DINAMISMO
DEPRESSIVO
O
dinamismo depressivo pertence aos dinamismos básicos. Seu desenho dinâmico
depende da relação fantasmática de duas personificações: a Personificação da
Mãe-Boa-Onipotente e a Personificação do Filho-Impotente. O terapeuta,
permitindo-se ser colocado pelo analisando na posição de Mãe-Onipotente -
complementar à de Filho Impotente -, possibilita o desenvolvimento do dinamismo
depressivo.
Esta
configuração deriva de um processo de identificações complementares entre
analista e analisando. Para que tais identificações complementares possam
ocorrer é preciso que o analista coloque-se em um estado de “disponibilidade
para a identificação”. Neste estado o analista terá os seus fantasmas ativados
pela atividade fantasmática do analisando, criando-se assim um dinamismo cujos
componentes fantasmáticos em interação, se suficientemente desenvolvidos,
unirão analista e analisando em uma relação simbiótica de talhe depressivo.
Será uma relação simbiótica de matiz afetuoso. O analisando depressivo está
finamente e profundamente familiarizado com os aspectos amorosos, carinhosos,
acolhedores do proceder humano, sendo capaz de facilmente detectá-los e de
manipulá-los, assim como se encontra extraordinariamente atento aos mínimos
sinais de afastamento e perda deste clima, esforçando-se então, com toda a sua
engenhosidade, em evitar o afastamento, ou recuperar o clima.
É
preciso esclarecer que “depressivo” aqui não é sintoma, mas um modo complexo e
característico de relacionamento que, quando bem encaixado e azeitado, não revela
a face depressiva do dinamismo, o que só vem a ocorrer quando a díade
Mãe-Boa/Filho-Bom ameaça transformar-se em Mãe-Boa/Filho-Mau. O termo
depressivo justifica-se por ser este sintoma o mais patente quando há uma
tormenta no dinamismo.
A
díade fantasmática Mãe-Boa/Filho-Bom transforma-se em Mãe-Boa/Filho-Mau quando
surge algum contratempo na relação analista/analisando. A tendência é atribuir
o erro, a incompetência, a maldade, os atributos negativos ao pólo Filho,
deixando a bondade, o acerto, e todas as
qualidades positivas na Mãe. A Mãe deverá ocupar um lugar inatingível e deverá
passar incólume, sem mancha, por todas as crises. Desta maneira, o analisando
em dinamismo depressivo jamais dirá que a culpa ou o erro foi da Mãe-Analista,
mas sempre atribuirá a culpa e erro do que quer que aconteça a si mesmo, pois
ele é o Errado e o Mau, enquanto que a Mãe é sempre a Certa e a Bondosa. Esta é
uma maneira de manter uma idealização positiva da Mãe. Quando, porém o encaixe
dinâmico mantém-se constante em seu funcionamento, quando Mãe e Filho vivem uma
simbiose positiva sem acidentes, então a vivência diádica é de uma relação
Mãe-Boa/Filho-Bom. A relação Mãe-Boa/Filho-Mau surge na vigência de frustração,
fracasso ou desentendimento. Para efeito de comparação é interessante ter
presente que no dinamismo paranóide a frustração sofrida na relação com o
Analista-Mãe criará uma outra relação dual fantasmática; neste dinamismo a díade
que surge a partir da frustração é Mãe-Má/Filho-Bom.
A
relação própria do dinamismo depressivo, diferentemente do dinamismo
esquizóide, não é uma relação de fusão, na qual as individualidades se
misturariam tornando-se indistinguíveis; é, sim, uma relação simbiótica de
complementaridade. Dois diferentes segmentos unidos por identificações,
projeções, empatia, configuram uma “unidade dual”. Um único ente formado por
dois corpos; dois psiquismos circundados por um limite comum realizando trocas
psíquicas entre si através das fronteiras internas que os separa. Diante do
mundo externo a vivência é de um
psiquismo solidário em seu funcionamento e em suas trocas com o exterior. Como
se o outro fosse uma dependência do si-mesmo, assim como o braço é parte de um
corpo maior. Uma ilustração desta simbiose: uma analisanda de minha clínica, de
dinâmica depressiva, sonhava em conviver simbioticamente com o seu marido à
maneira de seu relacionamento com o automóvel: seu carro, segundo ela respondia
docilmente ao gradiente de suas solicitações, dentro de sua mais exata
expectativa; concomitantemente ela se adaptava perfeitamente às peculiaridades
do carro para justo poder controlá-lo.
Os
fantasmas de um analisando em funcionamento depressivo solicitam do terapeuta,
preferencialmente, fantasmas complementares. É, portanto, especialmente através
da identificação complementar que o psicanalista entra na intimidade deste
dinamismo. O paciente, pressionado pelo seu padrão dinâmico, comporta-se como Filho-Bom-Impotente, despertando no
psicanalista a Personificação da
Mãe-Boa-Onipotente-Protetora. O aspecto relacional fantasmático mais óbvio destas
duas personificações é uma proteção absoluta oferecida pela Mãe e uma submissão total do Filho. O suporte desta obviedade é a
ilusão de que esta seria a única maneira de o Analista-Mãe aceitar o Analisando-Filho;
uma ilusão vivenciada em seus anteriores relacionamentos significativos e
incorporada ao seu modo de ser. A Mãe
exigiria ser reconhecida como onipotente e para isto precisaria da impotência e
aquiescência do Filho. Tudo se
passaria como se a onipotência da Mãe
se nutrisse da desvalorização e achatamento do Filho. Este manteria a situação para não perder a remota e cômoda
fantasia de uma Proteção Absoluta e Incondicional. A partir deste seguro,
protetor e confortável colo imaginário, o analisando, em um estado de
relaxamento advindo da liberação das tensões decorrentes das peripécias da
existência, dirige um olhar livre e descompromissado para o espetáculo da vida
e das relações humanas, podendo percebê-las com grande acuidade, já que não
está perturbado por temores ligados à sua inserção produtiva no mundo.
Como
estamos em uma relação simbiótica, as vivências de onipotência, perfeição
narcísica, segurança absoluta, etc. são compartilhadas pelos dois membros da
díade. Esta situação, aparentemente confortável, logo revelará suas
inconveniências. A Personificação da Mãe
apresentará outras exigências além de seu reconhecimento como Boa e Onipotente.
Seu Filho deverá ter um procedimento
não menos que perfeito, sendo que a perfeição é tudo aquilo que a Personificação
Materna determinar. O não cumprimento da lei materna levaria à perda da Mãe e,
portanto à perda da proteção onipotente; o Filho banido, lançado a um mundo
cruel e sem mercê, ficaria agora exposto, vulnerável, sujeito aos seus golpes.
Talvez
o recurso mais poderoso para a manutenção desta situação dinâmica seja a
evitação da agressividade. A manifestação de raiva é vivida como podendo
destruir a Personificação Onipotente e por consequência, destruir o próprio
Filho-analisando em virtude do abandono a que ficaria relegado. Para evitar
esta situação o analisando ou inibe a sua raiva ou muda a rota de sua agressão,
desviando-a do analista e dirigindo-a contra si mesmo, tornando-se então
culpado, e de tal forma se achatando que suas forças se esvaem, impossibilitando-se
então de atacar a Personificação da Mãe.
Existe
aqui uma aglutinação inconsciente cuja experiência/esclarecimento tem um
notável efeito liberador: o analisando confunde a destruição da Personificação
Materna Onipotente com a destruição do próprio analista, com a destruição da
relação e, consequentemente, com sua própria destruição. Ele não se dá conta de
estar apenas atacando a Personificação Onipotente que, uma vez destituída,
deixará surgir um analista humano. Mesmo quando o analisando já tem condições
de ter tal percepção, teme que o analista, reduzido à condição de humano, não
possa mais ajudá-lo; no que, aliás, ele tem razão, pois a ajuda esperada é da
ordem da onipotência. É preciso um extenso percurso, ao longo do qual várias
séries fantasmáticas entrelaçadas são, aos poucos, desanuviadas, esclarecidas, desemaranhadas,
agenciadas, articuladas, para que o analisando possa encarar sem angústia
excessiva a desidealização e consequente humanidade do analista, o que
acontecerá quando ele puder acreditar que a onipotência não é o prelúdio da
impotência, mas sim de uma potência real do analista, capaz então de ajudá-lo
de uma outra maneira que não onipotente - uma maneira potente.
A
desidealização do analista dará, pois, espaço a um outro tipo de relação, onde
o reconhecimento da realidade do outro atenuará a intensidade do funcionamento
dos fantasmas, permitindo que o analisando se aparte de seu dinamismo, além de
propiciar o acréscimo de outras modalidades de funcionamento, aumentando suas
potencialidades vivenciais. É preciso, porém, manter em mente que, enquanto o
analisando está mergulhado no dinamismo depressivo, é-lhe inconcebível não só a
possibilidade, mas até a existência de um outro tipo de relação que não a
simbiótica depressiva.
Este
núcleo dinâmico da relação, constituído pela díade Mãe-Onipotente e Filho-Impotente
e basicamente mantida por inibição e redirecionamento da agressividade, é
protegido por controles inconscientes. A
sedução é um desses recursos.
Mais
caracteristicamente, trata-se de uma sedução infantil. O analisando aloca-se na
posição de incapaz e desvalido. Seu comportamento é o de uma criança pequena.
Ele se movimenta de um jeito tão solicitador de abrigo, de uma maneira tão
comoventemente desprotegida, com um tal ar de desamparo que faz surgir no
analista sentimentos materno-protetores-onipotentes.
Outra
forma de sedução é inflar a autoestima do terapeuta, atribuindo-lhe uma
capacidade e sabedoria divinas diante das quais ele, analisando, pouco sabe e
pouco pode. Nada mais a fazer senão concordar com criatura tão sábia e
maravilhosa. Nada de discordar ou de se opor, pois isto seria uma blasfêmia, um
vero crime de lesa-majestade.
O
analisando pode também recorrer à sedução intelectual, esforçando-se por atender
aos desejos do analista de um bom trabalho analítico pleno de interpretações e
elaborações interessantes e produtivas.
Uma
forma mais primitiva de controle da relação é o ataque ao próprio corpo que,
sendo ao mesmo tempo o corpo da Mãe,
mobiliza-A duplamente. O depressivo,
desgostoso com a Mãe e temendo ser abandonado por ela, oferece o seu corpo às
agressões externas e internas. A Mãe, alarmada com esse ataque ao suporte da
vida, torna-se mais minudente, filigranada e sutilmente atenta às necessidades
do Filho. Embora estejamos falando de controle, o que nos levaria a pensar em
manipulação, no caso presente estaríamos diante não tanto de uma manipulação,
mas sim de uma mobilização. É importante diferenciar manipulação de mobilização,
pois isto influenciará a conduta terapêutica. O ataque ao corpo poderá ser um
grito desesperado de quem, tendo já tudo perdido, está prestes a desistir da
vida, e que dela desistirá se não for acudido. É dentro desta perspectiva
vivencial que o analista deverá dar o seu encaminhamento à terapia. Estamos
aqui distantes da situação em que o analisando tenta fazer o terapeuta
sentir-se culpado para melhor controlá-lo, para conseguir aquele extra de
atenção que a criança voraz dentro dela almeja.
Porém,
fazer a distinção entre essas duas situações não é tão simples. Podemos aqui
imaginar a seguinte sequencia: o paciente procura obter privilégios através de
manipulações; não conseguindo, vai aos poucos perdendo o sentimento de que o
analista é a Mãe-Boa-Onipotente que o ama e protege; chega um momento em que
este sentimento de perda é tão forte que ele duvida do amor desta Mãe - estamos
aqui perto do ponto de ruptura, pois mais um pouco de solicitação não atendida
e ele se sentirá abandonado e desamparado. A Mãe passa a ser vivenciada ou como
Aquela que deixou de protegê-lo ou, pior, como Aquela que o abandonou,
deixando-o entregue à própria sorte. A Mãe que era dádiva inconteste, embora
potencialmente abandonadora, confirma suas piores expectativas inconscientes,
passando a ser não mais uma certeza positiva pontilhada de dúvidas, mas uma
terrorífica certeza negativa com pálidos laivos de esperança. O que era jogo
transforma-se, neste momento, em procedimento de sobrevivência. O paciente
ultrapassa a zona de manipulação - área de testes e ganhos secundários - e
passa para a área de mobilização, região de fatos básicos: vida e morte,
sanidade e loucura, abandono e socorro. A partir deste momento a vida só valerá
a pena se reaparecer a Mãe-Boa.
O
ataque ao corpo é um ponto de encruzilhada. Se a Mãe-Boa reaparecer
repetidamente nas horas de desamparo absoluto, sua presença afetiva acabará por
criar naquele ser periodicamente inerme e desesperado uma sólida fantasia
inconsciente de uma unidade dual consistente e confiável, alterando as
intensidades em jogo no dinamismo; o desenvolvimento tenderá a se fazer no
sentido de uma maior tranquilidade anímica, dotando a vida de benignidade. Se a
Mãe faltar nos momentos de sua máxima aflição, o analisando poderá fechar o
caminho para o seu desespero, ou poderá a ele sucumbir, ou ainda, poderá
encontrar forças no âmago de si mesmo para sobreviver e se recuperar da
experiência de abandono radical; neste caso a fantasia de falta se instituirá e
o analisando tenderá a ser mais combativo, experimentando e vivendo o mundo de
uma forma mais dura, competitiva, ansiosa.
Diante
da perspectiva de aparição de um desespero radical, o analista poderá adotar
uma atitude mais cautelosa. Ficará então diante do dilema - acolher o dinamismo
versus apontar para o dinamismo (apontar para o dinamismo provoca o seu
fracasso). É um dilema cujas duas faces podem ser assim colocadas: ao ser
continente para o Filho-Impotente o analista poderá estar fragilizando-o; mas
se revelar o dinamismo poderá ser sentido como a Mãe-Abandonadora. O analista
poderá equilibrar-se no fio deste dilema conduzindo-se de maneira a não
fragilizar em demasia ou em definitivo o analisando, nem atirá-lo de supetão em
um terrífico abandono.
Vou
agora me referir a dois aspectos da terapia do dinamismo depressivo.
Do conjunto “dinamismo
depressivo” isolarei dois aspectos: a relação dinâmica
valorização/desvalorização e a relação dinâmica agressão/culpa.
Comecemos
pelo aspecto valorização/desvalorização. O analisando em estado depressivo está
permanentemente drenando e destruindo a sua auto-estima; desta maneira suas
conquistas se esvaziam e nada ou muito pouco acrescentam à sua autoestima;
mesmo este pouco tende a ser destruído por um
triturador interno, pelas agressões que a Mãe Internalizada efetua
contra o Filho-Atrevido. Trata-se de uma Mãe que ataca para mantê-lo fraco e
dependente. O apontamento constante e consistente de tudo o que seja uma
verdadeira conquista do analisando, ajuda-o a alterar esta relação
fantasmática. Não é, porém, um processo fácil. O analisando, aprisionado no
dinamismo depressivo, ignorará ou expelirá a intervenção valorizadora do
analista que poderá, então, sentir-se desestimulado de prosseguir nesta linha.
Porém a desatenção e o protesto do analisando não significam que a intervenção
foi inútil. Ao contrário, a insistência nesta prática, em algum momento,
influenciará no sentido de uma modificação da imago de Mãe que ele possui.
Esta
atitude do analista não deve ser confundida com a noção de “reforço do ego” no
sentido clássico. O analista não se preocupa em “dar força” ao analisando; a
idéia de “dar força” pertence a um estado dicotômico em que o analista,
colocando-se do lado de fora da simbiose, dirige-se ao ego do analisando
buscando levantar seu ânimo. Na estratégia que estou propondo pretende-se ir
para além do ego; pretende-se mexer no dinamismo inconsciente, nas
personificações básicas. A Mãe-que-não-deseja-o-crescimento
deverá ser eclipsada por uma Mãe-que-se-regogiza-com-o-crescimento;
a Mãe-que-deseja-manter-a-relação-onipotência/impotência
cederá o seu lugar a uma Mãe-que-pretende/aceita-ser-desidealizada.
Esta estratégia pede do analista um comportamento covivencial e não um
comportamento interpretativo. O apontamento prazeroso das vitórias do
analisando é um comportamento covivencial e não interpretativo. As palavras são
usadas não para desvelar o oculto, mas para modificar as relações
intersubjetivas; a palavra aqui é parte de uma atitude global e é a expressão
verbal desta atitude estando inteiramente integrada a ela.
A
vertente raiva/culpa aparece quando a frustração transmuta a relação Mãe-Boa/Filho-Bom em Mãe-Boa/Filho-Mau. A
raiva que brota no analisando a partir da frustração surgida na relação com o
Analista-Mãe, volta-se contra si mesmo. Para afrouxar ou “abrir” esta dinâmica
é preciso que o analista cuide de não inibir as primeiras manifestações de
agressividade do analisando que em geral se manifestam quase
imperceptivelmente, sob forma de irritação ou impaciência; o mínimo gesto
proibitivo poderá provocar um
recolhimento da agressividade do analisando; a interpretação dos primeiros e
tímidos desafios e investidas poderá ser sentida como crítica condenatória,
produzindo um efeito inibitório. Se o terapeuta é bem sucedido nestes cuidados,
finalmente poderá se desenvolver uma vigorosa agressividade dirigida à Mãe-Boa-Onipotente, desidealizando-a, e
abrindo caminho para um novo tipo de relação dinâmica em que o “outro” já pode
ser percebido como um ser humano com problemas e dificuldades.
Uma
repetida ausência de socorro afetivo nos momentos de fantasia de abandono
radical poderá levar o analisando a sobrepor um dinamismo secundário ao
dinamismo depressivo, ocultando-o, mas continuando sujeito à sua influência.
Esta composição permitirá ao analisando entrar no social manquejando,
sustentado pelo dinamismo secundário e embaraçado pelo dinamismo básico
reprimido. Um resultado diferente é obtido quando pela via da covivência
consegue-se “abrir” o dinamismo depressivo, sem reprimi-lo. Neste caso, a conquista
de um lugar social faz-se sem a negação daqueles sentimentos e valores ligados
à Personificação da Mãe, mas mediante a harmonização destas vivências mais
primitivas a um contexto mais amplo e complexo.
Há
uma radicalidade na minha escrita, nas minhas considerações clínicas. É uma
radicalidade que fala de um ideal utópico criado a partir de vetores que a
própria terapia psicanalítica faz surgir. São, porém, estas utopias, é este
pensamento radical que permite melhor acompanhar as tendências que se formam na
relação analista/analisando.