TEMPOS
DE DICOTOMIA
O título parece
distante da vida real. No entanto ele é uma poderosa referência aos dias de
hoje, indo desde os salões suntuosos que abrigam diversas categorias de milionários
até o mais modesto barracão, o casebre mais pobre, a calçada mais fria das
pessoas carentes e mendigas. Aqui já temos uma inicial dicotomia:
multimilionários e pobres numa relação de opressão/submissão. Logo veremos que
a dicotomia apresenta várias faces e tanto pode se sustentar em estado de instabilidade
estável, como pode se desequilibrar provocando dolorosas separações, desfazendo
famílias, destruindo amizades. O perigo de destruição está sempre presente,
pois estamos lidando com uma estrutura raciopsicossomática atrativa, capaz de dominar
mentes e corações de um sem número de pessoas. Por que é atrativa? É necessário
ao ser humano, quando bebê, ter a experiência de onipotência que em seus
inícios é pura subjetividade, pura fantasia. Em condições de uma boa maternagem
e paternagem aos poucos o bebê e depois a criança percebe seus limites,
mantendo a onipotência como fundo de quintal, lugar propicio a atenuação da
ansiedade e ao desarmamento das defesas com a consequente ascensão da
realização objetiva da fantasia. Em indivíduos predispostos a dicotomia o leva
de volta aos áureos tempos em que era Sua Majestade, o Bebê.
Conheci a importância
do termo dicotomia frequentando a ECO (Escola de Comunicação da U.F.R.J.). A
dicotomia corpo/alma era amplamente discutida quando se falava de Platão (0bras Completas). Em resumo Platão dizia que aqueles
que investigassem a própria alma poderiam vir a conhecer a Verdade (episteme) e
ter uma vida virtuosa, no polo oposto daqueles que, despreocupados com a
Verdade, eram enganados pelos sentidos, vivendo de aparências (doxa). O Homem
epistêmico supervalorizado por Platão era por esse considerado virtuosamente superior
ao homem da doxa. Aqui começa uma jornada aparentemente inócua, pois os
discípulos de Sócrates cediam à sua argumentação e ao fim e ao cabo, com ele
concordavam, tamanho era o prestigio, a liderança, a idealização, a capacidade
argumentativa de Sócrates. (Freud- Psicologia de
Grupo e Análise do Ego) Mas esse é apenas o inicio de uma estrada que,
em seu desenvolvendo chegará a um insuportável grau de violência. A dicotomia
benigna transforma-se em maligna. Podemos então dizer que de inicio estamos
lidando com uma dicotomia light embora discriminatória. Porém, a difusão desta
ideia de Verdade facilmente evoluiu para o exercício da onipotência e da
ditadura implacável. O diálogo platônico, que já era tendencioso se retrai e só
resta uma voz fascista a ditar o que é Certo e Errado. Temos agora um Dono da
Verdade com o direito de invadir, dominar, negar, destruir a subjetividade e a
vida daqueles que não rezam pela mesma cartilha. Esta é uma dicotomia maligna
onde encontramos uma separação extremada e absoluta das oposições: convicção
inamovível, ausência de zonas de transição, superioridade/inferioridade,
verticalidade, opressão/submissão, ausência de diálogo dialógico (Martin
Buber). No contexto em que vivemos estamos próximos dos graus máximos de
violência e de desrespeito ao individuo. A dicotomia maligna tem uma ação
devastadora, pois ela nos remete a sangue, à matança indiscriminada, ao
genocídio, à tortura, etc. Por trás destes atos visíveis nos deparamos com o
oculto fundamento sujeito/verdade (Marcio do Amaral),
garantia enganosa da Verdade do vocábulo: superioridade incontestável,
convicção irremovível diante de um outro inferior, impossibilidade do dialogo
dialógico, discriminações, verticalizações, dominações. O sujeito dicotômico
alimenta-se de suas impressões, fantasias, necessidades psíquicas, projeções e
introjeções comicobizarras, sonhos de grandeza, etc. Esta sustentação
sujeito/verdade é multimilenar e já causou muito sofrimento em ocasiões de
aliança explícita com a crueldade destrutiva. Mas ela existe também na vida
comum cotidiana dentro de um marco civilizado. No período vitoriano/patriarcal
--- por conseguinte na vigência do paradigma repressivo --- encontramos formas
light da dicotomia dominação/submissão, superioridade/inferioridade. Mas há que
desconstruir estas formas menos explicitamente agressivas, não só para o bem
privado, mas também para o bem público pois elas certamente robustecem a dicotomia
maligna.
Examinarei, a seguir,
a dinâmica de algumas das muitas dicotomias:
1- Dicotomia
Feminino/Masculino
2- Dicotomia
Corpopsique/Mente
3- Dicotomia
Mãe/Bebê
4- Dicotomia
PalavraCientifica/PalavraLeiga
5- Dicotomia
PalavraImperial/PalavraCriativa
DICOTOMIA FEMININO/MASCULINO
Numa sociedade
machista, patriarcal o lugar da mulher é a inferioridade. A mente do homem, com
sua capacidade intelectual, estaria em um nível superior à da mulher. O reino
do feminino era o psiquessoma, local de acolhimento, bondade, preocupação com o
próximo. Os modos masculinos --- objetividade, impiedade, implacabilidade, intelectualização, poder,
riqueza material --- eram colocados em um patamar superior à da mulher/feminina
composto de sensibilidade, empatia, compaixão, amor, intuição. O masculino era
o Sr. da Mente e o feminino a Dona do corpo/psique. Esta última provoca no
homem uma inquietude de tal ordem que só o exercício do poder o aplaca. O
corpo/psique é, então, ignorado, negado, colocado em um plano inferior. Os
costumes e estilos femininos são vistos como fraquezas, necessárias sim, mas
que deveriam ficar confinadas ao interior do lar. E mesmo aí elas são
desvalorizadas, servindo para realçar a força da racionalidade (isenta de
sentimentos) do homem (Armony). Estamos
diante de uma dicotomia: Homem é Homem e Mulher é Mulher. Habitam planetas
diferentes: homem é de Marte e mulher é de Vênus. Impossível uma relação
intersubjetiva. Difícil uma relação interpessoal. São línguas e valores
diferentes e por isso mesmo brigas e indiferenças soam constantes. Vivi-se em
estado de beligerância dicotômica onde o
homem exige a obediência da mulher. O casal heterossexual não se entendia: o
homem não penetrava afetivamente no planeta feminino (Venus) nem a mulher
penetrava no planeta masculino (Marte). Com a revolução feminista homens e
mulheres passaram a habitar o mesmo planeta. Ambos pertencem ao planeta Terra,
mas moram em diferentes lugares, mais distantes ou menos distantes. O diálogo
se torna possível. O que antes era trombada passa a ser conflito que acaba se
tornando, na hipótese otimista, um esforço de integração. O diálogo surdo-mudo
transforma-se em um diálogo-dialógico. (Martin Buber) Mas ainda estamos longe
de conseguir uma radical relação intersubjetiva que mais parece uma utopia.
Dela podemos nos aproximar (o que já é um grande feito), mas dificilmente
conseguimos torná-la parte da cultura ocidental.
DICOTOMIA
CORPO/PSIQUE --- MENTE
Diferente
da anterior --- uma dicotomia externa --- vou focalizar agora uma dicotomia
interna, aquela que se passa no interior da unidade Ser Humano. Nessa dicotomia
encontramos duas situações: 1- a mente domina o psiquessoma e b- o psiquessoma
domina a mente. Neste segundo caso o corpo/psique não
mediado adequadamente pela mente, exerce uma liberdade exagerada atropelando a
liberdade dos demais. “É proibido proibir” é a palavra de ordem provocativa. A mente
é então convocada para a tarefa de inibir a exagerada permissividade narcísica,
tarefa da qual abdicou. Ela volta a exercer sua função mediadora e moderadora da
realidade social e da integração psique/corpo. A recuperação da função
mediadora da mente pode ser mais bem entendida acompanhando o nascimento e
desenvolvimento do bebê.
DICOTOMIA MÃE/BEBÊ
(Winnicott)
O bebê é puro impulso:
impulso instintivo de satisfação de necessidades (fome, sede, carinho, etc.),
impulso narcísico do ego de autoconservação, autorrealização, expansão. A mãe é
a guardiã do equilíbrio psicomentessomática. É a mãe quem complementa a mente
do bebê protegendo seu self e ego da realidade externa (cuidando, por exemplo,
de que não haja um excesso de estímulos) e dos impulsos internos (evitando, por
exemplo, que a curiosidade exploratória – desejo de expansão – faça-o cair de
uma grande altura, ou que tome um choque elétrico, ou que se perca na rua).
Tendo uma mãe suficientemente boa o bebê assimila e adquire uma adequada mente,
um adequado ego, um adequado self, tornando-se capaz de se adequar à realidade.
Uma mãe suficientemente boa e um ego suficientemente bom darão limites,
liberdade e permissão para eventuais transgressões. Caso contrário o self se
dilatará excessivamente e a pessoa sentir-se-á com o direito de realizar todos
seus desejos e vontades. Então: se a mãe não consegue colocar limites para a
criança, se não consegue saudavelmente frustrá-la, submetendo-se aos seus
desejos e permitindo um comportamento transgressivo antissocial, estará
estimulando um narcisismo descomedido. A criança que cresceu dentro desse clima
sente-se no direito de ter tudo para si. Os outros só existem para servi-lo em
suas necessidades materiais e psíquicas. Qualquer limite que lhe é anteposto é
sentido como um crime de lesa-majestade já que ele continua se sentindo como
“Sua Majestade o Bebê” que por direito divino terá a aprovação e a submissão de
todos que terão o sagrado dever de servi-lo.
A reintegração da mente no psiquessoma traz
consigo um precioso presente: a espontaneidade. Ela lhe permitirá sentir seus
mais profundos sentimentos e fantasias, abrindo-lhe a porta infinita da
sensibilidade pessoal e social. Essa espontaneidade tem seus perigos. Ela está
próxima da fronteira do desacato. Caso não se atente, esta posição poderá levar
a abusos. Também a criatividade necessita da espontaneidade para acontecer, mas
deverá fazê-lo cuidando de evitar excessos tais como predomínio autistico da
subjetividade. A criatividade depende de um clima permissivo que, se exagerado,
propiciará abusos. Haverá exceções, com rupturas estranhas que poderão
representar um salto para a frente no desenvolvimento da humanidade.
DICOTOMIA
PALAVRA CIENTÍFICA/PALAVRA LEIGA
Até a época
cientificista, a palavra tinha uma imprecisão que permitia usá-la poeticamente.
A palavra estava integrada no conjunto corpo/psique/mente. Havia então uma
liberdade de seu uso e ela podia ser ouvida em sua polissemia permitindo ao
ouvinte dar uma interpretação singular acorde à sua subjetividade. A denotação
era uma parte pequena da palavra, cercada que estava por todos os lados pela
conotação, permitindo seu amplo uso: uma grande variedade de sentimentos e uma
grande liberdade de interpretação. Com as ciências exatas aboliu-se a
conotação. A palavra tinha de ser precisa e designar exata e conceitualmente o
objeto, não permitindo nenhum devaneio. A palavra passou a ser um produto da
mente dissociada do corpo/psique. Acabava-se com a poesia e a diversidade da
fala. Passou a haver a preocupação de se dizer a palavra precisa o que tirava a
espontaneidade do discurso tornando-o esquemático e desinteressante. A palavra
perdeu seu encanto, sua liberdade, seu potencial vaporoso e fantasmático. Todos
deveriam entender as coisas exatamente da mesma maneira. A riqueza da
diversidade humana se perdia. Aquilo que na física era útil, necessário,
eficiente, tornou-se uma camisa de força para a manifestação da complexidade,
diversidade e sutileza da alma humana. Eliminava-se parte do mundo, simplificando-o
através da ciência. Tudo poderia ser explicado por cálculo. Mas para isso a
palavra tinha de ser rigorosamente exata, rigorosamente intelectual,
rigorosamente mental, reprimindo-se o corpo/psique e consequentemente a
conotação das palavras. Criou-se assim uma dicotomia onde o dominador era a
denotação. A resistência a esse domínio foi e é fruto da necessidade que o ser
humano tem de viver, ao mesmo tempo a objetividade da ciência e a subjetividade
da poesia.
DICOTOMIA
PALAVRA IMPERIAL/PALAVRA CRIATIVA
No
período de dominação patriarcal a palavra do patriarca era a palavra
verdadeira. Aqui está em ação o fundamento sujeito/verdade que trouxe
dificuldades ao entrosamento. Em certos casos a prosódia fica prejudicada.
Aparecem dificuldades na elocução e na formação de frases: gagueira, monotonia,
atropelamento de sílabas, alongamento das vogais, voz em falsete, e outros distúrbios.
Estas dificuldades se deveriam em parte ao olhar e falar imperioso do Grande
Chefe que não admite contestações, obrigando o filho a se recolher à sua
insignificância para poder ter, uma moradia e um pouco de amor. Esta situação parecia
estar mudando, mas em um movimento inesperado, as dicotomias malignas retornam.
Mais uma razão para se exercer uma redobrada
atenção às aparentemente inócuas dicotomias light.
Encontramos
diferentes dicotomias a cada esquina. Teríamos então textos intermináveis ou
quase. Creio que as aqui apresentadas são suficientes para nos alertar quanto a
dicotomias light. Não basta lutar com as dicotomias pesadas. É importante
também estar atento ao modo dicotômico benigno de relação para evitá-lo,
lutando pela integração que é o desarmamento da dicotomia.
Nahman Armony