deuses. Cada aurora será vivida de forma diferencialmente diversa e semelhante, pois o complexo subjetivo de uma ocasião é diferente do complexo subjetivo de outra. Cada aurora será, pois recriada tantas vezes quantas for vista. Por outro lado é possível não se ligar à beleza do acontecimento, ficando-se restrito à objetividade sol.
        Com estes exemplos eu quis distinguir modos de ser afetivo e desafetivo. Este último busca objetificar a existência. Mas um mundo puramente objetivo perde sua razão de ser, deixa de fazer sentido, provocando uma sensação de tédio, de futilidade, de descolamento. O desapego pode funcionar por algum tempo, mas em geral cobra um pesado tributo. Repetindo e acrescentando: uma pessoa não criativa (no sentido winnicottiano) desliga-se afetivamente do mundo que lhe aparece sem sentido, fútil, estranho. Sua ligação com ele torna-se intelectualizada, ocupando o polo objetivo do espaço transicional e portanto, paradoxalmente, fora do espaço transicional. É o seu falso self que domina o psiquismo estando o verdadeiro self dissociado e disfuncional. A sensação de ser um E.T. geralmente provoca um sofrimento que pode levar até o suicídio. Certamente isto não é saúde. Uma condição necessária para a saúde de uma pessoa  é o sentimento de pertencer ao mundo e o mundo lhe pertencer. E isto só acontece quando a pessoa cria o que já existe que é o que Winnicott chama de criatividade.
        Bem, esta é a minha contribuição no que diz respeito às relações entre criatividade e saúde mental.   Mas Winnicott tem mais coisas interessantes a dizer: na p.237 de seu livro “Pensando sobre crianças” ele afirma que a saúde mental da criança não tem a ver com a presença ou a ausência de sintomas. A vida e o desenvolvimento individual são tão cheios de vicissitudes que inevitavelmente haverá sofrimentos. Se a provisão ambiental for suficientemente boa, o individuo vencerá os percalços do desenvolvimento e prosseguirá em seu caminho para a maturidade. Isto significa que a criança deverá ser considerada em um contexto maior no qual estarão presentes entre outros fatores o ambiente e desenvolvimento futuro. Eu acrescentaria que quando se trata de adultos deverá existir uma provisão ambiental internalizada que sofrerá variações dependentes do acolhimento do ambiente externo, isto é, da provisão ambiental externa. Mas Winnicott tem mais coisas interessantes a nos dizer. Tentarei resumir e falar com minhas próprias palavras o que encontrei nas páginas 136 e 137 do livro “A Família e o Desenvolvimento Individual”: Winnicott identifica a relativa maturidade à saúde. Para amadurecer o ser humano necessita de um ambiente suficientemente bom (um ambiente provedor) que acolha e lide adequadamente com as dificuldades do crescimento pessoal. De início este ambiente é a mãe, depois a família restrita, mais adiante a família estendida, a escola, e finalmente as instituições e agrupamentos sociais. Na medida em que cresce, o ser humano vai criando uma provisão ambiental interna que lhe permite, até certo ponto, suportar um ambiente não acolhedor. Vou citar um trecho do artigo “Família e maturidade emocional” que consta do livro acima citado: “Esse raciocínio identifica a maturidade adulta à sanidade psiquiátrica. Pode-se dizer que o adulto maduro é capaz de identificar-se a agrupamentos ou instituições sociais sem perder o sentido da continuidade pessoal e sem sacrificar em demasia seus impulsos espontâneos; isto é uma das raízes da criatividade” (p. 137). Acredito que Winnicott esteja dizendo que para ser criativo é preciso ser espontâneo. Na submissão a pessoa não pode ser criativa, pois tem de obedecer a preceitos que lhe foram impostos. A criatividade é o contrário da submissão e da revolta. A revolta contra a submissão interna é a luta para alcançar a criatividade. A criatividade necessita da espontaneidade. A submissão necessita da obediência. A submissão leva a um modo de ser neurótico e a espontaneidade a um modo de ser borderline. Citando: “Surge a questão: o que é normalidade? Bem, podemos dizer que, na saúde, o indivíduo foi capaz de organizar suas defesas contra os conflitos intoleráveis da realidade psíquica pessoal, mas em contraste com a pessoa doente de psiconeurose, a pessoa sadia é relativamente livre da repressão maciça e da inibição do instinto. Na saúde também, o indivíduo pode empregar todo tipo de defesas, e mudar de uma para outra, e, na realidade, não apresenta aquela rigidez de organização defensiva que caracteriza a pessoa enferma. Havendo dito tudo isto, quero sugerir que, clinicamente, o indivíduo realmente sadio está mais próximo da depressão e da loucura que da psiconeurose”. (Do livro “Explorações psicanalíticas”, artigo “Psiconeurose na Infância”, p.58). Concordando com esta citação posso dizer que o borderline, menos reprimido e inibido que o neurótico está em contato mais íntimo com seu inconsciente, fonte de suas intuições criativas. O neurótico mais defendido, mais inibido e menos espontâneo tem dificuldades de deixar fluir as intuições, necessitando de um grande trabalho intelectual para alcançá-las. Freud dizia que aquilo que ele conseguia com muito esforço através de um raciocínio e elaboração demorados, os poetas e escritores criativos conseguiam de chofre através da intuição. Essa situação tem a ver com a camisa de força em que o neurótico está metido e a relativa liberdade que é atributo do borderline brando. Como disse mestre Winnicott: a criatividade e a saúde estão mais próximas da loucura que da neurose.    
Obrigado.           
                                               6/11/13
                                                        
                                                         Nahman Armony
                                                                   
                                                               
DECLIVE

             E hoje
                   Quando fundo o passado
                   Vendo o vão que medeia o soluço e a espera
                   Me pergunto
                   Em que minha angústia
                   Alterou a implacável trajetória dos fatos?

                   E agora
                   Na brabeira do presente
                   Pergunto-me
                   Em que desvão da memória
                   Se perdeu a esfera e a solução?

                                                           Nahman Armony

DE GÓRGIAS A FEDRO: UMA REAVALIAÇÃO DA RETÓRICA

O que me animou a postar este texto sobre Platão/Sócrates, escrito no final do século passado foi sua incrível atualidade. Nestes tempos de corrupção e anticorrupção a relação entre dialética e antidialética avulta como uma possibilidade de não nos perdermos no labirinto das palavras.


A intolerância juvenil de Platão, expressa em Górgias numa crítica acerba e implacável à retórica, amacia-se com a experiência e maturidade e, em Fedro, transmuta-se numa qualificada aceitação da retórica, e mesmo, em sua incorporação à filosofia.

Mesmo em Górgias, onde gritantemente predomina o modo raciocinante de diálogo, aqui e ali surgem laivos de um procedimento que foge ao domínio da demonstração dialética. Mas, antes de prosseguir, sigamos as recomendações de Sócrates como elas aparecem em Górgias e em Fedro. O primeiro dos diálogos citados fala-nos da necessidade de definir as palavras para que não se percam no labirinto das várias significações e, em Fedro, alerta-nos da impropriedade de se iniciar um discurso sem antes definir seu objeto. Vejamos, pois, como Sócrates/Platão define retórica, advertindo, desde já, da existência de um deslizamento de significados na medida em que os diálogos se desenvolvem; um deslizamento que resulta num tangenciamento, e mesmo, numa interpenetração com outras palavras, que por sua vez, apresentam a mesma complexa malha de significados. Mas, como, para pensar, precisamos (pelo menos, nós ocidentais), de balizamentos firmes, sigamos o procedimento socrático/platônico do qual, somos herdeiros e inconscientes (hoje já nem tão inconscientes assim) depositários.

Tentando uma síntese intuitiva, não elaborada, imediata, eu diria que a retórica se define, em sua essência, como o discurso que busca persuadir, convencendo o opositor daquilo que interessa ao discursador, à revelia de sua veracidade, à diferença da filosofia, cuja conversação ou discurso dialético busca alcançar verdades universais, sem se deixar influenciar por interesses ou situações particulares. Mas esta definição é apenas um ponto de partida.

Em Górgias a retórica está recortada quase sempre em contraponto à dialética e à filosofia. Sócrates realiza um entrecruzamento entre dialética e retórica, saber e crença. A crença poderá ser falsa ou verdadeira, enquanto que o saber será sempre verdadeiro. A retórica não está interessada em alcançar a verdade como o está a dialética, mas sim, em vencer uma discussão, em produzir uma crença, em fazer prevalecer a opinião pessoal. A filosofia não tem opiniões pessoais. O que ela busca é uma verdade para todos, uma verdade impessoal, a verdade do próprio discurso dialético que por isto mesmo deve ser reconhecido por todos os homens, independentemente daquele que fala, portanto não pela força da autoridade, mas por se tratar de uma verdade universal, uma verdade ontológica, uma verdade imanente ao próprio discurso, à própria dialética. Diz Sócrates para Polo em 475de: "No temas responder, amigo mío; no sufrirás ningún daño. Ponte sin miedo en manos del discurso, cual si de un médico se tratara, y responde, sea afirmativa, sea negativamente, a lo que te pergunto".

Sócrates considera a retórica não uma arte, como o é a dialética, mas uma prática destinada a produzir agrado e prazer, uma prática de adulação e lisonja, uma prática cujo discurso deriva ao sabor da reação dos ouvintes e não uma arte que tem como modelo a verdade dos deuses.

Até o momento a retórica está sendo considerada, digamos assim, em si mesma, separada de outros aspectos da vida. Mas isto logo mudará. Sócrates relacionará a questão da retórica à da justiça como verdade e, mais adiante, à conduta. Temos então a retórica embrenhando-se pelos caminhos da ética e da moral e para lá nos conduzindo. No início do diálogo Górgias mantém a retórica separada da ética e da moral, mas premido por Sócrates, concorda que não é possível ao retórico desconhecer a justiça. Está introduzida a questão ética da qual Sócrates retirará conseqüências morais. A ética está por sua vez ligada às questões da verdade. Nos diálogos seguintes - com Polo e Cálicles- as relações entre retórica, filosofia, ética, moral emaranham-se e encadeiam-se cada vez mais, tornando-se progressivamente mais difícil desentranhar retórica e filosofia de ética e moral.

No diálogo com Polo, Sócrates qualifica a dialética de arte e a retórica de prática; prática destinada a produzir agrado e prazer, prática de adulação e lisonja, prática que visa ao mais agradável e não ao melhor; por isso mesmo, Sócrates a denomina de feia(463d, 464de/465). E para poder viver de acordo com o melhor, escusando-se de ser guiado pelo mais prazeroso é preciso que a alma domine o corpo. A questão da injustiça é também dialetizada com Polo. Melhor sofrer injustiça que praticá-la, prova Sócrates à sua maneira raciocinante/dialética. Estamos aqui em pleno campo da conduta moral. “... o maior dos males vem a ser praticar uma injustiça” (469d). A punição é um bem para aquele que agiu mal. "No meu entender, Polo, o criminoso e o iníquo são de todo e em todo infelizes; mais infeliz, porém, é o criminoso que não expia a falta e não é punido; menos infeliz, se expiar a falta e for punido pelos deuses e pelos homens” (472e).

Cálicles intervém para fazer a apologia do forte, aquele que estando de acordo com as leis da natureza - a lei do mais forte - não deve se dobrar à lei da cidade, feita por fracos para dobrar os fortes. "Ora, segundo penso, homens como aqueles procedem de acordo com a natureza do justo e, por Zeus!, embora contra esta por nós estabelecida; os melhores e mais robustos dentre nós, nós os apanhamos quando pequeninos, como leônculos, para amoldá-los; escravizamo-los com amavios e feitiços, inculcando-lhes que cumpre manter a igualdade, porque nela consiste a beleza e a justiça. Nasça, porém, um homem de índole assaz forte e ele, no meu entender, há de sacudir de si e romper todas essas injunções, safar-se delas, calcar aos pés nossos escritos, sortilégios, encantamentos e mais leis contrárias à natureza, pôr-se de pé e, de servo que era, assomar como nosso amo; brilhará, então, esplendoroso, o direito da natureza"(483e/484a). Já o discurso de Sócrates apresenta-nos uma outra ética: "...assim, pois, Cálicles, é de todo em todo forçoso que o sábio, por ser, como dizíamos, justo, bravo e piedoso, seja perfeitamente bom; que as ações do bom sejam boas e belas; seja feliz e ditoso quem procede bem, mas desditoso o mau, que pratica o mau; este seria o de comportamento oposto ao do sábio, isto é, o desenfreado, que decantavas. Esses os princípios que admito e cuja verdade sustento; sendo eles verdadeiros, quem de nós quer ser feliz, deve, naturalmente, buscar e exercitar a sabedoria, e fugir ao desenfreio quanto lhe consentem as pernas(...) Proceder de tal sorte que estejam presentes a justiça e a sabedoria para haver felicidade, eis, a meu ver, o alvo que se deve ter em mira na vida, sobre ele concentrando todas as energias pessoais e do Estado, em vez de deixar sem repressão e tentar satisfazer as paixões..."(507cde). Mas, como se ligam estas perorações éticas à retórica e à dialética? Poderíamos considerar uma coincidência ser Cálicles ao mesmo tempo um retórico e um defensor de uma moral instintivista e individualista? Ou, do lado de Sócrates, explicaria o acaso o convívio da dialética com uma moral repressiva e uma ética da verdade? Ou haveria alguma relação entre a forma de comunicação discursiva e a ética? Em "Notice" sobre Górgias, Alfred Croiset é bastante taxativo:" il s'agit, en fait, de choisir entre deux genres de vie, la vie suivant la rhétorique, la vie suivant la philosophie(500 a-d)"(Platon - Ouvres completes - Tome III - 2a partie, pag.106). Passemos a palavra a Sócrates: “... como vês, a uma pessoa por menos ajuizada que fosse, que matéria interessaria mais seriamente do que a de nosso debate, isto é, como devemos viver? Da maneira que propões, quando me induzes a proceder como homem, falando na assembléia, exercitando-me na oratória e atuando na política na forma que vós outros agis atualmente? Ou passando a vida na Filosofia? E em quê sobreleva esta maneira àquela? Portanto, talvez seja melhor distingui-las, como há pouco eu tentava fazer; uma vez concordes sobre a distinção feita, caso se trate de dois teores de vida diversos, verificar no que divergem e qual deles deveremos adotar"(Górgias500cd). Sócrates prossegue em seu raciocínio e podemos entender que para ele, sendo a retórica uma prática não-científica, o prazer por ela produzido tanto poderá ser bom quanto mau, mais provavelmente mau, pois falta-lhe, em sua base, uma ciência que distinga o bem do mal, condição necessária para o exercício da temperança. Só após uma longa dedicação à dialética e à filosofia poderá o cidadão exercer adequadamente qualquer profissão, especialmente a política, pois na política, mais que em qualquer outra profissão, se lida com o demos, o conjunto dos cidadãos a quem é preciso proporcionar uma vida reta, justa e feliz. Sócrates: “Dos atenienses, creio, sou um dos poucos, para não dizer o único, a cultivar a verdadeira arte política; a praticá-la hoje em dia, o único...” (521 d).

Em Górgias mantém-se até o final uma nítida separação entre retórica e dialética, apesar de tímidos lançamentos de cabos de abordagem se encontrarem aqui e ali. Por isto mesmo torna-se possível associar a cada uma destas duas formas de comunicação uma ética e uma moral. Já em Fedro, embora, de início, esta compartimentação se mantenha, logo retórica e dialética lançarão pseudópodes um em direção ao outro e acabarão por criar um novo organismo. Escaramuças, regateios, nuanças, retorceduras, negaças, meneios, farão parte destas aproximações ambivalentes, ambivalência que não desaparecerá totalmente mesmo quando já se puder falar de uma integração. Robin encontra uma forma elegante de expressar esta amálgama:...à cette rhétorique de fait Platon oppose ce qu'on pourrait appeler une rhétorique de droit, rhétorique philosophique qui n'est autre chose qu'une mise en oeuvre pratique de sa dialectique.(Notice sobre "Phèdre" in "Platon- Oeuvres Complètes" pag.XXXVIII). Mas, voltemos a um momento em que a divisão entre retórica e dialética é ainda nítida: "Fedro: ...ouvi dizer que para quem deseja tornar-se um orador consumado, não se torna necessário um conhecimento do que é realmente justo, mas do que parece justo aos olhos da maioria, que é quem decide em última instância. Tão-pouco precisa saber realmente o que é bom ou belo, bastando-lhe saber o que parece sê-lo, pois a persuasão se consegue não com a verdade, mas com o que aparenta ser verdade"(Fedro260a). Diante desta fala Sócrates retoma o método raciocinante-dialético levando Fedro a concordar que esta pura retórica, não comprometida com nenhum conhecimento produz "um fruto que não pode ser nada bom"(260d). Mas logo em seguida Sócrates realiza um resgate da retórica: "Todavia, não teremos, meu caro, exagerado os limites da dureza ao censurarmos assim a retórica? Pode ser que ela responda assim: ‘de que estais a tagarelar, homens de pouca monta? Não sabeis por acaso que eu não obrigo ninguém, que ignore a verdade, a aprender a falar, mas, posto que o meu conselho tenha algum merecimento, primeiro cumpre aprender a verdade e só depois se dedicar à minha prática? Eis, por conseguinte, o que declaro solenemente: nem por isso, o que estiver de posse da verdade a conseguirá impor sem recorrer à arte da persuasão'"(260d). Esta retórica com pretensões à legitimação não poderá ser, pois, uma retórica qualquer; não deverá ser uma prática, mas sim uma arte, uma psicagogia "uma arte de conduzir as almas através das palavras” (261a). Esta arte depende de um conhecimento do objeto, pois, só é possível clarificar ou iludir ao ouvinte quando bem se conhece o objeto. Caso contrário, o orador, ele próprio, ficará iludido, perdido nas semelhanças e dessemelhanças que não pode perceber com clareza, já que o objeto é, para ele, confuso e obscuro. "Por isso", diz Sócrates em 262a, "se pretendemos iludir alguém sem nos iludirmos a nós mesmos, cumpre-nos conhecer com exatidão e em pormenor as semelhanças e dessemelhanças do objeto". O conhecimento preciso do objeto do discurso torna-se tão mais necessário quanto mais se trata de "assuntos de natureza duvidosa" (263b) como, por exemplo, o amor. Para que se possa tentar este conhecimento preciso do objeto é necessário, desde logo defini-lo. É o que Lísias não faz em seu discurso, diferentemente de Sócrates que quase imediatamente define o amor. Mas ele o define parcialmente no seu primeiro discurso, razão pela qual podemos considerá-lo como amputado, incompleto. Esta imperfeição é corrigida no seu segundo discurso, onde os dois lados do amor são levados em consideração. O discurso, digamos assim torna-se mais artístico, pois, "todo o discurso deve ser formado como um ser vivo, ter o seu organismo próprio, de modo a que não lhes faltem, nem a cabeça, nem os pés, e de modo a que tanto os órgãos internos como os externos se encontrem ajustados uns aos outros, em harmonia com o todo"(264c). Tanto é preciso ver o organismo no seu todo quanto nas partes constituintes, compreendê-lo a partir da totalidade ou das partes. Aqui se coloca a possibilidade de duas maneiras de proceder: "A primeira consiste em abarcar de uma só vez, graças à visão de conjunto, as idéias disseminadas, a fim de que, pela definição de cada uma dessas idéias, as possamos resumir em uma só idéia geral do assunto que se tem em vista tratar"(...) A segunda, "consiste em proceder na inversa, isto é, em dividir novamente a idéia geral nas idéias particulares constituintes, observando-as nas suas articulações naturais, evitando, todavia, mutilar estas partes constituintes, tal como um mau cortador. Como vimos há pouco, os nossos dois discursos, apresentaram, primeiro, uma idéia geral da loucura. Logo a seguir, assim como a unidade do nosso corpo compreende, sob a mesma designação, os membros do lado esquerdo e os membros do lado direito, também os nossos discursos concluíram, dessa definição geral, duas noções distintas, a saber: uma à esquerda, que distinguiu o que estava errado e vilipendiou merecidamente o amor; outra que, situando-se do lado direito, tomou a via mais acertada, e se lançou à descoberta de um outro amor, igualmente divino, ao qual cumulou de elogios e apresentou como o maior dos bens"(265de/266ab). Para se poder falar de arte retórica é preciso que, no discurso, a definição do objeto se aprimore cada vez mais em um jogo dialético entre o todo e as partes. Neste momento, dialética e retórica se confundem. Mas haverá para além de uma retórica que é ao mesmo tempo uma dialética, uma outra retórica que, embora menos digna, ainda assim mereça ser chamada de arte? A resposta que encontramos nos arrazoados de Sócrates é negativa. Pelo contrário "todas as artes importantes devem basear-se na pesquisa e na meditação da Natureza, pois é daí que parece advir-lhes essa sublimidade de pensamento que nelas se encontra, ao lado da perfeição” (270a). Não se pode, porém, de maneira alguma esquecer a existência de um dom natural e da necessidade de exercícios oratórios. E mais: será necessário conhecer a natureza da alma, e a diferença existente entre as várias classes de alma para poder adequar o discurso à alma, pois aquilo que é persuasivo para uma alma, não o será para outra. "Sócrates: A análise que fizemos demonstrou entre o mais o seguinte: não é possível elaborar discursos naturais com arte, seja para ensinar, seja para persuadir, quando se ignora a verdade sobre os objetos nos quais incide o que se diz, ou se escreve, isto é, quando não se está em posição de definir e dividir os objetos em espécies e gêneros, quando não se estudou a natureza da alma e não se determinou os gêneros de discursos apropriados à persuasão de cada alma, e se, enfim, o discurso não tiver sido orientado de tal maneira que ofereça um teor complexo ou um teor simples, consoante a alma for, também, complexa ou simples!"(277bc).

Em 273e voltam a se reunir a retórica-dialética e a ética: "Sócrates: Quem não tenha classificado os caracteres dos seus futuros ouvintes; quem não for capaz de dividir as coisas existentes segundo os seus caracteres específicos, e de reunir objetos particulares numa só idéia geral; jamais chegará a ser um artista da oratória dentro das possibilidades humanas! Ora isso é um resultado que ninguém consegue alcançar sem grande esforço, e só um insensato empreenderá tal tarefa com o único fito de se exibir perante os demais homens, não com o propósito de agradar os deuses, pondo na sua escolha todas as suas energias, conforme os desejos dos deuses! Eis, Tísias, o que diz quem é mais sábio do que nós: o homem com poder de discernimento não procurará tornar-se agradável aos seus companheiros de escravidão, mas sim aos seus mestres de origem celeste". E mais adiante: "Sócrates: Assim é, meu caro Fedro! Todavia, acho muito mais bela a discussão destas coisas quando se semeiam palavras de acordo com a arte dialética, uma vez encontrada uma alma digna de receber as sementes! Quando se plantam discursos que se tornam auto-suficientes e que, em vez de se tornarem estéreis, produzem sementes e fecundam outras almas, perpetuando-se e dando ao que os possui o mais alto grau de felicidade que um homem pode atingir!"(276e/277a). As últimas palavras de Sócrates sobre retórica referem-se, na verdade, ao resto, ao dejeto que dela sobrou, depois de ter tido sua parte nobre incorporada à dialética e à filosofia. A esta incorporação Robin denominou de retórica filosófica e pudemos perceber que nela se reúnem retórica, persuasão, dialética, filosofia, ética, política, mito, estética.

Em Górgias encontramos um diálogo racional, dialético, seco, duro, preciso, e um mito cerebral, produzido para induzir, através de uma ameaça mitológica, uma conduta indicada pela Razão, um mito feito em estado de frieza, de não-exaltação. Em Fedro nos deparamos com três discursos, conversações dialéticas e mitos inspirados, mitos que pretendem atingir, por si mesmos, a verdade, inventados em estado de delírio; mitos que eventualmente não conduzam à verdade, mas que valem pela possibilidade de acesso a uma verdade que a racionalidade não atinge. De qualquer forma, a Razão deverá confirmar, nas suas articulações, a veracidade do mito. A persuasão está presente tanto em Górgias quanto em Fedro. O mito da recompensa/castigo após a morte é, sem dúvida, um mito persuasivo. O próprio raciocínio de Sócrates é persuasivo, e o é, não só pelo raciocínio como também pela posição que ocupa, o prestígio que tem e modo de apresentar suas idéias. É o que digo no resumo que fiz sobre "Górgias": "Mas, se Sócrates colocasse as proposições de seu sistema em bloco - ou mesmo separadamente - sem uma preparação, sem um cenário convincente, sem uma magia, uma admiração, um desconcerto, um espanto, uma pugna, uma inteligência, elas poderiam simplesmente não ser aceitas. O uso do método raciocinante desconcerta os adversários, deixa-os perplexos e vencidos e a partir destas artimanhas de raciocínio eles se vêem compelidos a dar legitimidade ao que Sócrates fala"(pag.4). Em Fedro a persuasão é mais explícita e mais bela. O mito, que em "Górgias" é ameaça, transforma-se em beleza no diálogo "Fedro". Um persuade pelo temor, outro pela exaltação estética produzida pelo texto. Terminando o texto quero deixar registrados dois pensamentos: dialética, retórica e filosofia acabam por formar uma amálgama inextricável; a uma certa forma de comunicação corresponde uma ética e uma filosofia.


Rio, 21 de janeiro de 1994

Nahman Armony

É POSSÍVEL CONSERVAR O DESEJO SEXUAL NUMA LONGA RELAÇÃO?


Passado o período de paixão segue-se, na melhor das hipóteses, o amor. O desejo tende a decrescer e os encontros amorosos-sexuais a rarear. O casal sente-se frustrado, amputado de uma parte essencial de sua vida.  A repressão, a vergonha, a disputa pelo poder (quem necessita de quem) tornam difícil a reaproximação e a retomada de uma vida mais plena e saudável. Diante desse quadro, o melhor é evitar que a situação chegue a este limite. Há vários caminhos para isto. O desejo sexual inicialmente movido pela paixão pode vir a, posteriormente, ser motivado pela ternura. Uma ternura que, se no início do relacionamento é um botão incipiente, poderá crescer através de uma história de companheirismo, cuidados, cumplicidade, compreensão mútua, capacidade de perdoar e de não guardar ressentimentos. Paradoxalmente, uma ternura ao mesmo tempo dessexualizada, mas também marcada por um potencial erótico que facilmente pode se realizar. Mas esse não é o único caminho. Ou é um caminho que pode ser complementado por uma espécie de jogo de sedução. E aqui também temos uma situação paradoxal. Winnicott fala da criança que se esconde, mas quer ser encontrada. Similarmente o parceiro sexual resiste, mas quer ter a resistência vencida. A resistência apimenta a relação elevando o grau de desejo. A certeza de que em algum momento a recusa ambígua chegará ao seu término permite uma tranqüilidade para prosseguir no jogo sem uma ansiedade disruptiva. Mas, de qualquer forma, a pimenta continua agindo, pois todos nós passamos, enquanto bebês, por vivências de rejeição precoce, marcando-nos indelevelmente com uma susceptibilidade -- maior ou menor -- à rejeição.  A aproximação sexual é uma das formas de exorcizar os profundos e inconscientes sentimentos de rejeição e é em grande parte por aí que o jogo de negaça exerce sua ação picante. Outra possibilidade é a manutenção de um clima erótico no dia-a-dia. Além das manifestações de carinho dessexualizado, aceitos e validados pela mentalidade social, o casal poderá, certamente vencendo resistências ancestrais, manter a sexualidade presente através de palavras, gestos, carícias fugazes; esse comportamento ajuda a manter o desejo sexual em fogo baixo sempre pronto a se tornar fogaréu, incêndio. Também conversas francas sobre as sensibilidades erógenas do casal ajudam para uma boa atividade sexual.  É também preciso levar em consideração que muitas pessoas em nossa cultura, professam um sentimento inconsciente ou consciente -- que advém da subjetividade social circulante -- de que a sexualidade é algo impuro, indigno, depravado; por isto mesmo, necessitam de entrar num estado de espírito abjeto, o que fazem através de palavras e atos tornados debochados (os atos que seriam impudicos e as palavras de baixo calão não são em si pornográficos) com o intuito de sair de um plano de pureza para um plano impuro, podendo então, dissociadamente, expressar livremente a sua  sexualidade. Esta é uma situação que pode, dependendo do casal perdurar sem criar maiores problemas para a relação. Mas, se ela se torna perturbadora será preciso fazer desaparecer esta dissociação, integrando a sexualidade à vida de tal maneira que ela possa ser sentida como imaculada, feita da mesma substância que o carinho, por exemplo. Carinho terno e carícia sexual teriam a mesma legitimidade e gozariam do mesmo status.
Essas são algumas das aproximações possíveis à questão inicialmente proposta que eu relembro, para finalizar o texto: como conservar o desejo sexual após anos de convivência.

                                                                          Nahman Armony

AMOR MAIS-QUE-IMPERFEITO


                                   Este amor incrível
                                   Que me cerca me cerceia
                                   Que me corta me chateia

                                   Este amor que assim encontro
                                   A cada passo a cada espirro,
                                   Me devora me distrai
                                   Me acaba me atrai

                                   Esse amor assim premente
                                   Com força de samurai
                                   Se consumido consome
                                   E consumado me abole
                                   Na abulia de uma paz

                                   Este espaço preenchido
                                   A cada metro a cada amigo
                                   A cada olhar a cada riso

                                   Este esbarrão que tanto dou
                                   No amor na adoração

                                   Me amola me aborrece
                                   Me atrai me torna um cão
                                   Adorando adorado
                                   Maltratando maltratado

                                   Me enquista me desperta
                                   Me esgota me descansa
                                   Me destrói e me refaz

                                   Enfim,
                                               Não sei se é bom
                                               Ou se é demais.


                                                                       Nahman Armny