AMOR NA PASSAGEM DO MILÊNIO

                                                                                                          Nahman Armony


             Almodovar e Bertolucci são cineastas visionários. O que não significa que devamos nos descartar de suas alucinações fílmicas. Pelo contrário, respeitando as proporções, podemos colocá-los na série de fantásticos visionários como Nietzsche, Van Gogh, Marx, Freud e outros. Fica a lição de que a função das visões antecipatórias não é cumprirem-se integralmente, mas sim indicar uma direção de pensamento/realização, influindo na própria afeiçoamento desta direção, apresentando pois um valor de idealidade inalcançácel e um valor pragmático de combate.

            O filme de Almodovar explicita a sua questão no próprio título: “A lei do desejo”. Embora de um modo diferente, esta é também a questão de Bertolucci. Ambos cinematografam os seus próprios desejos de ultrapassamento das barreiras impedientes da renovação dos avatares do desejo. No mundo ficcional fílmico, estas barreiras, embora presentes, são transpostas, para alegria da imaginação daqueles que comungam do desejo de um mundo aberto a todas as realizações ecologicamente singulares.

            As sensíveis antenas destes artistas captam as múltiplas direções dos ventos de transformações. Mesmo que estranhemos tais direções, trata-se de uma estranheza que entranha um familiar, pois, estas mesmas antenas existem em todos nós mais ou menos ocultas, recolhidas, desativadas seja por desatenção, medo, insuficiente élan, ou o que mais. Muito ganharíamos com a ativação e reativação destes radares. E esta, creio eu, é uma das funções da obra de arte. Veremos, pois o que estes dois realizadores de cinema podem despertar em nós.

            “A lei do desejo” de Pedro Almodovar contracena com a família tradicional, composta de marido, esposa e filhos; “Beleza roubada” de Bertolucci tem por interlocução a setorização impermeável e dura das várias manifestações do afeto: sexualidade, amorosidade, afeição, paixão, sedução, encantamento, jogo amoroso. Esta setorização impede o deslizamento fluido, a mistura líquida, o entrelaçamento, o entremeiamento destes aspectos afetivos, situação da qual Lucy escapa inserindo-se no devir.

            Na “Lei do desejo”, realizado em 1986, o personagem central é Pablo, diretor de cinema e homossexual. Tem um amante, Juan, e está sendo assediado por Antônio que acaba por se tornar seu amante. Seus sentimentos por ambos e por cada um deles, são deslizantes, obedecem à lei do desejo, à mutável cartografia dos afetos. Mudam e se transformam como muda o tempo. Sua paixão escorrega de um para outro. Estas manifestações amorosas-sexuais de sua afetividade, marcadas por uma variação contínua, nós a podemos colocá-la, apesar de sua importância, na periferia de sua vida, quando consideramos um outro aspecto de seu viver: refiro-me aos afetos não-sexualizados de suas relações familiares. Aqui está a maior originalidade do filme. Pedro Almodovar constrói uma família absolutamente insólita, composta por um homossexual, por sua irmã trans-sexual (originalmente um irmão) e por uma menina de 11 anos. Apesar de sua estranha constituição, é uma família amorosa ligada por fortes laços de afeto, companheirismo, compreensão e apoio mútuo. A menina, tempos  atrás, tinha sido deixada pela mãe com este peculiar casal. Há uma cena em que a mãe verdadeira vem buscar a filha, e esta prefere, apesar da insistência autoritária da mãe, continuar com sua família postiça que, pelas qualidades já expostas, tornou-se sua família desejada, sua verdadeira família. O exagero na construção dos personagens, onde se inclui uma relação incestuosa prévia do irmão trans-sexual com o pai, é exemplar da liberdade imperativa pós-moderna do desejo, e dos possíveis direcionamentos a serem dados à lei do desejo. A chance de alcançar um equilíbrio, capaz de tornar a vida mais leve, torna-se maior quanto temos à nossa disposição várias formas de organizar a vida e os afetos. É interessante observar os caminhos de realização e equilibração de afetos encontrados por Pablo: parte de sua amorosidade, a não sexualizada, está colocada na família, onde o pêndulo tende mais para a estabilidade, e parte colocada na sua relação com os amantes, onde o pêndulo inclina-se para o deslizamento. Pablo realizou uma dissociação entre o afeto tranquilo, seguro, estável, previsível,  colocando-o na extraordinária família que se constituiu, e a paixão tórrida, instável e aventureira, ligada ao inesperado, à surpresa, colocada nos seus amores homossexuais, que embora indispensáveis se apresentam mais periféricos que centrais. Este o modo singular de Pablo de distribuir seus afetos, de tentar realizar a façanha de ser e estar-no-mundo em equilíbrio possível. A amorosidade que numa  sociedade tradicional tem por ideal sua concentração no casal e na família, um ideal dificilmente realizável, apresenta-se em Pablo  dicotomizado entre uma família esquisita, e dois (que poderiam ser mais) homossexuais. Este foi o seu modo de distribuir seu desejo, seu afeto, sua amorosidade, preservando ao mesmo tempo um equilíbrio e uma possibilidade de realização no seu meio social. Teríamos aí razoavelmente respeitadas as singularidades e as possibilidades de convivência  social.

            O enamoramento, periférico no filme de Almodovar, torna-se não propriamente central, mas difuso, penetrante, insinuante, em “Beleza roubada” de Bertolucci.
Nesta película, realizada em 1996, Lucy, uma jovem americana de 19 anos, virgem, volta, após 4 anos, a uma região campestre da Itália à procura de um amor de namorado e de um amor de pai, pois lá ela tinha sido tocada em seu coração por um mancebo e lá tinha sido concebida 19 anos atrás. Lá ela se depara com muitos homens e mulheres e se coloca aberta ao desenvolvimento de toda e qualquer relação afetiva, tendo como limite apenas o seu desejo, as suas singularidades. Com isso, em suas diversas relações, surgem variados afetos: carinhosos, sensuais, ternos, lúdicos, sexuais, etc., apresentando cada relação uma mistura particular desses vários componentes e de outros indizíveis. Finalmente ela encontra o seu pai e também aquele que será o seu primeiro amor, o jovem que a inicia e se inicia na sexualidade terna e amorosa, um homem que se sente ligado a ela por laços que ultrapassam o acontecimento sexual. Em sua maior profundidade, lá onde as diversas correntes subterrâneas se confundem, estes dois acontecimentos - encontro com o pai e encontro  com o amor pleno - se entrelaçam, não podendo existir um sem o outro. É preciso que o pai reconheça na filha uma feminilidade, que doe esta feminilidade ao mundo, para que ela possa exercê-la. Torna-se necessária assim uma ambigüidade, onde a sexualidade latentemente lateja, fazendo-se presente  sem se explicitar. Lembremo-nos, a propósito de duas cenas: na primeira, Lucy, na expectativa de sua primeira relação sexual, passa pelo quarto de um doente terminal, um homem que assumira, ao conhecê-la, um papel sedutor e iniciador; não uma sedução e iniciação dela para si - embora isso não estivesse fora de questão - mas de iniciação dela para a vida. Ele assume o papel de mestre do amor e da vida. É como se, de alguma maneira, ele dissesse que gostaria de ser aquele a lhe abrir os portais do mundo, do amor, da sexualidade, mas, em não podendo ele próprio, a ajudaria a encontrar este caminho de expansão. Por isto, Lucy o visita no momento que deveria anteceder a sua primeira relação sexual que, finalmente, não se realiza. Mas, agora, ela já traz dentro de si, o olhar permissivo desse homem que não é seu pai, mas que, sem dúvida, está exercendo a função paterna de reconhecimento de sua sexualidade, e de doação dessa sexualidade à vida.

            Em outra cena do filme, aquele que será posteriormente reconhecido como pai, está exercendo as funções de pintor, tendo como modelo aquela que será, futuramente, reconhecida como filha. Dentro desta atmosfera artística o pai aproxima-se da filha, olha-a intensamente quase encostando o seu rosto e os seus lábios nos dela. A jovem sustenta o olhar sem escape, devolvendo-o na mesma medida, numa tensa e vibrante expectativa do que virá a seguir. Uma corrente intensiva, carregada de afetos, circula entre pai e filha, fazendo crescer a energia erótica que, finalmente, tem seu descenso no desnudamento de um  dos seios da filha.
O pai afasta-se para pintar o quadro que agora, certamente, estará pleno da sensualidade e sexualidade explosiva da jovem. Esta cena é emblemática da disposição de Lucy em viver intensivamente todas as experiências possíveis de afeto, sem pré-determinações do que pode e do que não pode ser feito. Ela encontra-se aberta para toda espécie de afeto, dá-se a liberdade de experimentar, até o limite de seu desejo, tudo o que possa surgir em matéria de amor, sensualidade, sexualidade, carinho, ternura, etc. Abertura que poderíamos ver como um acontecimento do milênio que está ali em uma das prováveis esquinas,  à nossa espera.

            Podemos confrontar esta atitude com aquela prevalecente em uma subjetividade que a precede e que, ao mesmo tempo, lhe é contemporânea, uma subjetividade clássica/moderna e que no filme está representada por Niccolo, a quem Lucy havia beijado quando de sua primeira estadia no sítio aos 15 anos, e com quem sonhara nos quatro anos seguintes, antes de desiludir-se, por Richard, por Miranda, e pela cena de prostitutas na estrada vistas ao longe pela câmera. A atitude do homem no clássico e moderno dá-se em uma linha curta percorrida pela “cantada” ou, alternativamente, pelo “respeito”, e que tem em uma de suas extremidades a “trepada” e, na outra, a dessexualização da mulher. Ou a mulher não tinha sexo ou então tratava-se de uma mulher para ser “comida”. Na contemporaneidade observa-se uma outra série, justamente a série percorrida por Lucy. O homem se posiciona na linha do afeto, uma linha longa que comporta amizade, compreensão, companheirismo e também sexo. Tentarei me explicar melhor. Nas relações atuais é possível um homem ter afeto por uma mulher e manifestá-lo sem que esteja implicada a idéia de uma futura relação sexual. Melhorando: é possível, hoje em dia, ter um comportamento afetivo com uma mulher sem que este comportamento afetivo seja encarado como uma “cantada”. Tal comportamento afetivo está aberto dos dois lados, tanto para o lado da amizade quanto para o lado do amor sexualizado. Não há uma proibição nem de uma coisa nem de outra e, eventualmente, a relação pode sofrer variações. Trata-se de uma outra série, diferente da anterior. Na anterior só havia duas possibilidades: “respeito” que implicava em uma dessexualização absoluta (mulher de amigo é homem) ou “cantada”. Era uma linha curta limitada por dois extremos absolutos que, por assim dizer, davam fim abrupto, nas duas extremidades, à série. Na série da pós-modernidade temos uma linha de afeto longa, suportando gradações sutis, múltiplas e reversíveis, o que justamente a encomprida. Uma série a ser percorrida em todas as direções e que acumula, de diferentes maneiras, os pontos percorridos em uma espessura de relação. Já não se trata de cantada ou respeito, mas de relação humana entre dois seres abertos à vida e aos afetos. Teremos então uma série que passará pelo carinho, atenção, papo, amizade, amor, sensualidade, sexualidade, entendimento, compreensão, aliança, cumplicidade, compartilhamento. Uma série, que, à diferença da outra, comporta ambigüidades. Por esta razão, um casal amoroso que conserve mais ou menos intactos o modo infantil exclusivista de relacionamento - em outras palavras, um casal que, por ter colocado na sua relação um narcisismo excessivo tenha um ciúme exacerbado, terá dificuldade em admitir o trânsito do parceiro por essa série ambígua. Ambígua porque ela comporta toda a espécie de afeto, estando alguns explícitos e outros apenas insinuados, diluídos ou velados. Os seres humanos do futuro terão de lidar com estes sentimentos surgidos a partir dessa nova maneira de se colocar na linha do afeto. Não estou me referindo a uma liberdade sexual que levaria todos a transar com todos, mas a uma liberdade amorosa que admite a possibilidade de qualquer acontecimento afetivo, inclusive sexual, mesmo que ele nunca ocorra. Estou aqui opondo uma “moda” - a transa de todos com todos como modelo -, ao desejo de se relacionar afetivamente com alguém, onde a relação sexual não é obrigatória e poderá ou não acontecer. O componente sexual que existe nas mistura de afetos que é Lucy nos é mostrada quando, no início do filme a câmera surpreende sua mão repousando próxima ao seu sexo, e mais tarde, quando Lucy se debate voluptuosamente na solidão noturna de seu quarto e ainda, na sua busca vigil desejante ao mesmo tempo cega e lúcida de algo que ela sabe e não sabe o que é, de algo que tem a ver com o pai e com o namorado, mas que ultrapassa a ambos.

            A fragmentação inicial das imagens realizada por cortes rápidos da câmera, dá um significado especial à sensualidade que, desde sua abertura, percorre todo o filme, Esta fragmentação aparece no percurso que ela realiza dos Estados Unidos, seu país de origem, ao sítio bucólico no interior da Itália. Rápidas imagens logo substituídas por outros, nos remetem a um estilhaçemento do tempo, lançando-nos na pontualidade do devir. E é justamente este deixar-se levar pelo devir que possibilita uma integralidade de sentimento/pensamento/ação. O decidido mergulho no devir, o seu deixar-se levar pelas ondas fortuitas ou quase fortuitas dos acontecimentos internos e externos em interação, a abertura de Lucy permitiu-lhe uma autenticidade que dificilmente existiria se ela se propusesse calculadamente a alguma coisa. Havia um sentido no seu comportamento: encontrar. Este sentido estava preenchido pelo encontrar o pai e encontrar o seu primeiro amor, mas não se constituia em um plano, em um cálculo,  não perturbando pois a fluidez do devir. Creio  que o diretor expressa bem o paradoxo devir/sentido/não-cálculo quando coloca um fotógrafo desconhecido - que mais tarde aparecerá o sítio revelando-se um amigo da mãe de Lucy - fragmentando fotograficamente momentos vividos por Lucy na viagem e oferecendo-os a ela sem nada pedir em troca. Temos aí representada a possibilidade de uma acumulação de momentos pontuais do devir reunindo-os em uma série que lhes dá sentido, impedindo que eles desapareçam no vazio. Não há uma raiz prendendo-a a coisa nenhuma, mas também sua experiência não se perde em uma dispersão sem sentido. Ao contrário, sua procura rizomática confere um sentido ao seu devir, tornando-o um devir de eterno retorno, onde cada momento é significativo por estar gravado para sempre. É desta maneira que podemos interpretar a fixação fotográfica de pontualidades da viagem. Lucy, líquida e transparentemente aberta para qualquer espécie de acontecimento e sentimento, aberta a tudo e a todos, pode assim integrar pensamento, sentimento e ação, num gesto unificado de autenticidade monolítica. Esta autenticidade leva-a a recusar algumas das relações sexuais e afetivas propostas e a aceitar aquelas que se coadunavam com o seu desejo, com as suas singularidades, com o seu devir. Nas suas relações com o moribundo - pai postiço, e com o pai biológico, nós a encontramos percorrendo a linha longa do afeto em cuja espessura não explícita encontram-se a sensualidade e a sexualidade, que por vezes se insinuam no comportamento manifestas de um modo vaporoso e sutil.

            Niccolo, o rapaz com quem Lucy havia sonhado por quatro anos, revelou-se um conquistador inveterado, manifestando um desejo apenas epidérmico pela jovem. Aceito até um certo limite mas, em última instância, repelido, desisitiu dela e foi exercer sua atividade donjuanesca em outro terreiro. Podemos tomar este rapaz como exemplo da linha curta e dura em contraste com a linha suave e longa do afeto que a protagonista nos presenteia. A primeira pode ser relacionada a identificações permanentes, a identidades fixas e a segunda à identificação contínua, dual-porosa, uma identificação que resulta em uma identidade fluida, mutável. A primeira ligada a modelos de comportamento e a segunda advinda da atividade criativa de um verdadeiro self que busca o seu lugar afetivo no mundo, sem prévias determinações. Digo, de propósito, um lugar afetivo, para contrastá-lo com um lugar de dever. Houve um tempo em que não se acreditava no afeto como capaz de participar da organização do mundo social; ao contrário, o fluir do afeto seria desorganizador enquanto que o carimbo do dever, este sim, marcaria positivamente a organização social. Hoje, cada vez mais, acredita-se na sabedoria da espontaneidade afetiva. É claro que esta espontaneidade deve ocorrer em um contexto mais amplo, um contexto que que inclui a subjetividade do outro e a subjetividade circulante no social e que não exclui o contrato.

            Voltemos à linha curta e dura do afeto. O que é, nas relações amorosas, ser homem no clássico/moderno? Respeitar a mulher dos amigos e conquistar as outras mulheres. Dessexualizar a mulher proibida. Sexualizar obrigatoriamente todas as outras mulheres. Não entra em questão, pelo menos não prioritariamente, a atração pessoal e sexual. Se era mulher, e se não era mulher de amigo, então era para ser comida. Quanto à mulher ela tinha de guardar uma compustura, um comportamento desestimulante da sexualidade. Tinha de ser fiel ao seu marido e manter sua sexualidade, mesmo na intimidade do quarto, em limites de decência. Nada de grandes entusiasmos ou de grandes criatividades. A mulher tinha de ser discreta em suas manifestações sexuais. É claro que este é um modelo que tem tudo para ser transgredido pois ele impõe freios a uma força muito maior que atua em homens e mulheres. Uma força que impele os seres humanos para o relacionamento, para o reconhecimento, para a fuga da solidão, para a realização de suas potencialidades, para a aventura, para a abertura, para a novidade, para a renovação, para a curiosidade.

            O homem pós-moderno - o borderline “normal” - tem mais probabilidades de transitar na linha longa e suave do afeto. Na atualidade o homem, assim como a mulher, deixam de ser Homem (ou Mulher) para serem uma pessoa. Uma pessoa que, desconsiderando modelos sociais, pode deixar aparecer o masculino ou o feminino que irrompe de seu verdadeiro self, fazendo parte de seu conjunto pessoa. Uma pessoa que se relaciona com outras pessoas. Uma pessoa que ao se relacionar com alguém do sexo oposto (em se tratando de um heterossexual) ou do mesmo sexo (em se tratando de homossexual) poderá acrescentar mais ingredientes à relação: a sensualidade e a sexualidade. Uma pessoa que ao se relacionar com outra pessoa pode fazê-lo de maneira ambígua. Uma pessoa heterossexual que ao se relacionar com alguém do mesmo sexo poderia aceitar o aparecimento de afetos e afetações homossexuais que não precisariam obrigatoriamente se realizar, permanecendo como elemento oculto ou recatado da mescla. Teríamos uma situação semelhante a algumas situações transferenciais em análise, onde a sensualidade e a sexualidade estão presentes de uma forma não explícita, impelindo a relação para o desdobramento. No cotidiano, certamente isso também acontece, assim como também acontecia na época clássica/moderna, não sendo, porém, reconhecido nem aceito pelas pessoas e, por isso mesmo, produzindo uma culpa inconsciente. Lucy, a jovem do filme, uma mulher em estado de identificação dual-porosa, deixa aberta a possibilidade de uma realização sensual/amorosa/sexual mesmo quando esta nunca virá a se concretizar. É algo que fica como pano de fundo e que contribui para a riqueza da ambigüidade. Não se trata mais de uma Mulher, que tem um modelo de comportamento, mas de uma pessoa sujeita e aberta a todas as eventualidades, e que, a priori, não fecha nenhuma porta de relacionamento.

            Esta abertura atenua a dor da exclusão/rejeição que, no limite, encontram-se nos relacionamentos humanos.

            A ferida da rejeição/exclusão - refiro-me aqui ao não acesso ao mais secreto e ao mais impenetrável - no modo clássico e moderno é tratado a ferro em brasa, em processo de cauterização que engole/esconde a ferida em uma fortaleza humana mantida às custas de tensões/realizações. No modo pós-moderno a rejeição/exclusão se atenua na medida em que nenhuma acesso é vedado, nenhuma possibilidade de relação interpessoal e intersubjetiva é excluída. A ferida agora pode ficar exposta, porque ela tem um lenitivo, um futuro, uma possibilidade, mesmo que essa possibilidade nunca se realize. No caso anterior a ferida necessita de ocultamento pois não há nenhuma perspectiva de um caminho de cura para ela. A cura se dá na brutalidade do recalque cortante.  Não uma cura tipo unguento, mas tipo cauterização. Súbita, violenta e agressiva. Por trás desta cura continua a ferida a pulsar em toda a sua intensidade pedindo, exigindo novas brutalidades. É uma ferida dura pois é uma ferida sem esperança. No modo pós-moderno a ferida pode ser mostrada, e ela o é, não na realização definitiva de uma cura, mas na esperança de uma cura que estará em processo de realização sempre que se percorra a série longa do afeto, a linha do afeto onde tudo é possível mesmo que este possível não aconteça. A subjetividade pós-moderna pede uma abertura total a todas as possibilidades. Como possibilidade, nada deverá estar fechado, nem nos deveremos fechar em nenhum reduto pré-conceituoso. Aqui, aparece a figura do borderline, o homem da pós-modernidade, o homem que não se conforma em abandonar os seus desejos infantis onipotentes, e que deverá aprender a lidar com eles no social, de forma que nem os recalcá-los, nem realizá-los de forma destrutiva; o borderline, para aceder à “normalidade”, sem deixar de ser borderline, deverá ser suficientemente criativo para poder manter viva a onipotência infantil sem torná-la anti-social. Deverá percorrer a linha do afeto de maneira a conciliar o desejo de onipotência com a boa convivência social. Seu comportamento poderá vir a ser adequado sem que ele tenha de renunciar às suas mitigadas fantasias infantis onipotentes, ainda que não as realize.
           







Amar e Ser Amado

Nahman Armony
        
Uma antiga música de Antonio Maria cantada por Maysa começa com um lamento: “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama, de meu amor”. Esta é uma queixa freqüente que encontramos em letras de música e na boca de amigos. “Não tenho ninguém” ou “gostaria tanto de ter um amor” cujo subtexto é na maioria das vezes o refrão “não sou amado”. Poucas vezes encontramos pessoas que digam “gostaria de amar alguém”. Sem dúvida quando duas pessoas se amam torna-se problemático separar o amar de ser amado. Pode-se porém dizer que, com muita freqüência a idéia de felicidade está mais no “ser amado” do que no amar. Pois prestem atenção amigos: as delícias de amar superam as de ser amado. Ser amado é muito bom mas tem mais a ver com uma posição passiva, com uma satisfação vaidosa, com uma felicidade que vem de outro e dele depende. A alegria de ser amado não é plena, não é visceral; assemelha-se àquelas gargalhadas que sem deixarem de ser verdadeiras não envolvem o corpo/psique por completo, mas apenas parte dele. Já o amar é algo que nos pertence, que nasce em nossas entranhas e que nos enche o peito de um júbilo transbordante, que ativa todas as nossas moléculas em direção ao ser amado, que provoca uma alegria que nasce e mora em nós mesmos, que nos torna melhores, mais capazes de apreciar a vida, mais generosos, com uma infinita disposição para viver e realizar. Ser amado é um empréstimo amar é um capital. Quando o amor pelo outro nasce de nós mesmos ele transborda para o mundo. Os versos que se seguem, parte da poesia “Poema do amor universal”, de minha autoria,  expressam bem este pensamento: “Eu amo  E ao amar  Posso amar mais ainda  Posso estender meu amor em comprimento e profundidade  Sem deixar de amar a quem amo”. No “ser amado” meu viço depende do outro enquanto que no amar depende de mim mesmo.

Não é fácil distinguir o amar do ser amado quando ocorre esta feliz conjunção. Se além de amar formos amados pelo objeto de nosso amor, haverá uma retroalimentação, uma potenciação  que elevará este amor aos píncaros. Ser amado estimula o amar, e vice-versa. Se, porém por um esforço de discriminação, dissecarmos este conjunto, veremos que amar nos torna mais fortes, plenos e criativos que o ser amado.

         Se minha flama depende de estar sendo amado eu a perderei ao ser abandonado. Se porém ela depender de estar amando eu a possuirei mesmo ao ser dispensado. Meu sofrimento não matará a minha capacidade para a alegria, para o entusiasmo, mesmo que a tristeza venha a ocultá-los pois eu amo e ao amar possuo uma potência dentro de mim. Se meu amor depende do amor do outro minha alegria e felicidade dele virão e as perderei quando ele se for. Se minha alegria e meus outros sentimentos positivos dependerem do amor do outro, na verdade não os possuo, eles me são concedidos em usufruto. Por tudo isto, amar nos torna mais vitais e fortes que ser amados. Se, além de amar sou amado, o amor que já existe a priori em mim  torna-se mais pujante. É diferente de só amar quando se é amado. Não havendo um núcleo de amor autônomo o vigor vital murchará quando o outro se for só restando o desânimo, desespero, depressão, impotência, desvalorização, sentimento de incapacidade.

     Portanto, amigos, amemos acima de tudo. Amemos àqueles que nos amam, mas lembremo-nos que o amar nos traz mais benefícios que o sermos amados.

         Porém não vale a pena amarmos a quem não nos ama. Mas também não é suficiente amarmos por sermos amados. É preciso que amor parta de nós mesmos e se encontre com o amor que o outro nos dedica. Caso contrário nosso amor cairá no vazio e certamente sofreremos com isto. Mas se o amor está em nós, por traz do sofrimento se manterá latente a capacidade de amar, a capacidade de ser alegre, a capacidade de viver criativamente. Mais cedo ou mais tarde elas voltarão à tona.     

Poema do Amor Universal

Nahman Armony

Eu amo
E o amor me purifica
Devolve os meus demônios
Para as milenárias gavetas embutidas no afastado do meu crânio
Libertam o meu sentir de assombrações
Que brincam muito a sério de me assustar.

Eu amo
E ao amar
Posso amar mais ainda
Posso estender o meu amor em comprimento e profundidade
Sem deixar de amar a quem amo
Fonte e luz de tanto amor.

Que milagre é este?
Como pôde o mundo assim mudar?
Como encontrei o meu lugar?
Só com o ato de me dar
Ao amor?
Só com o amor entrar docemente
E docemente se aninhar
Na sua velha morada?


Eu amo
E o amor me transforma
Em fonte de mais amor
Fonte de tanto amor
Que posso envolver meus e alheios demônios
Transformando-os numa agridoce corrente de vida
Fluida, palpitante, responsiva.

É um milagre
É uma transformação
É o verso da vida a nos banhar
Criando fontes de amor
Em multiplicação infinita.

Onde começa tudo?
Onde tudo termina?

Para que saber?
Tenho medo de perder este amor
Que está em mim
Que está em você
Mas que também está
No fulgor dos reinados
Efígie jamais decifrada.