BORDERLINE E DESENVOLVIMENTO

BORDERLINE E DESENVOLVIMENTO
 Nahman Armony
         Antes, uma advertência. O que se segue é especulação,  assim como considero especulações as teorias sobre a infância advindas da regressão psicanalítica. De uma maneira geral, os autores psicanalíticos preferem usar as teorias infantis derivadas do trabalho clínico com adultos às teorias que se estão formando por observação de bebês. As observações só são focalizadas quando apoiam uma teoria do desenvolvimento prévio. Um autor que usa tanto a observação de bebês quanto os dados clínicos de pacientes regredidos é Winnicott. Mas sua observação de bebês não é sistemática: ela é feita no trabalho clínico. A reconstituição histórica tem mais a ver com o trabalho clínico do que com a observação sistemática. Ela serve de apoio, ferramenta e legitimação para a teoria clínica. Portanto, acho que a teoria do desenvolvimento de cada autor tem mais a ver com sua teoria clínica que com o conhecimento da criança. Vide “estágio do espelho”, a teoria da não-integração, as fases libidinais freudianas, etc.
          Depois dessa advertência posso ir ao assunto. Minha referência é Winnicott com seus conceitos de dependência absoluta, dependência relativa, ser, objeto transicional e espaço potencial, mãe suficientemente boa, e talvez outros que poderão aparecer no decorrer da laboração deste trabalho.
         Meu assunto é borderline e farei uma tentativa de situar o que seria a principal influência (lembro novamente que é especulativo e que tem a função de facilitar o pensamento) no posterior aparecimento do modo de viver borderline.
         Postulo que ele teve uma mãe suficientemente boa nos seus inícios, uma mãe com preocupação materna primária adequada. O SER do bebê está, conseqüentemente, bem constituído. A mãe tendo podido SER permitiu o aparecimento de uma consistência ontológica no infante.
         Já na transição entre dependência absoluta e dependência relativa quando se forma o espaço e objeto transicional a mãe do borderline não teria sido suficientemente boa. De que maneira? Ela teria imposto a sua presença de tal maneira que o objeto transicional teria perdido a função de estar no lugar da mãe. Uma das funções do objeto transicional é abrir um espaço de independência, de brincar, de cultura, de criatividade propriamente dita. O desastre só não é total por ser impossível a presença ininterrupta da mãe. Mas o desejo de continuar a ser um objeto de absoluta necessidade perturba a formação do espaço potencial. Não é preciso dizer que é o objeto transicional que torna o bebê relativamente independente da mãe. Com o objeto transicional pleno ele pode prescindir da presença dela por um certo período de tempo. Pode também exercer a sua imaginação e pode perceber que existe um mundo lúdico e de cultura a ser construído pela sua criatividade.  Caso contrário a mãe torna-se, ela própria, o objeto transicional do bebê que assim passa a necessitar de uma figura humana simbiótica ou fusional para viver. Se houver um preenchimento de mãe e uma ausência total de objeto transicional e espaço potencial a pessoa será lançada em um extremo em que será incapaz de realização, necessitando  para viver de uma personificação materna fusional. Quando a mãe não ocupa todo o espaço potencial, a criatividade e uma relativa autonomia podem se desenvolver. Mas a necessidade de figuras maternas simbióticas persiste pela vida. O melhor destino da fusão e da simbiose é sua transformação em identificação em devir com tudo que o cerca.

         Teremos uma situação em que a pessoa se constituiu como SER, aprendeu a realizar trocas afetivas, viveu a mutualidade das relações, mas tem dificuldade de se situar em um espaço potencial que permitiria uma adequada relação entre o subjetivamente concebido e o objetivamente percebido. A mãe não é vivida como inteiramente autônoma, não se torna um pleno não-eu, e é então buscada no ambiente que rodeia o borderline. Essa seria a gênese, do ponto de vista de desenvolvimento, do borderline, que teria a ver com a nossa atualidade, em que a mãe ao não ter o tempo desejado para o bebê procura compensá-lo preenchendo todo o espaço potencial com a sua presença.   
RE-VERSO

                                   Duas bandas bondosas gostosas de navegar
                                   Duas luas traseiras voltadas para o solar
                                   Duas barcas traineiras bolinando o lunar

                                   Eu e você
                                               Na fenda

                                   Gêmeos na vida, gêmeos no amor
                                   Casas gemeladas gemem ao feitor
                                   Escavam germinadas molhadas de odor

                                   Eu e você
                                   No limiar da solidão solstício abrasa
                                   Giram girassóis gigantes d’alma
                                   Papoulas preparam planícies calmas.

                                                                                  Solar feitor
                                                                                  É-feito amor.

                                                                                Nahman Armony                            

                                   
UM  ROSTO



       As nuvens do tempo desfazem traços do rosto
       Tão conhecido e amado.
       Carnes amolentadas pendem perfil.


       Meu olhar de memória reencontra indícios
       Rastros de antigo esplendor
       Linhas firmes
       Marcas d'água resistindo à liquescência.

       Bocas mastigam gengivas
       Ruminam morte e vida.
      

                    
       De tudo só resta
       Uma memória depurada
       Uma tristeza
       Uma beleza perdida, lembrada
       Renovada por outros rostos de mesmo destino.


                                             set./92

                                          Nahman Armony


























                         

A IMPORTÂNCIA DA DIFERENÇA

A IMPORTANCIA DA DIFERENÇA[i]
                                                               Nahman Armony
        No diálogo “Banquete” de Platão vários pontos de vista sobre o amor são apresentados por seus participantes. Aristófanes, um de seus convidados, conta um mito comovente: nos tempos primevos havia um terceiro gênero, nem homem, nem mulher, mas um ser completo, formado por duas metades. Este ser “era uma totalidade redonda, sua espádua e suas costas formando um círculo; tinha quatro braços, pernas em número igual aos dos braços, dois rostos sobre um pescoço circular, semelhantes em tudo, e sobre estes dois rostos que estavam colocados em sentido oposto, somente uma cabeça; além disto quatro orelhas, dois órgãos sexuais” (Platón – Obras Completas. Editora Aguilar, p.575.  188c/190b). Existiam três espécies deste gênero: uma com duas metades homens, outra com duas metades mulheres e uma terceira com uma metade homem e outra mulher. Estas criaturas estranhas eram extremamente fortes a ponto de arrogantemente desafiarem os deuses. Zeus para enfraquecê-las as seccionou em duas partes; a partir de então cada um procura a sua metade. Aqui está colocada a idéia de uma destinação única e inelutável que encontramos freqüentemente em casais apaixonados e ainda com pouca experiência de relações amorosas. É aquilo popularmente chamado de “metade da maçã” e “cara metade”. Há um sentimento de perfeição envolvendo o jovem casal que se sente forte e capaz de enfrentar todos os desafios do mundo. Há uma idéia de que eles se entendem perfeitamente, cada um adivinhando e realizando o desejo do outro, pois os dois tornaram-se um apenas. As diferenças não são percebidas, pois se escondem sob o manto do desejo de ser e fazer tudo aquilo que o outro deseja. Sabemos que este estado tem uma duração limitada. Amainada a fogueira da paixão as diferenças começam a ser percebidas: as demandas não são mais tão rapidamente atendidas e algumas deixam gradativamente de ser acatadas em definitivo. Surge então a clássica frase: “Onde está o homem (ou a mulher) que conheci?” cujo subtexto é “nossa relação não vai dar certo”.
Alguns casais atravessam este período tempestuoso aprendendo a conviver com a diferença, mantendo a relação, mas secretamente lamentando o paraíso perdido.
        Pois bem: além de ser inevitável o aparecimento das diferenças, elas têm importantes funções. Em havendo uma boa vontade de ouvir o outro, em levar em consideração seus pontos de vista, seu modo de vida, e em havendo compreensão e tolerância para as suas idiossincrasias mesmo que bobas, cada um se enriquece com as peculiaridades do outro desde que esteja aberto para absorver aquilo que no outro pode ampliá-lo. A aceitação da diferença tem também sua função num campo muito delicado: a atração sexual. Um casal que está descobrindo as diferenças, mas que ainda não sabe lidar com elas vai-se gradativamente afastando até que surge uma briga séria. Esta briga os reaproxima através da agressividade, seguindo-se um período de amuo, de afastamento explícito que incomoda aos dois, pois as brasas da paixão ainda ardem. É quando o desejo sexual a serviço do desejo de reaproximação cresce extraordinariamente levando a um intenso encontro de corpos e almas. Agora, o intenso prazer sentido, a fusão experimentada, amolecem as defesas do casal e ambos ficam mais propensos a se abrirem e a compreenderem as diferenças. Eles se tornam mais porosos na relação podendo então autenticamente aceitar a subjetividade singular do outro. Este processo várias vezes repetido consolida a relação e é possível que chegue o momento em que o casal possa dizer: “Bendita diferença”.     



[i] Publicado originalmente pela revista CARAS e agora republicado com algumas alterações. 

Blog do Nahman: CÉREBRO E MENTE

Blog do Nahman: CÉREBRO E MENTE:                                                Nahman Armony Depois de ler a revista “Mente e Cérebro” de dezembro de 2012, cujo   maior ...

CÉREBRO E MENTE

                                               Nahman Armony
Depois de ler a revista “Mente e Cérebro” de dezembro de 2012, cujo maior conteúdo explícito e implícito são as relações entre estas duas noções tive a seguinte intuição: quem pensa é o cérebro. Muitos fenômenos acompanham a atividade do cérebro. Para maior facilidade de exposição e compreensão vou me referir a dois funcionamentos do cérebro. Um é o funcionamento sub-cortical onde temos um conjunto de fenômenos elétricos e químicos e provavelmente outros. Mas quero rever agora esta questão de atividade sub-cortical. Esta expressão serve como introdução e vou continuar nela pela simplificação que representa. Depois voltarei a ela. A atividade sub-cortical sozinha é inconsciente, isto é, entre os fenômenos que acompanham sua atividade não está a consciência. Quando a atividade sub-cortical é acompanhada de atividade cortical mais um fenômeno se acrescenta ao conjunto de fenômenos já existentes. É um sentimento de Eu, uma percepção consciente de si mesmo (“Eu, percebo, eu vejo, eu estou fazendo, etc.”). Isto é, quando o cérebro funciona com mais redes de neurônios aparece uma nova função, a função da consciência acompanhada de um sentimento de Eu. Parte do funcionamento subcortical (emoções) é percebido por um Eu que depende justamente de um certo mapa de redes cerebrais em funcionamento. O cérebro pensa inconscientemente quando certas redes estão em funcionamento mas não outras. Uma certa configuração de redes cerebrais em funcionamento tornam possível ter consciência das coisas, perceber-se como um Eu em oposição a um não-Eu. Vou dizer de onde tiro parte desta especulação. As imagens cerebrais revelam que algum tempo antes da pessoa realizar um movimento ou tomar consciência de alguma coisa a rede cerebral responsável pelo movimento ou pela percepção já tinha entrado em atividade. Primeiro eu penso com o cérebro, e depois de milisegundos ou segundos o resultado deste pensamento cerebral é percebido por um Eu consciente que também é o resultado de uma rede de neurônios em funcionamento. A primeira escolha é feita por um conjunto neuronal que não se torna consciente. Mas pode haver uma segunda escolha a partir da percepção consciente. Uma escolha mais tardia. Exp.: Tenho duas opções de caminho. Meu funcionamento cerebral inconsciente faz-me optar pelo caminho A e eu penso que foi minha escolha consciente quando na verdade foi uma escolha inconsciente à qual dei prosseguimento com a minha ação de entrar por aquele caminho. Mas agora já estou consciente de minha escolha cerebral inconsciente e posso rever esta escolha mobilizando outros circuitos cerebrais. Se pensarmos filogeneticamente veremos que houve uma evolução desde o mais primitivo sistema nervoso até o nosso sofisticado cérebro. Houve muitas etapas que se caracterizaram por acréscimos do tecido e das regiões cerebrais. A cada novo acréscimo ocorria uma ampliação das possibilidades de percepção e ação e a autoconsciência é o topo atual dessas possibilidades e ninguém poderá afirmar com certeza se outros acréscimos acontecerão aumentando o nosso campo de percepção e ação.             
GÊNEROS DE CONHECIMENTO DE SPINOZA
          A propósito do livro “O enigma de Espinosa” de Irvin D. Yalom
        Aprendi com André Martins que Spinoza fala de três gêneros de conhecimento: o primeiro é o imaginativo, fonte possível de muitos enganos. O segundo é o gênero racional que ao desconsiderar a imaginação não progride no sentido de uma percepção criativa do mundo. E finalmente temos o terceiro gênero, o conhecimento intuitivo que usa tanto o raciocínio quanto a imaginação na compreensão e construção do mundo. Este seria o ponto culminante do pensamento[1]. Este paradoxo, imaginação + raciocínio parece difícil de conciliar. Consegui melhor entendê-lo e aceitá-lo ao me deparar com dois relatos: um do psicanalista Winnicott e outro do pesquisador químico Kekulé. Um das ciências humanas e outro das ciências exatas. O de Winnicott se encontra no livro “Explorações psicanalíticas” no artigo “Uma nova luz sobre o pensar infantil” na p. 123: “Num sentido positivo, o pensar faz parte do impulso criativo, mas existem alternativas ao pensar e elas possuem algumas vantagens sobre ele. Exemplificando, o pensamento lógico leva muito tempo e pode nunca chegar lá, mas o lampejo de intuição não leva tempo e chega lá imediatamente. A ciência precisa de ambas estas maneiras de progredir. Achamo-nos aqui buscando palavras, pensando e tentando ser lógicos, e incluindo um estudo do inconsciente que permite uma imensa ampliação do raio de ação da lógica. Ao mesmo tempo, porém, precisamos ser capazes de buscar símbolos e criar imaginativamente e em linguagem pré-verbal; precisamos ser capazes de pensar alucinatoriamente”.
A colaboração involuntária de Kekulé vem de seu relato de um sonho que precedeu sua descoberta da estrutura cíclica do benzeno. Ei-lo: “Eu estava sentado à mesa a escrever o meu compêndio, mas o trabalho não rendia; os meus pensamentos estavam noutro sítio. Virei a cadeira para a lareira e comecei a dormitar. Outra vez começaram os átomos às cambalhotas em frente de meus olhos. Desta vez os grupos mais pequenos mantinham-se modestamente à distância. A minha visão mental, aguçada por repetidas visões desta espécie, podia distinguir agora estruturas maiores com variadas conformações; longas filas, por vezes alinhadas e muito juntas; todas torcendo-se e voltando-se em movimentos serpenteantes. Mas olha! O que é aquilo? Uma das serpentes tinha filado [abocanhado] a própria cauda e a forma que fazia rodopiava trocistamente diante dos meus olhos. Como se se tivesse produzido um relâmpago, acordei; ... passei o resto da noite a verificar as consequências da hipótese. Aprendamos a sonhar, senhores, pois então talvez nos apercebamos da verdade ... mas também vamos ter cuidado para não publicar nossos sonhos até que eles tenham sido examinados pela mente desperta”.  Esta citação faz parte de um discurso proferido em 11 de março de 1890, em Berlim, em comemoração aos 25 anos da publicação de um artigo do discursante sobre a estrutura química do benzeno.
Será preciso dizer mais alguma coisa? Claramente, tanto Winnicott quanto Kekulé defendem que só a razão não é suficiente para a busca da verdade. É preciso juntar o raciocínio lógico à imaginação, ao sonho, para se alcançar uma intuição, fruto desta colaboração. É o terceiro gênero de conhecimento considerado por Spinoza como o melhor. 
                                                                Nahman Armony


[1] André Martins, a quem consultei, teve a gentileza de me apresentar, por escrito, o pensamento de Spinoza: “O segundo gênero, que ele chama de razão, é o conhecimento universal, das leis e normas que regem a natureza, e a natureza humana, por exemplo o funcionamento dos afetos do homem. A razão assim concebida por Spinoza já não se confunde com a lógica. Ele diz explicitamente que a lógica é requerida para a razão, mas que a lógica é outra coisa. Ele faz uma analogia para dizer isso: a medicina não é a saúde, mas é importante para a manutenção da saúde; do mesmo modo a lógica não é a razão, mas a lógica é importante para a razão. De fato, o terceiro gêneros, que Spinoza reconhece como o melhor e que ele nomeia de “ciência intuitiva”, usa a razão e a imaginação junto com a intuição, pois é um conhecimento das coisas singulares, indo portanto além das leis gerais. Se vale da razão, mas com a imaginação intuitiva compreende o que é singular, e que por ser singular é inalcançável pela razão. Spinoza diferencia a intuição (mencionado no livro ‘Breve tratado’) da ciência intuitiva (do livro ‘Ética’): ambos são conhecimentos superiores, mas a vantagem da segunda é que ela se baseia na razão, e por isso temos consciência de que é um conhecimento verdadeiro e temos maior domínio sobre ele,enquanto que a pura intuição também é um conhecimento verdadeiro, mas pode mais facilmente se confundir com a imaginação falsa”.    

DINAMISMOS EM PSICANÁLISE

DINAMISMOS EM PSICANÁLISE

                                                                   Nahman Armony
                                                                                                      



Este artigo e os dois que se seguem foram escritos no século passado e os estou reapresentando porque, na minha opinião, o conceito sullivaniano de dinamismo aproxima-se do modo intersubjetivo de exercer a psicanálise. Creio que o pensamento intersubjetivista se beneficiará dessa fonte. Foi Sullivan (1963) quem usou pela primeira vez, em psicanálise, o conceito de dinamismo. Apesar de seu parentesco semântico com “dinâmico”, o termo subsume, na verdade, uma outra postura prática e teórica. Enquanto Freud refere-se à dinâmica como um processo que ocorre no interior  do aparelho psíquico, Sullivan dá a ‘dinamismo’ um sentido interpessoal, uma atividade que envolve pelo menos duas pessoas. Suas teorias, resultados de posicionamento filosófico e epistemológico distinto, apresentam justamente esta divergência básica: o primeiro tenta manter-se no âmbito do intrapsíquico, enquanto o segundo considera necessária a inclusão do ‘outro’ no próprio cerne da teoria. Foi justamente esta inclusão que permitiu a Sullivan a elaboração de uma teoria muito próxima à clínica (Armony, 1979), superando a tendência solipsista da teoria freudiana. Quando Sullivan, em 1929, começou a formular a sua teoria das relações interpessoais, Freud ainda era vivo; teria 10 anos de existência pela frente e ocupava-se, desde pelo menos 1917 (Freud, 1917), em encontrar um lugar para o ‘outro’ em sua metapsicologia. O que teria impedido de, nas suas reformulações, encontrar um lugar teórico mais adequado para o ‘outro’, um lugar que aproximasse teoria e clínica?
Freud, nascido em meados do século XIX, é um filho do iluminismo. Embora estivesse em curso, no momento da constituição do saber psicanalítico, uma revolução no campo epistêmico, Freud mantém-se fiel aos seus mestres e à sua formação. O aparecimento de um novo par epistemológico, ciências da natureza/ciência da cultura, não o sensibiliza nem o impele a uma escolha. Não há possibilidade de escolha, pois, para Freud, a única ciência possível é a ciência da natureza na qual ancora persistentemente a psicanálise (Assoun, 1981). No plano da teoria produz, em 1895, o “Projeto de uma psicologia para neurólogos” criando um fantástico aparelho neurônico. Esta “Máquina que não tardaria a funcionar por si mesma” (Freud, 1895), deveria explicar as ocorrências psíquicas, normais e patológicas. Suas inúmeras deficiências levaram Freud a engavetá-lo mas não a esquecê-lo. Reaparece metamorfoseado em 1900 no cap. 7 da “Interpretação dos Sonhos”. A linguagem energética-fisiólogica é transposta para um idioma energético-psicológico, ampliando o poder de inclusão da teoria, mas mantendo sua base mecanicista e o seu solipsismo. No plano da clínica Freud colocava-se com um observador externo dos sintomas, procurando descobrir a cadeia casual que os determinava. Estas relações de determinação seriam descobertas mediante um artifício técnico: o terapeuta teria uma “atenção flutuante” para a “associação livre” do paciente, podendo então descobrir os deslocamentos e condensações responsáveis pelos sintomas. Neste contexto científico, “asséptico”, de pura observação e intervenção externas surge um fenômeno perturbador: a transferência. De início tratada como um incômodo, pouco a pouco ganha importância, até que em 1912, no artigo “Dinâmica da transferência” (Freud, 1912), afirma-se como o elemento primordial na “cura” psicanalítica. A esta altura, porém, as bases da teoria psicanalítica já tinham sido assentadas no “Projeto” e no Cap. 7 da “Interpretação dos Sonhos” (Freud 1900), e a transferência ocupa, ali, um pobre lugar teórico, não diferenciando de qualquer outro deslocamento. A distância entre teoria e clínica, assim instituída, não foi suficientemente reduzida  por Freud nem mesmo em sua última reformulação teórica, dado o seu profundo comprometimento com suas bases teoréticas assentadas no “Projeto”. Não seria demais presumir que, se a importância da transferência tivesse sido descoberta antes das primeiras elaborações teóricas, outra talvez fosse a teoria psicanalítica freudiana. Parte da comunidade psicanalítica, sentindo a necessidade de aproximar a teoria da prática, o fez com a assim chamada “teoria clínica” (Waelder, 1962).
É justamente neste ponto que introduzo minha concepção de dinamismo. Ela, a princípio, é um prolongamento da concepção sullivaniana de dinamismo: “... a menor abstração útil, que pode ser empregada no estudo da atividade funcional do organismo vivo, é o dinamismo em si mesmo, o padrão relativamente perdurável de transformações de energia que caracterizam recorrentemente ao organismo vivo. Esta é, talvez, a enunciação mais geral que me é possível formular sobre a concepção de dinamismo; alcança muito além do reino da psiquiatria, e, certamente, todo o reino da biologia. A juízo de alguns, talvez alcance muito além, ainda” (Sullivan, 1953, p. 129). Sullivan continua: “os dinamismos de interesse para a psiquiatria são os padrões relativamente perduráveis de transformação de energia que caracterizam, recorrentemente, as relações interpessoais --- o interjogo funcional das pessoas e personificações, signos pessoais, abstrações pessoais e atributos pessoais --- que compõem a classe claramente humana de ser” (IBID, p. 129). Quando transponho a concepção sullivaniana de dinamismo para a situação psicanalítica a dois realizo algumas modificações. Considero dinamismo como o padrão relativamente perdurável de trocas psicológicas na cena fantasmática de uma relação psicanalítica dual, captado pela contratransferência alogênica, especialmente por identificação complementar (Armony, 1978, pp. 69/70). Este padrão para ser percebido exige, em primeiro lugar, que o terapeuta deixe-se colocar e/ou coloque-se no centro dos acontecimentos do “aqui e agora” da sessão. Requer também uma atitude particular chamada por Bion de “devaneio” (Bion, 1962, pp. 52 e 104), por Winnicott de “devoção” (Winnicott, 1956, p. 494) e que eu gostaria de denominar de “disponibilidade para a identificação”. Neste estado o terapeuta experimentará em si mesmo, em resposta à transferência do paciente (portanto através de sua contratransparência alogênica), a emergência de sentimentos e emoções e a tendência a desempenhar papéis. Se o terapeuta não desmitificar precocemente a transferência, a situação transferencial/contratransferencial evolverá dentro de uma lógica própria que se tornará cada vez mais clara pela reiteração das situações. Haverá um momento em que poderemos isolar, da corrente fluida da relação, um dinamismo. Este dinamismo será um padrão abstraído de um relacionamento vivo, um esqueleto que se delineia por trás da carne dos acontecimentos. A recorrência de certos padrões permite delimitar alguns dinamismos: esquizóide, paranóide, depressivo, obsessivo, fálico, histérico e fóbico. O reconhecimento destes dinamismos assim abstraídos apresenta suas dificuldades; na prática os padrões dinâmicos por nós delimitados podem se interpenetrar ou se superpor; pode haver uma tal quantidade de ocorrências nas sessões que os balizamentos indicativos do padrão tornam-se borrados. Como então reconhecer o dinamismo no pipocar dos acontecimentos analíticos? Esta questão poderá ser mais bem examinada se tomamos a definição de padrão de Sullivan: “Padrão é um conjunto de diferenças particulares insignificantes” (Sullivan, 1953, p. 130). Duas laranjas, diz-nos Sullivan, pertencem a um mesmo padrão porque suas diferenças são insignificantes do ponto de vista do padrão laranja abstraído. Na situação analítica, como evitar deixar-se confundir pelas particularidades que em termos do padrão são irrelevantes? Se pudermos distinguir as linhas mestras repetitivas do relacionamento, aquelas que dão o movimento predominante à relação, as particularidades que envolvem e atravessam estas diretrizes e se revelam incapazes de alterar o seu curso merecerão o qualificativo de insignificantes. Para distinguir estas linhas mestras o analista deixar-se-á levar pelo dinamismo, como se este fosse uma forte corrente caudalosa arrastando-o através dos valões cavados pelo padrão repetitivo. Esta metáfora suporta ainda, em seu limite, uma importante colocação de Sullivan: “Apesar de que tal padrão é relativamente durável, nada tem de estático, porque uma mudança, por muito insignificante que seja, é produzida por cada manifestação recorrente, no viver, deste padrão recorrente” (Ibid., p. 135). Esta afirmação ganha maior relevo quanto Sullivan diz que mudanças “insignificantes no que se refere ao padrão podem ser muito significativas em relação ao viver” (Ibid., p. 134). Entramos na questão da “cura analítica” sob a ótica dos dinamismos e suas transformações. (Coloquei “cura” entre aspas por achá-la uma palavra inadequada para nomear a trajetória percorrida pelo paciente numa relação analítica; prefiro chamá-la de “crescimento” ou “evolução”). Nesta perspectiva a evolução dar-se-á através da diminuição da rigidez do dinamismo; seu afrouxamento permitirá um maior acesso às motivações inconscientes, aumentando as possibilidades de evitar a repetição cega e automática de padrões na interação com a vida e com o outro; o afrouxamento possibilitará também a valorização de elementos já existentes no dinamismo e a entrada de novos elementos com a conseqüente ampliação e flexibilização do dinamismo e ainda, a utilização de outros dinamismos que permanecerão subordinados ao predominante.
Ao deixar-se levar pela corrente dos acontecimentos analíticos, o terapeuta poderá perceber, a partir de sua posição contratransferencial, dois tipos mais gerais de solicitação dos pacientes, agrupáveis em dois amplos conjuntos: o conjunto dos dinamismos básicos e o conjunto dos dinamismos secundários. O conjunto dos dinamismos básicos compreende os dinamismos esquizóide, paranóide e depressivo, pertencendo os demais aos secundários. Nos básicos o terapeuta sente-se colocado na posição de uma Mãe-Primeva, com o poder de Salvar ou Destruir. O paciente relaciona-se com o Terapeuta-Mãe buscando conquistá-lo e/ou mantê-lo conquistado, pois seu objetivo na vida é ter uma Mãe-Fada que lhe assegure a onipotência, permitindo-lhe ou desconsiderar as solicitações da realidade, ou relacionar-se confortavelmente com ela através da Mãe. Sua luta é pela conquista da Mãe; pois assim tudo o mais estará assegurado; nada há que supere o poder da Mãe; acima e além das leis e regras sociais está o poder delegado pela própria Natureza Originária à Mãe-Primeva.
Nos dinamismos secundários agregam-se outras fantasias ao transfundo transferencial anterior. Estamos agora falando dos dinamismos obsessivo, histérico, fóbico e fálico. Diferentemente dos dinamismos básicos, a referência principal não é a conquista da Mãe mas a conquista do Mundo. Para isto o paciente conta com o auxílio do terapeuta, visto no plano da realidade objetiva (plano sintáxico) (Armony, 1978, p. 66) como um técnico detentor de um conhecimento que lhe possibilitará debelar seus sintomas e seu mal-estar. Este mesmo terapeuta, agora na fronteira da realidade fantasmática (plano paratáxico) (Armony, ibid), é percebido como o Representante Autorizado da Sociedade de quem se espera apoio, aprovação e orientação (mágica ou não) em relação aos seus esforços para encontrar um lugar na comunidade dos adultos. Mais um pequeno passo e, mergulhando na “outra cena”, deparamo-nos com o Pai-Onipotente, grande e poderoso palmilhador dos caminhos sociais, mágico conhecedor das regras, leis e malícias que regem as relações humanas. Este Pai-Onipotente tem a função de abrir um espaço social privilegiado para o seu Filho-Protegido, colocando-o no topo do mundo. É neste ponto que surge um paradoxo: só há lugar para uma única pessoa no cume do universo, na cadeira do Imperador; mas este lugar já está preenchido e, por ironia do destino, pelo próprio Terapeuta-Pai, justamente a quem o paciente pede auxílio. Isto cria uma oscilação: enquanto o Terapeuta-Pai é sentido como um aliado que apóia-aprova, funciona a unidade Pai-Dadivoso/Filho-Amado e não há conflito; quando o analista intervém afirmando a sua identidade e diferenciando-se das propostas do paciente, passa a ser sentido como o Grande Castrador, aquele que defende o seu lugar de Rei contra os assédios de uma Criança desejosa de se tornar Adulto-Onipotente tomando o lugar do Terapeuta-Pai. Este dinamismo, embora claramente pertencente aos secundários por sua filiação ao social, tem uma especificidade que talvez até justificasse uma categoria à parte. Mas isso será visto mais adiante na seção dos dinamismos secundários.

Os dinamismos básicos

Nestes dinamismos a pessoa está em estreito contacto com os núcleos mais primitivos de seu ser, núcleos protegidos das identificações resultantes da necessidade de convivência com o social e da fatalidade de uma produção para a sobrevivência. Mesmo imersa no social a pessoa impede que seus regulamentos e obrigatoriedades invadam o seu centro egóico, colocando a salvo as suas vivências identificatórias mais primárias. Sua vida psíquica pode até comportar os mandatos sociais, fixando-os na memória e utilizando-os na ação prática; porém, na medida em que não são incorporados ao ego, praticamente não o transformam. É como se o paciente dissesse: “Não deixaria que minha essência se modifique pelo que ‘eles’ pensam e querem; vou conversar a minha pureza, a minha autenticidade”. Esta ‘autenticidade’ está referida às personificações da Mãe. No dinamismo depressivo o paciente relaciona-se intimamente com a Mãe-Boa, no paranóide com a Mãe-Má, e no esquizóide consigo mesmo. Esta última afirmação reclama um esclarecimento: enquanto o depressivo e o paranóide necessitam de figurações externas da Mãe para com elas realizar a simbiose, o esquizóide, depois de estabelecidas e internalizadas as personificações de Mãe-Boa e Mãe-Má, pode prescindir de projetá-las no mundo externo, mantendo-se afetivamente desligado e solitário. Este desligamento afetivo permite-lhe uma fina crítica das convenções gregárias, uma aguda percepção das inadequações do social em relação às carências humanas. Permanece, porém, latente o desejo de realizar uma simbiose com a personificação da Mãe-Boa; mas isto só ocorrerá se o terapeuta tiver comportamentos e atitudes que conquistem a confiança do esquizóide.
Diferentemente dos esquizóides, depressivos e paranóides não podem se furtar à manutenção de uma simbiose sem sérias conseqüências. O depressivo realiza uma simbiose com a Mãe-Boa o que lhe permite conhecer profundamente a sua vida psíquica; utiliza-se deste conhecimento para tentar manter na cena fantasmática a Mãe-Boa-Idealizada que onipotentemente o protegerá. Conseguido este objetivo, o depressivo descansará no colo do Universo, relaxando-se física e mentalmente, imaginariamente resguardado de todos os perigos. Intimamente familiarizado com os afetos carinhosos é talvez ainda mais sensível e perceptivo aos mínimos movimentos de afastamento e diferenciação da Mãe, vividos como rejeição e abandono cujas conseqüências são o desamparo e o aniquilamento. Se, no remoto horizonte, aponta uma breve e leve aragem de distanciamento, desagrado ou individuação, o depressivo se mobilizará todo no sentido de recativar a Mãe-Terapeuta, conjurando o perigo de rompimento da simbiose. A segurança de uma proteção onipotente deixa-o livre para perceber, sentir e pensar sem maiores impedimentos internos. O que não pode ser sentido é a sua própria agressividade para com a Mãe-Boa-Onipotente, sob o risco de perder a bem-aventurada condição de segurança. O paranóide, por sua vez, encontra-se eternamente ameaçado de ataque e aniquilamento, o que fá-lo viver em tensão permanente. Predomina, soberana, na sua vida psíquica, a personificação da Mãe-Má, a qual é projetada nas diversas pessoas e situações do mundo. Esta projeção assim dirigida para o mundo protege o terapeuta de ser colocado no papel da Mãe-Má. É, porém uma proteção precária, pois na expectativa do paciente pode-se revelar, a qualquer momento, a face oculta do terapeuta, a Mãe-Má que nele se esconde; embora a expectativa seja sentida, seu conteúdo permanece na maior parte do tempo inconsciente. Em virtude da relação simbiótica que realiza com a Mãe-Má, o paranóide possui uma extraordinária intimidade com afetos agressivos. Daí a sua extrema sensibilidade e perspicácia em relação aos mínimos traços inconscientes de hostilidade, depreciação, condenação, etc. das outras pessoas. Quando detecta no terapeuta qualquer longínquo sinal de algum afeto negativo, sente-se ameaçado de destruição e trata de rapidamente recompor a situação anterior, enviando a Mãe-Má para as sombras, onde ela permanecerá à espreita, aguardando uma nova oportunidade de se manifestar.
A ameaça que paira sobre as pessoas quando vivem os dinamismos básicos é aniquilamento. Já nos dinamismos secundários a integridade da personalidade e a prevenção da vida ficam fora de questão; a ameaça se desloca no sentido de castração, entendida aqui como um impedimento para o ingresso na vida adulta. Este ingresso na vida adulta é pretendido, pelo paciente, pela via da onipotência. Levará um tempo de análise para que possa abrir mão desta ilusão.

Os dinamismos secundários

Na verdade não há suficiente homogeneidade nos dinamismos secundários para que possam ser estudados em conjunto, Será preciso separar dos outros três o dinamismo obsessivo, pois embora por sua inserção no social se filie aos dinamismos secundários, apresenta características que tornam necessário seu estudo em separado. Seria talvez até conveniente colocar o dinamismo obsessivo em uma categoria à parte, entre os dinamismos básicos e secundários, porém mais próximo dos segundos.

Examinaremos, em primeiro lugar, os dinamismos fálico, histérico e fóbico. Prefiro começar pelo fálico pois, dos três, é o que mais se presta para evidenciar o transfundo destes dinamismos. Enquanto que no dinamismo histérico e fóbico o olhar do terapeuta fica confundido pelos sintomas, no fálico, a ausência de uma sintomatologia florida permite uma visão mais clara do transfundo dinâmico. O que mais atazana a pessoa fálica é um sentimento de estar sendo impedido de alcançar o lugar adulto a que tem direito. Qualquer revés, qualquer adiamento, qualquer hesitação são sentidos como um deliberado desejo de dificultar ou impedir a sua progressão no mundo adulto. As interpretações que apontam para os seus aspectos infantis despertam nele a sensação de que o terapeuta quer confiná-lo à esfera da infância, impedindo-o de alcançar as posições adultas: estas o terapeuta reservaria para si.
O histérico luta aflitivamente por sua condição adulta passando por cima de seus problemas a tal altitude e tão velozmente que mais parece um pássaro sobrevoando em vôo livre uma região; é este o rápido olhar que o histérico dirige às suas situações de vida; não ‘pousa’ nas suas experiências, não medita sobre elas nem as aprofunda, Suas carências infantis são assim como que levianamente desatendidas, transformando-se em sintomas ou sendo sedutoramente super-representadas; a teatralização aqui tem por finalidade não só conquistar a admiração do outro como também superficializar os afetos --- senti-los plenamente seria deixar-se invadir pela impotência infantil, tornado-se incapaz de lutar e competir. O histérico busca no terapeuta solução para seus sintomas e aprovação-aplauso para o seu modo de luta. O terapeuta, não se deixando envolver pela teatralização histérica, aponta para as dificuldades do paciente, o qual, frustrado em suas expectativas, ameaçado pela firmeza do terapeuta e pelas interpretações endereçadas à infância, projeta nele a personificação do Grande Castrador, aquele que não quer deixá-lo crescer. Esta personificação, até então eclipsada pela do Pai-Aprovador, torna-se dominante; exacerba-se sua competição com o terapeuta, ao qual tentará conquistar, vencer, para depois descartar.

O fóbico concentra e localiza suas ansiedades em situações específicas, transformando-as em fobias. Esta manobra permite-lhe lutar pela sua afirmação social de uma maneira mais efetiva, já que fica menos perturbado pelas suas figuras fantasmáticas persecutórias, confinadas à situação fóbica. Pelo mesmo motivo o terapeuta pode ser vivenciado como o Pai-Benigno, um amigo qualificado que o ajudará a debelar suas fobias. A proposta terapêutica de buscar as motivações inconscientes é por um lapso de termo facilmente aceita, e analista e paciente parecem dois companheiros empenhados em uma investigação. Em algum momento a conjuntura se modifica. O exame das fobias remete a ocorrências referidas à personificação do Pai-Castrador, até então reprimida; surge então a clássica resistência transferencial, sendo esta personificação projetada no terapeuta e iniciando-se uma competição.
Nos três últimos dinamismos estudados alternam-se colaboração e competição. No dinamismo obsessivo que estudaremos a seguir, o aspecto competitivo está eludido; a luta pelo lugar do Pai, onipresente nos três dinamismos anteriores, oculta-se nos desvãos do inconsciente. O desejo primeiro do obsessivo não é obter um lugar privilegiado, mas sim, um lugar seguro no seio da sociedade. Coloca-se pois, como o Filho-Respeitoso-Submisso, reverente acatador e seguidor das leis, que esperará pacientemente a sua vez de se tornar Pai-Onipotente; esta hora poderá concretizar-se ou não; de qualquer forma não poderá ser provocada ou apressada; está determinada pela Ordem Natural das Coisas e um Bom-Filho não tem nada mais a fazer senão aguardá-la e, eventualmente, recebê-la.
Quero reiterar que, a descrição dos dinamismos em sua intimidade acima tentada, só é possível por estar o terapeuta incluindo no campo fantasmático. É a sua presença que possibilita o estabelecimento e funcionamento do dinamismo. O terapeuta, colocando-se em estado de disponibilidade para a identificação, permite que os fantasmas do paciente mobilizem os seus próprios, passando ambos a interagir na cena fantasmática, na dimensão transferencial/contratransferencial. A identificação pode ser homóloga – terapeuta sentindo o mesmo que o paciente, ou complementar – paciente solicitando do analista o desempenho de um papel complementar aos seus medos e necessidades fantasmáticos. Para a estruturação do dinamismo, a identificação complementar é de relevante importância. Nos dinamismos básicos o terapeuta sente-se completamente colocado como a Mãe-Primeva com a função de salvar o seu Filho-Paciente e com o poder de destruí-lo, abandonando-o ou atacando-o. No dinamismo obsessivo o terapeuta sente-se colocado na posição de uma Figura Parental Inafetiva e Exigente que impõe ao Filho-Paciente regras e deveres a serem cumpridos à risca. Nos dinamismos fálico, histérico e fóbico o terapeuta sente-se colocado na posição do Pai-Castrador, aquele que pretende guardar o poder e suas benesses para si. Colocado nestes lugares o terapeuta, a partir deles, pode se aperceber da dinâmica mais fina do jogo interpessoal fantasmático, o que lhe permite penetrar nos meandros do dinamismo em curso. Uma pincelada geral destes dinamismos foi dada neste artigo. Espero, em próximos trabalhos, estudar cada dinamismo de per se justamente através deste método: a contratransferência alogênica, especialmente através da identificação complementar, revelando um campo fantasmático de interação analista-analisando.
O estudo em separado dos dinamismos não deverá porém nos enganar; eles geralmente não se apresentam isolados. Na grande maioria das vezes (senão em todas) eles se superpõem e se interpenetram. São possíveis todas as combinações, independentemente da categoria em que estão colocados. Algumas conjunções são, porém, mais freqüentes. Entre estas está a conjunção de um dinamismo básico com um dinamismo secundário, geralmente predominando o secundário. Via de regra a predominância de um dinamismo é durável; é, geralmente, preciso um bom tempo de análise para que dinamismos subordinados ou eclipsados apareçam com clareza, ocupando o lugar de destaque.
Fica claro, pois, que a sistematização por mim realizada tem, acima de tudo, a função de balizamento e transmissão, sem pretender corresponder à ‘verdade’ dos acontecimentos, muito mais pessoal, fluida e complexa do que é possível registrar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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4. BION, W.R. (1962) – “Os elementos da psicanálise”. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1966.
5. FREUD, S. (1895) – “Projeto para uma psicologia cientifica”. Edição Standard Brasileira, Vo.. 1, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1977.
6- -------------------------------- - Carta de 20/10/1895, citado por Assoun P.L., obra citada, p.143.
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8. --------------------------- (1917) – “Luto e melancolia”. Ibid. V.14, 1974.
9. LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.B. (1967) – “Vocabulário de Psicanálise”. Editora Livraria Martins Fontes, Lisboa, 1970.
10. SULLIVAN, H.S. (1953) – “La teoria interpersonal de la psiquiatria”. Editora Psique, Buenos Aires, 1964.
11. --------------------------------------------  “Estudios cínicos de psiquiatria”. Ibid, 1973.
12. WAELDER, R. (1962) – “Psychoanalysis, scientific method abd philosophy”.  IN: “Psychoanalysis: observation, theory, application”. Ed. S.A. Guttman. International University Press, 1976, p. 248-274.
13. WINNICOTT, D.W. (1956) – “Preocupação materna primária”. In “Da pediatria à psicanálise”. Livraria Francisco Alves Editora S.A.. Rio de Janeiro, 1982.     


DINAMISMO DEPRESSIVO

DINAMISMO  DEPRESSIVO [1]
               Nahman Armony
           
O dinamismo depressivo pertence aos dinamismos básicos. Seu desenho dinâmico depende da relação fantasmática de duas personificações: a Personificação da Mãe-Boa-Onipotente e a Personificação do Filho-Impotente. O terapeuta, permitindo-se ser colocado pelo analisando na posição de Mãe-Onipotente - complementar à de Filho Impotente -, possibilita o desenvolvimento do dinamismo depressivo.
            Esta configuração deriva de um processo de identificações complementares entre analista e analisando. Para que tais identificações complementares possam ocorrer é preciso que o analista coloque-se em um estado de “disponibilidade para a identificação”. Neste estado o analista terá os seus fantasmas ativados pela atividade fantasmática do analisando, criando-se assim um dinamismo cujos componentes fantasmáticos em interação, se suficientemente desenvolvidos, unirão analista e analisando em uma relação simbiótica de talhe depressivo. Será uma relação simbiótica de matiz afetuoso. O analisando depressivo está finamente e profundamente familiarizado com os aspectos amorosos, carinhosos, acolhedores do proceder humano, sendo capaz de facilmente detectá-los e de manipulá-los, assim como se encontra extraordinariamente atento aos mínimos sinais de afastamento e perda deste clima, esforçando-se então, com toda a sua engenhosidade, em evitar o afastamento, ou recuperar o clima.
            É preciso esclarecer que “depressivo” aqui não é sintoma, mas um modo complexo e característico de relacionamento que, quando bem encaixado e azeitado, não revela a face depressiva do dinamismo, o que só vem a ocorrer quando a díade Mãe-Boa/Filho-Bom ameaça transformar-se em Mãe-Boa/Filho-Mau. O termo depressivo justifica-se por ser este sintoma o mais patente quando há uma tormenta no dinamismo.
            A díade fantasmática Mãe-Boa/Filho-Bom transforma-se em Mãe-Boa/Filho-Mau quando surge algum contratempo na relação analista/analisando. A tendência é atribuir o erro, a incompetência, a maldade, os atributos negativos ao pólo Filho, deixando a bondade, o acerto,  e todas as qualidades positivas na Mãe. A Mãe deverá ocupar um lugar inatingível e deverá passar incólume, sem mancha, por todas as crises. Desta maneira, o analisando em dinamismo depressivo jamais dirá que a culpa ou o erro foi da Mãe-Analista, mas sempre atribuirá a culpa e erro do que quer que aconteça a si mesmo, pois ele é o Errado e o Mau, enquanto que a Mãe é sempre a Certa e a Bondosa. Esta é uma maneira de manter uma idealização positiva da Mãe. Quando, porém o encaixe dinâmico mantém-se constante em seu funcionamento, quando Mãe e Filho vivem uma simbiose positiva sem acidentes, então a vivência diádica é de uma relação Mãe-Boa/Filho-Bom. A relação Mãe-Boa/Filho-Mau surge na vigência de frustração, fracasso ou desentendimento. Para efeito de comparação é interessante ter presente que no dinamismo paranóide a frustração sofrida na relação com o Analista-Mãe criará uma outra relação dual fantasmática; neste dinamismo a díade que surge a partir da frustração é Mãe-Má/Filho-Bom.
            A relação própria do dinamismo depressivo, diferentemente do dinamismo esquizóide, não é uma relação de fusão, na qual as individualidades se misturariam tornando-se indistinguíveis; é, sim, uma relação simbiótica de complementaridade. Dois diferentes segmentos unidos por identificações, projeções, empatia, configuram uma “unidade dual”. Um único ente formado por dois corpos; dois psiquismos circundados por um limite comum realizando trocas psíquicas entre si através das fronteiras internas que os separa. Diante do mundo externo a vivência é de  um psiquismo solidário em seu funcionamento e em suas trocas com o exterior. Como se o outro fosse uma dependência do si-mesmo, assim como o braço é parte de um corpo maior. Uma ilustração desta simbiose: uma analisanda de minha clínica, de dinâmica depressiva, sonhava em conviver simbioticamente com o seu marido à maneira de seu relacionamento com o automóvel: seu carro, segundo ela respondia docilmente ao gradiente de suas solicitações, dentro de sua mais exata expectativa; concomitantemente ela se adaptava perfeitamente às peculiaridades do carro para justo poder controlá-lo.
            Os fantasmas de um analisando em funcionamento depressivo solicitam do terapeuta, preferencialmente, fantasmas complementares. É, portanto, especialmente através da identificação complementar que o psicanalista entra na intimidade deste dinamismo. O paciente, pressionado pelo seu padrão dinâmico, comporta-se como Filho-Bom-Impotente, despertando no psicanalista a Personificação da Mãe-Boa-Onipotente-Protetora. O aspecto relacional fantasmático mais óbvio destas duas personificações é uma proteção absoluta oferecida pela Mãe e uma submissão total do Filho. O suporte desta obviedade é a ilusão de que esta seria a única maneira de o Analista-Mãe aceitar o Analisando-Filho; uma ilusão vivenciada em seus anteriores relacionamentos significativos e incorporada ao seu modo de ser. A Mãe exigiria ser reconhecida como onipotente e para isto precisaria da impotência e aquiescência do Filho. Tudo se passaria como se a onipotência da Mãe se nutrisse da desvalorização e achatamento do Filho. Este manteria a situação para não perder a remota e cômoda fantasia de uma Proteção Absoluta e Incondicional. A partir deste seguro, protetor e confortável colo imaginário, o analisando, em um estado de relaxamento advindo da liberação das tensões decorrentes das peripécias da existência, dirige um olhar livre e descompromissado para o espetáculo da vida e das relações humanas, podendo percebê-las com grande acuidade, já que não está perturbado por temores ligados à sua inserção produtiva no mundo.  
            Como estamos em uma relação simbiótica, as vivências de onipotência, perfeição narcísica, segurança absoluta, etc. são compartilhadas pelos dois membros da díade. Esta situação, aparentemente confortável, logo revelará suas inconveniências. A Personificação da Mãe apresentará outras exigências além de seu reconhecimento como Boa e Onipotente. Seu Filho deverá ter um procedimento não menos que perfeito, sendo que a perfeição é tudo aquilo que a Personificação Materna determinar. O não cumprimento da lei materna levaria à perda da Mãe e, portanto à perda da proteção onipotente; o Filho banido, lançado a um mundo cruel e sem mercê, ficaria agora exposto, vulnerável, sujeito aos seus golpes.
            Talvez o recurso mais poderoso para a manutenção desta situação dinâmica seja a evitação da agressividade. A manifestação de raiva é vivida como podendo destruir a Personificação Onipotente e por consequência, destruir o próprio Filho-analisando em virtude do abandono a que ficaria relegado. Para evitar esta situação o analisando ou inibe a sua raiva ou muda a rota de sua agressão, desviando-a do analista e dirigindo-a contra si mesmo, tornando-se então culpado, e de tal forma se achatando que suas forças se esvaem, impossibilitando-se então de atacar a Personificação da Mãe.
            Existe aqui uma aglutinação inconsciente cuja experiência/esclarecimento tem um notável efeito liberador: o analisando confunde a destruição da Personificação Materna Onipotente com a destruição do próprio analista, com a destruição da relação e, consequentemente, com sua própria destruição. Ele não se dá conta de estar apenas atacando a Personificação Onipotente que, uma vez destituída, deixará surgir um analista humano. Mesmo quando o analisando já tem condições de ter tal percepção, teme que o analista, reduzido à condição de humano, não possa mais ajudá-lo; no que, aliás, ele tem razão, pois a ajuda esperada é da ordem da onipotência. É preciso um extenso percurso, ao longo do qual várias séries fantasmáticas entrelaçadas são, aos poucos,  desanuviadas, esclarecidas, desemaranhadas, agenciadas, articuladas, para que o analisando possa encarar sem angústia excessiva a desidealização e consequente humanidade do analista, o que acontecerá quando ele puder acreditar que a onipotência não é o prelúdio da impotência, mas sim de uma potência real do analista, capaz então de ajudá-lo de uma outra maneira que não onipotente - uma maneira potente.
            A desidealização do analista dará, pois, espaço a um outro tipo de relação, onde o reconhecimento da realidade do outro atenuará a intensidade do funcionamento dos fantasmas, permitindo que o analisando se aparte de seu dinamismo, além de propiciar o acréscimo de outras modalidades de funcionamento, aumentando suas potencialidades vivenciais. É preciso, porém, manter em mente que, enquanto o analisando está mergulhado no dinamismo depressivo, é-lhe inconcebível não só a possibilidade, mas até a existência de um outro tipo de relação que não a simbiótica depressiva.
            Este núcleo dinâmico da relação, constituído pela díade Mãe-Onipotente e Filho-Impotente e basicamente mantida por inibição e redirecionamento da agressividade, é protegido por controles inconscientes.  A sedução é um desses recursos.
            Mais caracteristicamente, trata-se de uma sedução infantil. O analisando aloca-se na posição de incapaz e desvalido. Seu comportamento é o de uma criança pequena. Ele se movimenta de um jeito tão solicitador de abrigo, de uma maneira tão comoventemente desprotegida, com um tal ar de desamparo que faz surgir no analista sentimentos materno-protetores-onipotentes.
            Outra forma de sedução é inflar a autoestima do terapeuta, atribuindo-lhe uma capacidade e sabedoria divinas diante das quais ele, analisando, pouco sabe e pouco pode. Nada mais a fazer senão concordar com criatura tão sábia e maravilhosa. Nada de discordar ou de se opor, pois isto seria uma blasfêmia, um vero crime de lesa-majestade.
            O analisando pode também recorrer à sedução intelectual, esforçando-se por atender aos desejos do analista de um bom trabalho analítico pleno de interpretações e elaborações interessantes e produtivas.
            Uma forma mais primitiva de controle da relação é o ataque ao próprio corpo que, sendo ao mesmo tempo o corpo da Mãe, mobiliza-A duplamente. O depressivo, desgostoso com a Mãe e temendo ser abandonado por ela, oferece o seu corpo às agressões externas e internas. A Mãe, alarmada com esse ataque ao suporte da vida, torna-se mais minudente, filigranada e sutilmente atenta às necessidades do Filho. Embora estejamos falando de controle, o que nos levaria a pensar em manipulação, no caso presente estaríamos diante não tanto de uma manipulação, mas sim de uma mobilização. É importante diferenciar manipulação de mobilização, pois isto influenciará a conduta terapêutica. O ataque ao corpo poderá ser um grito desesperado de quem, tendo já tudo perdido, está prestes a desistir da vida, e que dela desistirá se não for acudido. É dentro desta perspectiva vivencial que o analista deverá dar o seu encaminhamento à terapia. Estamos aqui distantes da situação em que o analisando tenta fazer o terapeuta sentir-se culpado para melhor controlá-lo, para conseguir aquele extra de atenção que a criança voraz dentro dela almeja.
            Porém, fazer a distinção entre essas duas situações não é tão simples. Podemos aqui imaginar a seguinte sequencia: o paciente procura obter privilégios através de manipulações; não conseguindo, vai aos poucos perdendo o sentimento de que o analista é a Mãe-Boa-Onipotente que o ama e protege; chega um momento em que este sentimento de perda é tão forte que ele duvida do amor desta Mãe - estamos aqui perto do ponto de ruptura, pois mais um pouco de solicitação não atendida e ele se sentirá abandonado e desamparado. A Mãe passa a ser vivenciada ou como Aquela que deixou de protegê-lo ou, pior, como Aquela que o abandonou, deixando-o entregue à própria sorte. A Mãe que era dádiva inconteste, embora potencialmente abandonadora, confirma suas piores expectativas inconscientes, passando a ser não mais uma certeza positiva pontilhada de dúvidas, mas uma terrorífica certeza negativa com pálidos laivos de esperança. O que era jogo transforma-se, neste momento, em procedimento de sobrevivência. O paciente ultrapassa a zona de manipulação - área de testes e ganhos secundários - e passa para a área de mobilização, região de fatos básicos: vida e morte, sanidade e loucura, abandono e socorro. A partir deste momento a vida só valerá a pena se reaparecer a Mãe-Boa.  
            O ataque ao corpo é um ponto de encruzilhada. Se a Mãe-Boa reaparecer repetidamente nas horas de desamparo absoluto, sua presença afetiva acabará por criar naquele ser periodicamente inerme e desesperado uma sólida fantasia inconsciente de uma unidade dual consistente e confiável, alterando as intensidades em jogo no dinamismo; o desenvolvimento tenderá a se fazer no sentido de uma maior tranquilidade anímica, dotando a vida de benignidade. Se a Mãe faltar nos momentos de sua máxima aflição, o analisando poderá fechar o caminho para o seu desespero, ou poderá a ele sucumbir, ou ainda, poderá encontrar forças no âmago de si mesmo para sobreviver e se recuperar da experiência de abandono radical; neste caso a fantasia de falta se instituirá e o analisando tenderá a ser mais combativo, experimentando e vivendo o mundo de uma forma mais dura, competitiva, ansiosa.
            Diante da perspectiva de aparição de um desespero radical, o analista poderá adotar uma atitude mais cautelosa. Ficará então diante do dilema - acolher o dinamismo versus apontar para o dinamismo (apontar para o dinamismo provoca o seu fracasso). É um dilema cujas duas faces podem ser assim colocadas: ao ser continente para o Filho-Impotente o analista poderá estar fragilizando-o; mas se revelar o dinamismo poderá ser sentido como a Mãe-Abandonadora. O analista poderá equilibrar-se no fio deste dilema conduzindo-se de maneira a não fragilizar em demasia ou em definitivo o analisando, nem atirá-lo de supetão em um terrífico abandono.
            Vou agora me referir a dois aspectos da terapia do dinamismo depressivo. Do conjunto “dinamismo depressivo” isolarei dois aspectos: a relação dinâmica valorização/desvalorização e a relação dinâmica agressão/culpa.
            Comecemos pelo aspecto valorização/desvalorização. O analisando em estado depressivo está permanentemente drenando e destruindo a sua auto-estima; desta maneira suas conquistas se esvaziam e nada ou muito pouco acrescentam à sua autoestima; mesmo este pouco tende a ser destruído por um  triturador interno, pelas agressões que a Mãe Internalizada efetua contra o Filho-Atrevido. Trata-se de uma Mãe que ataca para mantê-lo fraco e dependente. O apontamento constante e consistente de tudo o que seja uma verdadeira conquista do analisando, ajuda-o a alterar esta relação fantasmática. Não é, porém, um processo fácil. O analisando, aprisionado no dinamismo depressivo, ignorará ou expelirá a intervenção valorizadora do analista que poderá, então, sentir-se desestimulado de prosseguir nesta linha. Porém a desatenção e o protesto do analisando não significam que a intervenção foi inútil. Ao contrário, a insistência nesta prática, em algum momento, influenciará no sentido de uma modificação da imago de Mãe que ele possui.
            Esta atitude do analista não deve ser confundida com a noção de “reforço do ego” no sentido clássico. O analista não se preocupa em “dar força” ao analisando; a idéia de “dar força” pertence a um estado dicotômico em que o analista, colocando-se do lado de fora da simbiose, dirige-se ao ego do analisando buscando levantar seu ânimo. Na estratégia que estou propondo pretende-se ir para além do ego; pretende-se mexer no dinamismo inconsciente, nas personificações básicas. A Mãe-que-não-deseja-o-crescimento deverá ser eclipsada por uma Mãe-que-se-regogiza-com-o-crescimento; a Mãe-que-deseja-manter-a-relação-onipotência/impotência cederá o seu lugar a uma Mãe-que-pretende/aceita-ser-desidealizada. Esta estratégia pede do analista um comportamento covivencial e não um comportamento interpretativo. O apontamento prazeroso das vitórias do analisando é um comportamento covivencial e não interpretativo. As palavras são usadas não para desvelar o oculto, mas para modificar as relações intersubjetivas; a palavra aqui é parte de uma atitude global e é a expressão verbal desta atitude estando inteiramente integrada a ela.
            A vertente raiva/culpa aparece quando a frustração transmuta a relação Mãe-Boa/Filho-Bom em Mãe-Boa/Filho-Mau. A raiva que brota no analisando a partir da frustração surgida na relação com o Analista-Mãe, volta-se contra si mesmo. Para afrouxar ou “abrir” esta dinâmica é preciso que o analista cuide de não inibir as primeiras manifestações de agressividade do analisando que em geral se manifestam quase imperceptivelmente, sob forma de irritação ou impaciência; o mínimo gesto proibitivo poderá provocar um recolhimento da agressividade do analisando; a interpretação dos primeiros e tímidos desafios e investidas poderá ser sentida como crítica condenatória, produzindo um efeito inibitório. Se o terapeuta é bem sucedido nestes cuidados, finalmente poderá se desenvolver uma vigorosa agressividade dirigida à Mãe-Boa-Onipotente, desidealizando-a, e abrindo caminho para um novo tipo de relação dinâmica em que o “outro” já pode ser percebido como um ser humano com problemas e dificuldades.
            Uma repetida ausência de socorro afetivo nos momentos de fantasia de abandono radical poderá levar o analisando a sobrepor um dinamismo secundário ao dinamismo depressivo, ocultando-o, mas continuando sujeito à sua influência. Esta composição permitirá ao analisando entrar no social manquejando, sustentado pelo dinamismo secundário e embaraçado pelo dinamismo básico reprimido. Um resultado diferente é obtido quando pela via da covivência consegue-se “abrir” o dinamismo depressivo, sem reprimi-lo. Neste caso, a conquista de um lugar social faz-se sem a negação daqueles sentimentos e valores ligados à Personificação da Mãe, mas mediante a harmonização destas vivências mais primitivas a um contexto mais amplo e complexo.
            Há uma radicalidade na minha escrita, nas minhas considerações clínicas. É uma radicalidade que fala de um ideal utópico criado a partir de vetores que a própria terapia psicanalítica faz surgir. São, porém, estas utopias, é este pensamento radical que permite melhor acompanhar as tendências que se formam na relação analista/analisando.  




1 Versão modificada do trabalho “Aspectos do dinamismo depressivo”apresentado no I Forum Brasileiro de Psicanálise, em 1990.

DINAMISMO PARANÓIDE

               DINAMISMO  PARANÓIDE                                                                                                                                                                                                                                          
                                   Nahman Armony


Uma dinâmica e uma estratégia a partir da "disponibilidade para a identificação".


A posição básica de quem pretenda apreender o dinamismo fantasmático que pode vir a se estabelecer entre terapeuta e cliente é colocar-se sensível e aberto às solicitações do paciente. Isto é o mesmo que dizer que o terapeuta se encontra em uma peculiar posição contratransferencial à qual denominei de "disponibilidade para a identificação". Nesta condição, identificações homólogas e complementares têm lugar provocando uma relação estreita, íntima, familiar, uma relação de interioridade entre analista e analisando. Vimos que, no caso do dinamismo depressivo, predominam as identificações complementares (exp.: Mãe-Onipotente/Filho-Impotente) entre os membros da díada terapêutica; em se tratando do dinamismo paranóide prevalece na relação analista/analisando  a identificação homóloga. Logo veremos porquê.  
     Antes de prosseguir  examinando  o dinamismo  que se cria  entre analista e analisando na situação paranóide, uma breve palavra sobre uma característica básica do paranóide. Enquanto no dinamismo depressivo as relações subjetivas se passam entre Filho-Bom e Mãe-Boa, no paranóide a dinâmica interna predominante é entre Filho-Bom e Mãe-Má. (Nota: durante muito tempo o analisando paranóide vivenciará o psicanalista como o seu duplo; só mais tarde, e por períodos limitados poderá ser o terapeuta vivido como Mãe-Má sem quebra da relação).  Isto pode soar estranho, mas espero que aos poucos fique esclarecido. No momento esta formulação nos serve para indicar a seguinte característica do paranóide: ele é bom enquanto o mundo é mau; se ele sofre um agravo ou uma frustração nenhuma parcela de responsabilidade jamais recai sobre ele; é sempre o outro o culpado; ele próprio é, a priori, inocente, isento de culpa. Dada a sua intimidade com os aspectos maus do desejo humano, ou, em outras palavras, dada a sua intimidade com a Personificação-da-Mãe-Má é o paranóide especialmente perceptivo e sensível às manifestações ditas negativas das pessoas - raiva, inveja, irritação, desprezo, desvalorização/sentimentos de superioridade -  sendo capaz de detectar traços mínimos destes sentimentos, inflacionando-os e transformando-os em características quase-únicas, quase-absolutas dos seres humanos, ficando cego a outras manifestações de humanidade, mesmo quando claramente presentes. A Personificação-da-Mãe-Má predomina esmagadoramente sobre a Personificação-da-Mãe-Boa. O mundo é então visto como mau e persecutório. Estabelece-se o que Sullivan chama de integração hostil com o outro. É o contrário do que ocorre com o dinamismo depressivo onde o analisando, partilhando sua intimidade não com a Mãe-Má, mas sim com a Mãe-Boa, é especialmente sensível aos sutis sinais de acolhimento e abandono maternal.
O paranóide não pode ficar sozinho consigo mesmo, pois nele existe um núcleo de ódio insuportável, um núcleo de rancor que tem de ser direcionado para fora. Ele necessita de figuras externas para realizar sua integração hostil. O estar sozinho para o paranóide é uma situação desesperadora. Nisto ele se assemelha ao depressivo que também necessita vitalmente de se relacionar, não com a Personificação-Má mas com a Boa, e difere do  esquizóide que tem a capacidade de ficar sozinho com  suas Personificação-Má e Boa internalizadas e relativamente dissociadas de figuras externas. Enquanto os dinamismos paranóide e depressivo, são, por assim dizer, quase continuamente sociáveis, necessitando dirigir-se sem cessar a figuras fantasmáticas projetadas no mundo (esteja este mundo presente ou não), o esquizóide é um dinamismo que suporta muito mais a solidão, no sentido de não necessitar  manter uma continuidade de projeção sobre pessoas significativas.
Com esta introdução podemos voltar à situação clínica. Lá estão paciente e terapeuta um diante do outro. Qual a solicitação que o paciente faz ao terapeuta? O que o terapeuta sente ao se colocar em um estado de disponibilidade para a identificação?
O paranóide deseja e necessita que o psicanalista o reconheça como inocente, bem-intencionado, honesto, sincero, verdadeiro, limpo, dotado de extraordinária boa-vontade. Deseja e necessita que o núcleo reprimido de ódio, rancor, inveja, competitividade, desvalorização, hostilidade que o constitui seja negado pelo terapeuta assim como ele próprio o nega. Precisa que o analista aceite suas justificativas quando, ultrapassando quaisquer de seus sentimentos negativos a barreira da auto-percepção, os atribui a ataques externos; ele deve continuar limpo, bom e puro e tudo o que porventura nele apareça que não seja bondade é uma reação a agressões que vêm de fora.
Pressionado pelos seus sentimentos inconscientes seria de se esperar que o paranóide, negando-os, projetasse-os na figura significativa mais próxima: o terapeuta. Nestas circunstâncias só se poderia esperar do analista assim transformado em Mãe-Má, inveja, agressão, maldade, má-vontade. Mas, não. O paranóide reserva ao terapeuta uma missão especial: ser o seu duplo. Esta é uma feliz ocorrência que permitirá o estabelecimento de uma identificação homóloga permitindo que a relação analítica se passe em clave covivencial, necessária ao seu tratamento.

Se o psicanalista permanecer silente, ouvindo e compreendendo - não concordando com a dinâmica interfantasmática nem com as construções deliróides, mas aceitando-as - aos poucos, na medida em que trocas sutis em um nível não-verbal se realizam,  o paciente fará uma identificação projetiva com o terapeuta, atribuindo a ele a mesma dinâmica que o move, fazendo dele o seu espelho. O psicanalista torna-se um homólogo seu, com o mesmo núcleo ressentido e rancoroso, com os mesmos mecanismos de negação e projeção, com a mesma concepção de mundo agressivo, ameaçador e persecutório. Realiza-se assim uma aliança, uma espécie de "folie a deux", onde terapeuta e cliente reconhecem-se mutuamente inocentes e de boa-fé diante de um mundo mau e persecutório. "Dois contra o mundo", ou melhor, "o mundo contra dois", seria  o mote desta relação.  Estabelecida a identificação homóloga, consolida-se a transferência e o psicanalista torna-se figura indispensável (quase) na vida do paciente. O psicanalista tem agora, digamos assim, uma margem de segurança para intervir verbalmente, mas deverá fazê-lo com extremo cuidado. A relação homóloga, tributária da díade Mãe-Boa/Filho-Bom é sobremaneira lábil e facilmente se transforma em Mãe-Má/Filho-Bom. (Aproveitemos para recordar que no dinamismo depressivo, quando uma frustração imposta pela Mãe-Analista ameaça desfazer a relação Mãe-Boa/Filho Bom o que surge é uma interação fantasmática Mãe-Boa/Filho Mau). Mas, voltemos ao paranóide. O fantasiado ou magnificado núcleo rancoroso do terapeuta dirigido para o mundo poderia voltar-se contra ele, paciente. Defende-se desta possibilidade por uma extrema sensibilidade às manifestações do analista, especialmente àquelas que lhe pareçam ter ou que tenham um laivo de agressividade, depreciação e crítica. Tendo a Personificação-Boa um aspecto tão precário, a ponto de, a qualquer momento poder desaparecer para dar lugar à Personificação-Má, o paciente mantém-se hipervigil em relação ao terapeuta, exercendo sobre ele um controle minucioso e constante, extremamente atento às expressões faciais, tonalidade de voz,  construção verbal, manifestações corporais, de modo a poder surpreender, à grande distância, o aparecimento da Personificação-Má. À ameaça de aparecimento desta Personificação o paciente desensarilha suas armas defensivas, mobiliza sua capacidade de controle sobre a conduta do terapeuta. O modo mais característico do paranóide evitar o aparecimento desta Personificação é o estabelecimento do que chamei de acordo de cavalheiros: "não fale de minhas mazelas que não falarei das suas". A grande intimidade do paciente com os aspectos negativos do ser humano torna-o extraordinariamente sensível aos aspectos hostis e problemáticos do terapeuta. Alcança, com precisão, os "pontos fracos" do analista: o que gostaria de não ter, não ser, não ver revelado. Ao se sentir ameaçado chantegeia-o dando "dicas" de que "está por dentro" de suas fraquezas e dificuldades e que delas falará se o terapeuta ousar falar das suas. Com isto espera brecar o trabalho analítico pois, dentro de sua fantasia de espelho, de identificação homóloga, imagina que o terapeuta funciona exatamente como ele, e que se sentirá tão ameaçado quanto ele próprio com a revelação de suas dificuldades. É onde começa a perder a batalha e a ganhar a cura, pois ao contrário do esperado, o psicanalista irá admitir as suas fraquezas, colocando o analisando em um dilema que será o seu  Rubicão. Este é um dos lugares em que o futuro da terapia se decide, pois a dilaceração em que o terapeuta o coloca é decisiva. Se até aquele ponto a terapia pode ser vivida de uma maneira não demasiadamente tumultuada agora se impõe uma situação de opção em que, qualquer que seja a decisão haverá choro e ranger de dentes. Estamos agora em plena pauta covivencial.
Façamos um rápido retrospecto desta primeira fase da terapia, o que nos dará o ensejo de, ampliando-a, preencher algumas lacunas.
A primeira fase da terapia de um paranóide, aquela em que o analista ainda não se tornou indispensável para o cliente, em que a identificação projetiva homóloga ainda não está consolidada, caracteriza-se pela ojeriza do paciente em relação a qualquer contribuição verbal do terapeuta que não seja de concordância e apoio. A interpretação de suas dificuldades, o apontamento de seu núcleo desvalorizado e ressentido é experienciado como um ataque maldoso e destrutivo; esta reação é, na verdade, uma defesa contra uma ameaça à organização de sua personalidade. Precisando manter uma parte tão grande de seu psiquismo sob repressão, suas possibilidades de intimidade se empobrecem, ficando impedido de viver importantes experiências interpessoais e intersubjetivas. Sua familiaridade com o outro gira em torno da constelação da Personificação-Má, pouco conhecendo dos aspectos de carinho, cuidado e acolhimento incondicional (aspectos estes extraordinariamente familiares ao analisando em dinamismo depressivo). Poderíamos assim dizer, que seu contacto com o outro, e portanto com o terapeuta, está amputado. Não se toca no núcleo desvalorizado e rancoroso; mantém-se uma "admiração" mútua, um reconhecimento mútuo, e o mundo mau que não os compreende e os ataca, une-os quase que em uma espécie de cruzada.
Aos poucos, a presença de outra pessoa que o compreende, que não o critica, promove um relaxamento na tensão contínua em que o paranóide vive. O apoio, a aprovação (fantasiada), a presença constante, o reconhecimento do terapeuta faz dele uma figura da qual não mais quer prescindir. Neste momento o terapeuta começa a ensaiar, muito cuidadosamente, suas interpretações.
Por mais cuidadoso que o terapeuta seja, a sensitividade do paranóide o fará reagir a certas colocações (aproximações) suas. Não podemos também ignorar que a arrogância, a onipotência, a hostilidade, a competitividade do paciente têm o poder de provocar reações inconscientes no analista que poderão se manifestar, de maneira sutil, na forma de interpretar. A intervenção verbal do analista continua problemática, mas já agora apresenta um dilema para o paciente. Ele deseja um terapeuta  onipotente, sem falhas, sem hostilidade, um terapeuta que seja um perfeito espelho de seu "eu" imaginado; e o terapeuta está deixando de sê-lo. Mas, neste ponto da relação, o analisando não pode simplesmente se descartar daquela pessoa que se tornou tão importante para si. E aí se encontra seu dilema: aceita ou não a "fraqueza" do terapeuta? Mantém a identificação homóloga ou dele se diferencia? Coloca-o no rol dos inimigos ou o mantém como amigo? Transforma-o ou não em Mãe-Má?
A este dilema do paciente corresponde um dilema do analista. Se se relaxa a ponto de permitir que se insinuem na sua fala e no seu comportamento as suas "fraquezas" e "deficiências" arrisca-se a perder o respeito do cliente, que passará a desdenhá-lo, olhando-o do alto de uma superioridade onipotente; na pior das hipóteses o paciente nem mais estará lá para mostrar seu desdém. Se mantém o comportamento interpretativo reforça a fantasia de onipotência de si mesmo e, por identificação homóloga, do paciente. É preciso que o analista revele seus "defeitos" para que o analisando comece a aceitar os seus próprios, conformando-se em abandonar a sua própria onipotência para não perder o respeito pelo analista, o que significa perder o analista, perder o seu duplo, perder a si mesmo.  Mas tal desvelamento deverá ser feito em doses homeopáticas, dentro de um "timing" cuidadoso.
Aqui, cabe uma advertência. O analista não "resolve" mostrar as suas "fraquezas" de propósito. Este é um processo que naturalmente acontece na medida em que a dinâmica da relação se transforma. O analista naturalmente se coloca no início da relação de uma maneira e, naturalmente, com a evolução da relação, coloca-se de outra. Podemos dizer que há um relaxamento natural na qualidade e na quantidade de vigilância automática que o analista exerce sobre seu próprio comportamento. Numa tentativa de melhor me fazer compreender, farei uma analogia. Em uma festa formal, em que, por exemplo, exige-se "traje completo", naturalmente nós nos comportamos diferentemente que entre amigos em um bar e diferentemente de como nos comportamos na intimidade de nossas casas. Não depende de uma decisão consciente, mas de uma adequação natural e automática à situação. O mesmo ocorre na terapia quando, colocando-nos permeáveis à situação psíquica interna do paciente, mantendo nossa disponibilidade para a identificação, vamos mudando nosso comportamento sintonizados com as transformações que vão ocorrendo no paciente.
Uma vez admitida a "fraqueza" e portanto franqueado minimamente que seja, o núcleo desvalorizado, torna-se mais viável o paciente revelar o seu rancor, os seus sentimentos negativos em relação a figuras significativas que até então tinham sido preservadas, incluindo-se aí o psicanalista. Pode ocorrer então uma verdadeira catarse em que todo o ódio, rancor e ressentimento acumulado de uma vida é lançado em cima do terapeuta. A partir daí, tornam-se possíveis as intervenções verbais, as interpretações; houve uma ruptura do dinamismo paranóide, criando-se uma brecha pela qual penetram as interpretações e por onde se insinuam outros modos de relacionamento, transformando, nos casos mais felizes, um círculo vicioso fechado e odioso em um movimento espiralado de caráter mais aberto e benigno, um movimento que se empenha em escapar da atração exercida pelo automatismo paranóide.
Esta apresentação esquemática é um precipitado de numerosas experiências vividas com diversos pacientes; evidentemente, na situação concreta da sessão analítica os acontecimentos são infinitamente menos cristalinos, mais labirínticos, mais confusos, mais complexos; não existem dinamismos puros e nem todos os acontecimentos intersubjetivos e interpessoais podem ser colocados em palavras.
A abstração "dinamismo paranóide" é uma síntese de experiências vividas, síntese em que os percursos mais importantes do dinamismo são acentuados até o ponto de uma quase caricatura. Com isto obtemos um discurso que não é nem uma teoria metapsicológica, nem uma abordagem singular, mas uma abstração em nível de "teoria clínica".