A MASSA, A MULTIDÃO E A PSICANÁLISE

As manifestações de rua de junho de 2013 deram vida aos conceitos de massa e multidão de Antonio Negri.
O exame da transformação de massa em multidão pode dar subsídios ao conhecimento da subjetividade de nossa época e assim nos ajudar na nossa labuta.
A massa age em uníssono. Não há singularidade. Todos seguem o mesmo modelo que é o modelo do líder e de sua teoria.
A multidão é composta de singularidades. Cada pessoa da massa tem as suas reivindicações, seus pensamentos e sentimentos singulares.
Isto tem a ver com a mudança de paradigma. Passamos da verticalidade para a horizontalidade. Na verticalidade esperamos que um líder nos guie. Na horizontalidade cada um é seu próprio guia e se por acaso surge uma liderança apropriada, as questões individuais são discutidas a partir das dúvidas da pessoa e não a partir das ideias do líder.
Esta nova subjetividade deverá orientar o psicanalista na sua prática clínica. O antigo sujeito da verticalidade aceitava e colocava o analista em uma posição hierárquica superior, em um território sagrado do qual estava excluído. O analista era uma espécie de habitante do Olimpo e tudo se passava segundo os ditames analíticos. Era visível o constrangimento do analista e do analisando quando por acaso se encontravam fora do consultório, pois a Terra, a rua, a cidade nada tinham a ver com o estatuto do analista. O analisando esperava que a sua verdade fosse vista e dita pelo analista, esperava ser orientado como um discípulo. O analisando fazia parte dos anônimos que almejavam se individualizar através do carisma do analista líder. Uma relação de idealização. Hoje encontramos cada vez mais frequentemente o Homem Horizontal que percebe o analista como um ser humano semelhante a si. Este homem horizontal não aceita ser doutrinado; sua expectativa de relação igualitária faz com que ele espere que o analista coloque as cartas na mesa, isto é, que se apresente como o ser humano que é, sem usar uma máscara de superioridade. O acolhimento do analista não será nem paterno nem materno, mas sim fraterno. Isto significa expor-se, expor os seus sentimentos verdadeiros e não escondê-los. Ao lado da atividade propriamente interpretativa referida aos traumas da infância ( e também aos atuais) trabalha-se a relação de forças e fantasias intersubjetivas, procurando-se compreender a dinâmica da díade.   A interação intersubjetiva, quando se revelam e se trocam afetos e fantasias, passa a ser um elemento primordial da prática psicanalítica. Neste modo de operar a fluidez e espontaneidade da horizontalidade ocupam o posto antes petrificado pela verticalidade do conhecimento, transformando o errar em aprender.

                                                       Nahman Armony       

MORAL NEURÓTICA E ÉTICA BORDERLINE

Diferentemente do modo neurótico, o modo borderline brando de funcionar não atende a um sistema moral de valores fixos caucionados por um superego forte. Seu superego é flexível e tem como referência não códigos de conduta, mas princípios gerais tais como “não prejudicar os outros”, “compreender a subjetividade alheia”, “propiciar o desenvolvimento das pessoas”, “distribuir equitativamente venturas e desventuras” e por aí vai. Não há regras morais para regular a relação entre pessoas, mas objetivos éticos a serem alcançados levando-se em conta as singularidades das situações. 

NEUTRALIDADE EM PSICANÁLISE

                                                                                Nahman  Armony

            A neutralidade em psicanálise é filha da objetividade das ciências exatas do século XIX, neta do iluminismo, bisneta do cartesianismo, tetraneta do platonismo, tendo ainda vários parentes colaterais.
            Tanto a objetividade científica quanto a neutralidade psicanalítica pretendiam que o objeto falasse de si por si mesmo, sem nenhuma interferência do observador. Está aí implícita a dicotomia observador-observado, sujeito- objeto.
Assim, os fenômenos físicos, desde que examinados de um modo objetivo, isto é, sem a intervenção da subjetividade do pesquisador, revelariam as suas leis intrínsecas, leis absolutamente independentes do cientista observador que nada mais faria senão espelhar a natureza. 
            De modo similar, se o analista se mantivesse neutro e, portanto, objetivo, o inconsciente do analisando se revelaria na sua maior pureza e verdade. O analista tinha o dever de evitar que a sua subjetividade contaminasse as manifestações do inconsciente do analisando; e mais, a interpretação do dito pelo analisando ou visto pelo analista deveria estar expurgada de toda a subjetividade do analista. Desta forma ter-se-ia certeza de que as percepções e intervenções do analista se refeririam àquilo que pertenceria exclusivamente à vida psíquica do analisando.
            Esta atitude do analista advinha do paradigma cientificista pragmático racionalista reducionista que prevalecia no século dezenove como conseqüência do enorme sucesso das ciências físicas.
Podemos encontrar para esse paradigma científico uma genealogia que nos remete ao quarto século a.c., quando Platão/Sócrates, usando o método dialético, passou a distinguir episteme de doxa, redefinindo a palavra alethea que deixou de ser desvelamento para se tornar reminiscência da verdade. No diálogo “Gorgias”, o personagem Sócrates defende a idéia de que existe um discurso que, por falar de si mesmo, é verdadeiro, isto é, reporta o homem a uma verdade absoluta que, em diálogos subsequentes, habitará o mundo celeste das idéias.
Gorgias é um diálogo árido, intelectualizado, em que Sócrates alcança a ciência, a verdade, a episteme, através de raciocínios usados para demonstrações lógicas. Para isto ele define palavras, fixa significados e os manipula usando o princípio da exclusão, levando os contendores a concordar, não com ele, Sócrates, propriamente, mas com o que seria a verdade do próprio discurso lógico. Como ele mesmo diz em 509-b: “ [minhas afirmações] acham-se unidas e encadeadas – valha a expressão – por argumentos de ferro e aço, ou, pelo menos, assim parece. Se você, ou outro mais audaz do que você, não quebrar estas cadeias, não haverá possibilidade de falar com acerto de forma diferente da que estou fazendo agora, pois meu modo de falar é sempre o mesmo”. (Platón- Obras Completas – Editora Aguilar, Madrid, 1990, p.400). Justamente, a idéia da verdade do próprio discurso é genealogicamente antecedente da verdade do objeto que fala de si mesmo e da verdade do inconsciente não contaminado pelo analista.
A palavra ciência (episteme), usada por Platão, sofre modificações conotativas com o advento da física moderna, mas guarda o significado acima referido: o objeto fala de si mesmo sem interferência do observador. Segundo as fofocas histórico-científicas, foi Galileu quem, no século 17, introduziu a ciência moderna, a qual atingiu o seu apogeu na segunda metade do século 19, época da formação de Freud. Não havia na Idade Média uma preocupação maior com a objetividade, com o conhecimento exato. Um exemplo (retirado do livro “Quem tem medo da ciência?” de Isabelle Stengers): a noção de velocidade reportava-se a um tempo gasto para percorrer um espaço; a noção de intensidade tanto servia para falar da velocidade crescente de um corpo em queda, quanto de um cavalo que reduzia sua velocidade por cansaço, como ainda de uma vida que se tornava cada vez mais virtuosa. Intensidade era um conceito holístico que podia ser usado em vários campos da vida, desde a física até a moral. Importante assinalar o aspecto de mistério que a palavra “intensidade” possuía e que a colocava numa região ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, permitindo um uso amplo da palavra. Ao criar o conceito de “velocidade instantânea”, Galileu promoveu uma revolução; retirando a subjetividade das noções, tornou-as privativas da física, dando partida para o esvaziamento da polissemia semântica; também delimitou o campo da física separando-o dos outros campos da vida. Porém, para além da física, as palavras ainda conservavam o seu mistério. Na medida em que as ciências exatas obtiveram um estrondoso sucesso, passaram a paradigma de todos os outros campos do conhecimento que assim deveriam renunciar ao mistério, à subjetividade, à imprecisão (que posteriormente será introduzida na física por Heisenberg) e se conformar à objetividade dos termos das ciências exatas. Desta maneira, o mundo físico nada mais tem a ver com o destino do Homem; as leis terão de ser descobertas na natureza. A  natureza deverá falar de si independentemente do Homem.
Descartes, com a sua filosofia contribui decisivamente para a implantação da mentalidade cientificista pragmática racionalista. Dele interessa-nos aqui a dicotomia corpo-alma e as “idéias claras e distintas”. A dicotomia “rex cogitans – rex extensa” separa sujeito observador do objeto observado, dando mais vigor à objetividade científica. As idéias claras e distintas exigem que o objeto possa desvendar ele próprio toda a sua verdade;  a obscuridade é então uma anomalia a ser vencida. A subjetividade que importa é a de uma consciência cognescente. Como que fechando um ciclo Newton transforma as idéias filosóficas em uma física altamente eficiente, com um sistema de fundamentos sólido, fechado e inatacável, fazendo do Homem o Todo-Poderoso dominador presente e principalmente futuro da Natureza, o que cria uma perspectiva de felicidade terrena para todos os homens. 
A psicanálise freudiana, elaborada nas últimas décadas do século 19 e nas primeiras do século 20 está, como não poderia deixar de ser, impregnada desta ideologia, da qual ela se afastará com os autores pós-freudianos que vivem já uma outra época e uma outra episteme. A idéia freudiana de neutralidade acompanha a clássica metáfora científica do conhecimento preciso do observado, que, assim, de certa forma, deixa de ser sujeito para tornar-se objeto. Bem dentro do espírito da época temos aqui a dicotomia sujeito-objeto, a pretensão iluminista do conhecimento absoluto, o conceito de neutralidade que nada mais é que um avatar do conceito de objetividade. O inconsciente de cada analisando falaria de si mesmo, independentemente do analista que apenas espelharia a fala do inconsciente de seu analisando. Observador e observado são duas entidades separadas que têm entre si uma relação de espelho, de reflexo.
Esta epistemologia sofre modificações radicais com a entrada em cena do universo das micro-partículas. O estudo físico deste universo sub-atômico atropela as leis da causalidade, a dicotomia sujeito-objeto, a pureza dos achados. Surge o paradoxo partícula/onda em relação à luz e Heisenberg propõe que os cientistas se atenham aos resultados. Porém mesmo esses ficam sujeitos ao famoso “princípio da incerteza”; nem mesmo os resultados das medidas podiam assegurar uma certeza total. A medição depende da interferência do experimentador que ao iluminar o elétron para poder “vê-lo” afeta sua velocidade ou sua posição. Bhor já havia advertido que “qualquer observação a respeito do comportamento do elétron no átomo será acompanhada por uma mudança no estado do átomo” (“Bhor e a teoria quântica”, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999, p.74). A questão é que para se poder “visualizar” o elétron dentro do átomo, é preciso bombardeá-lo com alguma partícula. A interferência é inevitável. O princípio da complementaridade de Bhor diz que o resultado de uma experiência física depende do tipo de instrumento escolhido para aferir seu comportamento (Idem, p.75). A dicotomia observador-observado se relativiza; o observador manipula o observado. A interpretação dos resultados torna-se mais problemática, facilitando a entrada em cena das expectativas do experimentador. Surgem novos paradigmas nas ciências físicas que por sua força de modelo influem decisivamente nas modificações que já vinham se operando nos vários campos do conhecimento humano, inclusive na psicanálise. 
Importa, porém, não confundir ciências humanas com ciências físicas, e mais ainda, destacar das ciências humanas, a psicanálise. Ela também sofreu transformações paradigmáticas que têm a mesma direção de transformação da física e das outras disciplinas. Mas, evidentemente, a psicanálise tem sua especificidade.
Vejamos então o percurso realizado pela palavra neutralidade na psicanálise.
É difícil de acreditar que Freud não tenha usado, jamais, a palavra Neutralitaet (neutralidade) em psicanálise. É verdade que no artigo “Observações sobre o Amor Transferencial” da Edição Standard Brasileira lê-se: “Em minha opinião, portanto, não devemos abandonar a neutralidade para com a paciente, que  adquirimos por manter controlada a contratransferência”. Na verdade, no original alemão, Freud não escreveu Neutralitaet, mas sim, Indifferenz que Strachey traduziu para neutrality, da qual resultou neutralidade na Edição Standard Brasileira. No entanto, a neutralidade tornou-se um dos pilares da conduta psicanalítica. E embora Freud não tivesse escrito a palavra neutralidade, nem dado importância conceitual à palavra objetividade, elas estão implícitas nas suas formulações ao longo de sua obra. No artigo “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, por exemplo, Freud nos fala que o analista necessita ter a frieza de um cirurgião e que “deve ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o que lhe é mostrado”(Vol.12, p157). Sem dúvida, aí se encontra, escondida, a metáfora, o paradigma da neutralidade e da objetividade. Mas não deixa de ser significativo o fato de Freud não ter usado diretamente esses dois conceitos.
Presumo que Freud tenha achado que mais facilmente a neutralidade vigoraria se o analisando não o enxergasse, uma vez que suas reações corporais poderiam dar uma indicação de seus sentimentos e pensamentos, influindo sobre o analisando. Num primeiro momento da história da psicanálise o que estava em pauta era recuperar as memórias perdidas para reintegrá-las na corrente da consciência. Logo porém apareceram as resistências e o fenômeno da transferência. A transferência era conceituada como repetição de padrões de comportamento e afetividade com figuras do passado, agora dirigidos para o analista; este nada mais era que uma tela de projeção das figuras e situações pretéritas, o que fazia dele um espelho capaz de devolver aquilo que pertencia ao mundo psíquico do analisando. Neste esquema, a neutralidade/objetividade do analista se mantinha.
O próximo passo foi reconhecer que a transferência podia apoiar-se em uma característica ou em um comportamento do analista. Mesmo a atitude neutra e reservada do analista poderia servir de apoio à transferência. E mais do que transferência, a atitude de silêncio e distanciamento podia ser vista como um comportamento pessoal ou profissional tantalizante. Na medida em que a metáfora do Especialista Infalível e Inquestionável passou a ser contestada em todas as esferas da atividade humana, o tantalizante transformou-se em inadequado e impróprio para muitos analisandos.   
Havia também a questão da contratransferência que, segundo Freud, deveria ser suprimida para que a subjetividade do analista não influísse no analisando. Acontece, diziam outros analistas, que é impossível ao analista não reagir de alguma maneira à transferência do analisando. Assim, a contratransferência, de alguma maneira, chegava ao analisando, estabelecendo-se uma relação inter-subjetiva. O analisando reagia às contra-transferências (ou mesmo às transferências) do analista e este respondia, de alguma maneira às transferências do analisando. Parte da comunidade analítica, assumindo a impossibilidade de evitar o mútuo incitamento transferencial-contratransferencial, transformou a contratransferência em ferramenta terapêutica. A contratransferência passou a ser primeiro um instrumento de compreensão, e depois, um instrumento de intervenção do analista no campo intersubjetivo. A interação inter-fantasmática (transferencial-contratransferencial), ao ser aceita como inevitável, foi estudada, compreendida e teorizada passando a ser um fator de progresso da terapia analítica. O analista deveria ser um observador-participante do jogo fantasmático que se estabelecia entre analista e analisando para estar em condições de direcionar suas intervenções no sentido da transformação do analisando. Eram as necessidades do analisando que deveriam ser atendidas. Seria então preciso que o analista se apercebesse de sua própria dinâmica dentro da relação analítica, a fim de evitar que seu narcisismo, seus conflitos, suas dificuldades, fizessem com que ele se aproveitasse do analisando para as suas próprias necessidades psicológicas espúrias. A neutralidade aqui aparece intimamente associada a três fatores: a capacidade de auto-percepção do analista, à sua capacidade de identificação e empatia, e à sua ética.
Em algum momento passou-se a valorizar não apenas a relação inter-fantasmática (inter-subjetiva) mas a relação real (inter-pessoal). A pessoa do analista em sua realidade psíquica e comportamental tornou-se mais uma influência terapêutica inevitável, pois ninguém pode deixar de ser quem é. Passou-se a valorizar a espontaneidade, que, no entanto, deveria ser exercida com tato, com cuidado, com “concern”. 
Em nossa disciplina, certamente mais ainda que na física e na psicologia, a neutralidade entendida como deixar o objeto de observação falar por si de si mesmo, sem interferência do observador, é uma situação impossível. A própria tentativa de não-interferência do analista é, na verdade, uma interferência, pois é um comportamento que produz efeitos na subjetividade do analisando. Além disso, é-lhe impossível evitar reações expressivas diante da conduta verbal e não-verbal do analisando, reações essas captadas pela sensibilidade do analisando. O fenômeno da contratransferência nunca é uma pura reação à transferência, mas sempre toca em elementos do inconsciente do analista. E, se para conhecer o mundo subterrâneo da matéria é preciso não apenas observá-lo, mas também com ele interagir, como poderia ser diferente em um campo tão mais complexo, tão mais misterioso, tão mais escorregadio que são as relações humanas?
Teríamos então de abandonar o conceito de neutralidade em psicanálise?
É uma das possibilidades. A outra é reformulá-la.
 Segundo Loewald, a objetividade do analista difere da objetividade do cientista. Para esse autor, enquanto que no modelo científico a intenção é conhecer o objeto, no modelo psicanalítico a intenção é conhecê-lo para modificá-lo. A intensa interação entre analista e analisando diferencia a situação analítica da experiência científica. Essa interação borra a diferença entre observador e observado, entre sujeito e objeto. Diz Loewald: “Embora a relação analista-paciente não possua a estrutura cientista-objeto científico, a qual não se caracteriza pela neutralidade no sentido psicanalítico, o analista pode se tornar um observador científico na medida em que ele é capaz de observar objetivamente a interação entre ele próprio e o analisando”(“On the Therapeutic Action of Psycho-Analysis”, International Journal of Psychoanalysis, 1960, 41, p.18).
Loewald reformula o conceito de objetividade, adaptando-o à psicanálise. Poderíamos sugerir uma outra reformulação: a neutralidade, que já não mais seria o analisando se revelar em sua pureza solipsista, poderia ficar referida a uma concepção de direção do tratamento. Toda a ação terapêutica que direta ou indiretamente encaminhasse e respeitasse essa direção, poderia ter o rótulo de neutra, pois estaria referida a algo fora da subjetividade do terapeuta. Poderia ser, por exemplo, a produção de significantes, ou, atingir uma situação depressiva, ou, ensinar o analisando a brincar. Pessoalmente prefiro ter como insinuância a idéia mais ampla e menos precisa de um “objetivo terapêutico psicanalítico”, o que significa que se pretende proporcionar ao analisando o melhor equilíbrio possível dentro do mundo complexo e vertiginoso em que vivemos, com o mínimo possível de sofrimento. Ao ter em vista esse objetivo, é o bem-estar do analisando que está em foco. A conduta do analista deverá visar esse bem-estar e não o seu próprio. Para que isso seja possível é preciso que o analista tenha a capacidade de se identificar e de empatizar com o analisando, que seja capaz de perceber os seus próprios dinamismos psíquicos em referência a si e à relação com o analisando. Ser-lhe-á então possível evitar a utilização das dificuldades do analisando em seu próprio benefício, desde que sua ética faça-o colocar em primeiríssimo plano o desenvolvimento do analisando em direção ao melhor equilíbrio possível dentro do menor sofrimento possível.
Voltemos a pensar no “objetivo terapêutico psicanalítico” O quê significa terapêutico e principalmente, o quê significa psicanalítico? E o quê significa minorar os sofrimentos? Entraria aqui ainda a questão ética da qual eu me aproximaria da seguinte maneira: o analista está ali, naquele lugar, para atender os objetivos daquele que o procura para o tratamento, quaisquer que eles sejam? Se a resposta for afirmativa então os objetivos da terapia deverão se modificar na medida da transformação dos objetivos do analisando. Acredito que na relação com um analista, este objetivo vai-se transformando em um objetivo psicanalítico, desde que a psicanálise não só não cause um excessivo sofrimento, mas acene com uma forma melhor de viver. Objetivo propriamente psicanalítico refere-se, em um primeiro momento, à compreensão da alma do analisando. E qual o instrumento de compreensão? O mais poderoso instrumento de compreensão do analisando é a capacidade de identificação do analista. Ela permite um conhecimento do íntimo do analisando, diferindo da observação externa que apenas rodeia o analisando sem nele penetrar. Esta identificação poderá ser homóloga ou complementar. Sentir como o analisando sente, ou perceber o papel complementar em que o analisando o coloca. Tanto em um caso como em outro o analista terá a sua subjetividade posta em jogo. E muitas vezes deverá empatizar com o analisando e jogar com ele o jogo identificatório  homólogo e complementar. Como evitar que o analista se deixe levar por seus preconceitos ou por suas necessidades ao se permitir ser mobilizado afetiva e fantasmaticamente pelo analisando? A única resposta possível é que ele deverá se cuidar para que tal não aconteça. O analista poderá se ajudar se deixar-se atravessar por três insinuâncias: 1a - o objetivo terapêutico da relação, 2a – percepção de seus próprios conflitos e carências 3a - a compreensão do funcionamento do psiquismo do analisando através das identificações complementar e homóloga, o que significa que o que deverá ser compreendido é a relação inter-subjetiva da díade.
Vou insistir: a inter-subjetividade traz o risco de o analista enxergar de forma pré-conceituosa aquilo que o analisando está trazendo para a relação e - o que torna ainda mais difícil o exercício da psicanálise - traz a possibilidade de o analista tentar satisfazer as suas necessidades pulsionais e narcísicas primitivas na relação. É preciso pois que o analista esteja permanentemente atento às suas próprias necessidades e desejos para, em reconhecendo-as, impedir que interfiram no objetivo terapêutico/psicanalítico da relação.
Se a objetividade surgiu, na cultura ocidental, como um meio de atingir um objetivo proposto, e se neutralidade na psicanálise for entendida como aquelas insinuâncias que selecionam os procedimentos mais efetivos para a consecução de um objetivo ético, então poderemos manter este termo mesmo se tivermos de usar a nossa subjetividade para compreender e mobilizar a subjetividade do analisando, mesmo que a subjetividade do analisando mobilize a subjetividade do analista.
Teríamos aí um paradoxo: uma subjetividade/objetiva. Este paradoxo nos encaminha para o espaço intermediário de Winnicot com seus objetos transicionais. Esta é uma das possibilidades de pensamento teórico de uma nova neutralidade.

BRIGA-SE POR BOBAGENS PARA EVITAR O RISCO DE ROMPIMENTO

       O ser humano é ambivalente, ou mesmo plurivalente, o que significa que ele deseja e sente ao mesmo tempo vários impulsos e sentimentos muitas vezes contraditórios. É uma situação pouco confortável. Geralmente preferimos ter a sensação de sabermos o que queremos para podermos nos direcionar com força e determinação naquela direção. Desejar duas ou mais coisas contraditórias ao mesmo tempo mina a segurança colocando a pessoa em estado de dúvida, de incerteza que a impede de se comportar com firmeza, tornando-a hesitante e passando uma impressão de fraqueza. Por isso os casais se empenham em discussões sobre aspectos insignificantes do dia-a-dia encarniçando-se nas suas certezas. É uma maneira de afastarem a instabilidade da dúvida tornando-as firmes e seguras em bagatelas que não merecem tamanha importância e convicção. Acontece, porém que enquanto estas insignificâncias ocuparem o primeiro plano se escamoteará a principal fonte de conflito mantendo a relação num clima de intolerância em que freqüentemente o mal-estar e a raiva se fazem presentes. Mas, e aí está o truque, a relação se mantém, pois o ponto de conflito que a poderia destruir fica sepultado debaixo das trivialidades. Além do que a certeza de estar com a razão torna a pessoa forte. 

       Darei um exemplo: digamos que duas pessoas de nacionalidades diferentes tenham se conhecido e tenham sido fisgadas por Cupido. Falo aqui de um amor visceral à primeira vista. Digamos ainda que o modo de ser de um se afine com o do outro o que permitiria que as diferenças fossem colocadas, discutidas e conciliadas. Há aqui uma auspiciosa promessa de crescimento da relação, algo raro e precioso que deveria ser conservada a qualquer preço. Mas há uma questão fundamental: cada um dos componentes do casal não abre mão de viver em seu país o que significa tirar o outro do país de origem. Há um primeiro confronto nesta área e o casal percebe que lá existe um impasse que poderá destruir a relação. Nenhum deles deseja esse desfecho. A questão fundamental é deixada de lado e eles tentam viver o seu amor sem interferências. Acontece que a questão fundamental não desapareceu. Ela foi apenas enterrada e continua a exercer seus efeitos sobre o casal. Mas a esperteza dos dinamismos psicológicos humanos desviam a discussão daquela questão fundamental para outros aspectos da relação que não são tão vitais e que portanto podem ser suportados. Discute-se, por exemplo, como usar o tubo de pasta de dentes como se isso fosse uma questão vital. Ou então se discutem questões de clima, trabalho, mentalidade. Nenhum deles, porém, é excludente, definitivo. O definitivo é o desejo de permanecer junto aos amigos, parentes, à cultura, às paisagens e paragens conhecidas. As anteriores não ameaçam a continuidade da relação; o amor à terra natal pode levar a um rompimento. Certamente estou dando a impressão de que as discussões vicariantes não deveriam existir e que se deveria logo ir ao ponto decisivo. Não é bem o que eu penso. Enquanto as discussões de menor importância acontecem conversações inconscientes se realizam entre o casal provocando movimentos de almas que os preparam para uma atitude menos drástica em relação ao problema fundamental. Não se pode saber a priori para onde esta conversa inconsciente e estes movimentos afetivos levarão. Mas finalmente o casal poderá chegar a um acordo. Ou não. Mas pelo menos eles terão o consolo de ter batalhado pela continuação da relação amorosa.